O ex-CEO da Americanas Miguel Gutierrez afirmou que o comando da empresa mentiu para ele sobre o processo de sucessão de seu cargo ao longo de 2022. Gutierrez foi substituído no início de 2023 por Sergio Rial, que renunciou poucos dias após assumir a presidência da varejista devido à descoberta de um rombo contábil de mais de R$ 20 bilhões. A Americanas entrou em recuperação judicial ainda em janeiro deste ano.
A declaração de Gutierrez aparece em depoimento à Comissão de Valores Mobiliários (CVM) em março, ao qual o Estadão/Broadcast teve acesso. Ele afirma que o assunto é “delicado” do seu ponto de vista. “O pessoal mentiu para mim”, disse.
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Segundo Gutierrez, seu primeiro contato com Rial, no contexto da Americanas, ocorreu em março de 2022, em um almoço. Na época, a expectativa era de que Rial fosse cotado para uma das cadeiras do Conselho de Administração.
Gutierrez conta, porém, que, durante seu processo de sucessão, enquanto ainda buscava um dos nomes da diretoria estatutária, foi informado de que Rial assumiria o posto. Mais tarde, ele descobriria que já existia um contrato assinado pelo acionista e membro do Conselho, Carlos Alberto Sicupira, e pelo presidente do Conselho, Eduardo Saggioro, que garantia pagamentos de consultor a Rial a partir de setembro de 2022.
“Olhei a data e era 23 de maio. Estava assinado entre o presidente do comitê de gente, o presidente do Conselho, que era o (Eduardo) Saggioro, e o Beto (Carlos Alberto Sicupira, um dos três principais acionistas da Americanas), juntamente com Rial. Ali, definia que, a partir de setembro, ele teria uma remuneração, que ele trabalharia como um consultor da companhia”, disse Gutierrez.
“O que me chocou é que em maio e em junho, nós estávamos num processo de seleção”, afirmou. Ele disse ainda que, a partir de setembro do ano passado, a presença do novo executivo que o substituiria se tornou cada vez mais frequente.
Já em relacionamento direto com os agora ex-diretores estatutários, Rial teria criados grupos de WhatsApp sem a participação de Gutierrez. “E é natural. Eu não reclamava disso. Aos poucos, já iam esquecendo de avisar que marcaram com ele alguma coisa”, disse.
Ele relata que Rial marcou uma ida a Brasília falando em nome da companhia em reunião com o presidente do Banco do Brasil e que teve também uma reunião com o Banco Safra. “Alguns negócios que estavam engatilhados, ele simplesmente desfez, sempre com apoio do Conselho”, afirmou.
O executivo relatou que, em 27 de dezembro do ano passado, Timotheo Barros, diretor da operação física, e Márcio Cruz, diretor da operação digital, fizeram uma apresentação que detalhava os avanços da companhia durante sua gestão. Inicialmente, a apresentação seria feita ao presidente do Conselho, Eduardo Saggioro, que sugeriu que Rial fosse chamado.
Na apresentação, que teria se estendido por quatro horas, Gutierrez afirmou que alguns dos principais pontos eram o gerenciamento do caixa diante das vendas fracas e os créditos tributários a que a Americanas tinha direito por causa dos prejuízos acumulados pela B2W, empresa da qual era sucessora.
“O Rial certamente deveria conhecer na parte de bancos que ele tinha. O Rial é uma pessoa centralizadora, então a parte contábil lá do Santander, certamente, ele conhecia”, disse o executivo.
Em outro ponto do depoimento, Gutierrez relata que ligou para o sucessor em 9 de janeiro para perguntar se ele precisava de auxílio nos primeiros dias no cargo. Rial teria alegado que não poderia falar e pedido para que Gutierrez retornasse em 11 de janeiro, o mesmo dia em que o fato relevante sobre o rombo na companhia foi revelado.
Gutierrez relata ainda que Carlos Alberto Sicupira tinha presença frequente na companhia. E que mantinha conversas frequentes com o acionista. “Meu contato com Beto sempre foi muito intenso. O Beto gosta muito do negócio, ele já foi presidente da Americanas. O contato, prioritariamente, sempre foi com Beto”, afirmou.
Ele pontua, porém, que, com a chegada de Rial, esse contato mudou. Miguel relata ainda que foi comunicado pelo próprio Sicupira que o Conselho havia decidido pelo ex-dirigente de banco, dizendo saber que a decisão iria desagradar o então CEO.
Procurada, a defesa de Miguel Gutierrez não comentou o conteúdo do depoimento à CVM. A Americanas afirmou que as informações apresentadas no depoimento são “inverídicas”.
Rial afirmou, por meio de sua assessoria, que aguarda providências cabíveis para que os autores da fraude sejam punidos. “Sergio Rial agiu como denunciante de boa-fé ao comunicar as inconsistências contábeis da Americanas em 11 de janeiro de 2023 e aguarda as providências cabíveis para a responsabilização dos autores da fraude bilionária a partir das delações já homologadas e da continuidade das investigações em curso”, disse.
Necessidade de aporte ‘considerável’
No depoimento de cerca de três horas à CVM, Gutierrez diz que os números da Americanas indicavam, desde o segundo semestre do ano passado, que a varejista precisaria de um aporte “considerável” de capital. Segundo ele, a empresa vinha tendo custo financeiro superior à geração de caixa devido a uma série de fatores. Entre eles, a fusão entre os braços digital e físico, em 2021.
O ex-CEO afirma que, desde a união entre as antigas Lojas Americanas (lojas físicas) e B2W (digital), o consumo de caixa havia sido de R$ 10 bilhões. “Desde a combinação, foram gastos R$ 10 bilhões. Não é que sumiram: nós compramos o Hortifruti, que custou R$ 2,5 (bilhões), mais o resultado financeiro dá R$ 3 (bilhões), na Vem (sociedade com a Vibra) botamos R$ 300 milhões, que vira R$ 400 (milhões) com o financeiro”, disse ele. “Nós fizemos investimentos muito relevantes e não tivemos a receita esperada.”
Uma série de fatores, segundo ele, levou à frustração de expectativas, como a Copa do Mundo do ano passado, que reduziu as vendas entre novembro e dezembro, a incerteza gerada pela eleição presidencial e o aumento da taxa Selic. O ano de 2022 era o primeiro completo da Americanas S.A., empresa criada após a fusão entre B2W e Lojas Americanas, em meados de 2021.
O executivo não disse de forma explícita qual o tamanho do aporte necessário. Afirmou, porém, que se o volume de vendas fosse tomado como régua, os valores ficariam entre R$ 9 bilhões e R$ 10 bilhões, justamente o valor negociado atualmente entre os bancos credores da companhia e os acionistas de referência, Jorge Paulo Lemann, Marcel Telles e Carlos Alberto Sicupira.
As negociações estão atualmente paradas diante da falta de balanços auditados da companhia referentes ao ano de 2022. Bancos credores avaliam, reservadamente, que as afirmações de Gutierrez sobre o conhecimento do trio a respeito da situação financeira da rede devem ter mais impacto na esfera judicial do que nas discussões do plano de recuperação judicial. Parte dos bancos, porém, considera que o valor pedido pelos credores pode aumentar.
Risco sacado
Boa parte das perguntas da CVM tratou do chamado risco sacado, a antecipação aos fornecedores de valores referentes às vendas — a Americanas detalhou em junho, após investigação de um comitê independente, que o risco sacado era apenas parte da fraude contábil que a levou à recuperação judicial. Não era a causa de todo o problema.
No depoimento de março, Gutierrez afirmou não saber qual o desenho dessas operações na empresa e que nunca foram tratadas como um problema de primeira ordem, embora os pagamentos aos fornecedores fossem fonte de preocupação.
Segundo ele, no passado, a Americanas adiantava recursos aos fornecedores utilizando o próprio caixa e gerava receitas com isso. Essa dinâmica teria mudado em 2011, quando a operação de lojas físicas teve de aumentar os investimentos na B2W, da qual era acionista. Naquele ano, a empresa de varejo digital internalizou estruturas que até então eram terceirizadas, para responder a um “colapso” no atendimento aos clientes ocorrido no ano anterior.
“Isso deve ter drenado recursos (do caixa da Americanas) e deve ter começado a entrar bancos nesse negócio (adiantamento a fornecedores), que é o próprio negócio do banco”, disse Gutierrez. Ele afirmou, porém, que não sabia detalhes sobre a alegada classificação equivocada do risco sacado no balanço da companhia.
Gutierrez afirma que Rial, seu sucessor, poderia estar a par das operações de risco sacado da companhia. Em nota, Rial diz que todo o mercado desconhecia que o risco sacado da Americanas era, na realidade, dívida bancária que não era informada como tal.
“Quando isso se apura nos primeiros dias de janeiro de 2023, após dois diretores relatarem essa situação a Sergio Rial e ao seu novo diretor financeiro, André Covre, a decisão foi de reportar o fato ao mercado, conforme determina a Lei das S. A. e a resolução da CVM”, disse o executivo.
‘Confesso que não li’
Gutierrez diz algumas vezes, ao longo do depoimento, que tinha pouco envolvimento com as políticas e o dia a dia da contabilidade das empresas, em especial da B2W. Na adoção do padrão contábil IFRS na demonstração de resultados das lojas físicas, por exemplo, a área contábil da companhia teria compilado as principais mudanças de práticas em um manual que ele recebeu, mas que alega não ter lido.
“Eu confesso que eu não li, mas também a parte contábil eu nunca me propus a ser um especialista nesse assunto (sic). Eu admiro muitos os contadores, mas não me vejo como um contador”, afirmou. O ex-CEO disse ainda que as práticas contábeis da Americanas e da B2W foram sendo formalizadas, ao longo do tempo, nos estatutos e políticas internos.
O executivo também afirmou que, à medida que a companhia cresceu e se diversificou, ele acabou perdendo a visão do todo. Em um exemplo, afirmou que enquanto era diretor superintendente, participava de segunda a sábado da reunião diária de vendas entre os executivos e representantes da operação física de todo o País. Depois que passou a presidente, deixou de participar da reunião e a responsabilidade passou a Timotheo Barros, o diretor da operação física, com quem relatou que se reunia de forma periódica, mas não diária.
Americanas diz lamentar ‘informações inverídicas’
A varejista afirma em nota lamentar o que chama de “informações inverídicas” apresentadas por Gutierrez em depoimento à CVM.
A nova direção da empresa diz que as afirmações do ex-CEO ao órgão regulador tem “o único objetivo de eximir sua responsabilidade e sua relação direta com a fraude de resultados identificada nas provas sólidas e consistentes disponibilizadas pela companhia à Comissão Parlamentar de Inquérito (CPI) há mais de três meses e sem contraprova alguma da outra parte”.
A empresa continua: “Em relação às alegações do ex-CEO de que a companhia passava por situação financeira difícil no segundo semestre de 2022, de que precisaria de aporte de capital e de que todos os órgãos da administração tinham ciência desse fato, a Americanas reforça que documentos apresentados ao Comitê Financeiro, arquivados no portal de governança da companhia e já disponibilizados à CPI e demais autoridades, mostram de forma inequívoca que a antiga diretoria, liderada por Miguel Gutierrez, apresentou, aos conselheiros, visão de que a empresa geraria R$ 500 milhões de caixa no quarto trimestre de 2022, assim como continuaria gerando caixa nos anos subsequentes, mantendo índice de endividamento financeiro saudável”.
A Americanas afirma ainda que as evidências mencionadas “constam da petição protocolada em resposta ao agravo em processo judicial de autoria do Bradesco”. “A companhia volta a reforçar que é a maior interessada no esclarecimento dos fatos pelas autoridades competentes à frente das investigações e que irá responsabilizar todos os envolvidos”, diz.
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