Apesar de sofrer com fatores conjunturais, a China também passa por uma transformação estrutural na economia e já não pode mais contar com o setor imobiliário como uma grande alavanca do Produto Interno Bruto (PIB). O resultado disso, e da aposta no consumo interno como motor econômico, são taxas de crescimento mais modestas no país.
“O cenário mais provável é um crescimento de 3% em 2022 e talvez um pouco mais que isso, no limite de 4%, no ano que vem. Não se trata de colapso. Ainda vai ser uma taxa maior do que a de países avançados. A convergência de renda vai continuar, mas em um ritmo menor do que nas décadas anteriores”, diz o ex-vice-presidente do Banco Mundial e membro sênior do Policy Center for the New South, Otaviano Canuto.
Na visão do economista, o governo chinês não vai aumentar as medidas de incentivo econômico desta vez para tentar impulsionar o PIB, dado que não quer agravar a vulnerabilidade financeira, principalmente das construtoras. “A resposta anticíclica pode melhorar um pouco, mas não é algo que faça a economia voltar à trajetória de antes.”
A seguir, trechos da entrevista.
A desaceleração da China é pontual ou podemos esperar que um crescimento do PIB ao redor de 3% ou 4% seja o novo padrão do país?
São as duas coisas. Tem componentes conjunturais que podem ter repercussão no futuro e tem uma questão mais estrutural, que é o declínio gradual da taxa de crescimento. A combinação leva a pensar que o novo normal para o PIB da China é algo mais perto de 3% e 4% do que as taxas de dois dígitos, que ficaram para trás há muito tempo. A política de covid zero é conjuntural e tem impacto sobre a economia, mas não tanto sobre as exportações. Os chineses foram mais propensos a evitar o atravancamento de exportações. Fecham cidades, mas protegem corredores de transporte de logística.Tem também um fator especial neste ano, mas que deve ser recorrente, que é a seca. Por causa dela, há restrições de uso de energia em algumas cidades, e fábricas foram fechadas. E tem uma questão mais de fundo que são as agruras do setor imobiliário.
Como o setor imobiliário afundou tanto?
Em 2011, o então presidente da China, Hu Jintao, fez um dos primeiros desenhos do rebalanceamento da economia do país. O fantástico período de crescimento do PIB em dois dígitos na média havia decorrido de um crescimento nas taxas de investimento de quase 50% do PIB. Isso só era possível porque refletia uma estrutura de apropriação da renda, em que a parcela de salário em proporção ao lucro era a mais baixa que a de qualquer outro país. A capacidade de investimento era viável via o saldo comercial com o resto do mundo. À medida que a China cresceu, aquilo não era mais sustentável. Então se desenhou o mapa no qual a economia chinesa seria menos dependente de investimento em relação ao PIB, aumentando o consumo doméstico. Ao mesmo tempo, a China subiria na escala de valor, dependendo menos de atividades intensivas em menor qualificação. Mas, depois da crise financeira global, todo mundo ficou com medo da desaceleração econômica. E a China também. Havia um grande receio de fazer a mudança no padrão de crescimento, porque o ponto de partida era um patamar de consumo muito baixo em comparação ao PIB. Se fosse fazer a transição da noite para o dia, haveria um colapso da taxa de crescimento. O jeito de a China evitar uma desaceleração abrupta do crescimento foi através de uma grande onda de financiamento para sociedades de propósito específico nos governos subnacionais. Assim, se financiou uma onda de investimento em infraestrutura e habitação. A coisa aconteceu com muitos excessos. Por um lado, isso garantiu a redução apenas gradual do crescimento. Já no período entre 2015 e 2017, houve uma preocupação enorme com a saída de capital do país e a perda de valor de ações. Aí se tem um novo momento de preocupação, e o governo recorre com a mesma tática de financiar projetos de infraestrutura e habitacionais. Uma terceira onda disso, com menor tamanho, ocorreu na pandemia. Agora a situação é diferente, pelo menos na questão imobiliária.
A transformação econômica finalmente está se concretizando?
A opção chinesa é não empurrar o problema com a barriga de novo e apenas evitar piorar a situação de insustentabilidade das construtoras. Os credores das incorporadoras até estão aceitando esperar um pouco para ver se, mais para frente, elas conseguem cumprir com suas obrigações. O governo está tentando evitar um colapso, mas não há uma nova onda de empreendimentos imobiliários para evitar a desaceleração econômica como ocorreu antes.
O sr. afirmou recentemente que as medidas do governo para evitar a desaceleração eram modestas. Nas últimas semanas, surgiram novas medidas. Elas mudam o cenário?
Elas são modestas no sentido de que não vai ter um retorno do PIB a 6%, como ocorreu em 2019. O cenário mais provável é um crescimento de 3% em 2022 e talvez um pouco mais que isso, no limite de 4%, no ano que vem. Não se trata de colapso. Ainda vai ser uma taxa maior do que a de países avançados. A convergência de renda vai continuar, mas em um ritmo menor do que nas décadas anteriores.
Acredita na possibilidade de o governo lançar medidas mais significativas?
Não. Eles não querem agravar a vulnerabilidade financeira. Podem fazer algo do lado fiscal. Anunciaram recursos para entes subnacionais retomarem investimento em infraestrutura, mas não na área habitacional. A resposta anticíclica pode melhorar um pouco, mas não é algo que faça a economia voltar à trajetória de antes.
Qual impacto essa desaceleração terá no mundo e no Brasil?
Vai haver diferenciações em termos de commodities impactadas. Diferenciações que importam para o Brasil. A exaustão do boom imobiliário e da construção vai diminuir o dinamismo das compras chinesas de minério de ferro. Por outro lado, o crescimento do consumo de alimentos vai continuar forte. Há uma inflexão no crescimento populacional chines, mas a renda das classes mais baixas está aumentando. Hoje, a propensão ao consumo no país ainda é baixa quando comparada à de outros países.
Os comentários são exclusivos para assinantes do Estadão.