Há exatos 30 anos, o Brasil amanheceu com uma nova moeda. Naquele momento não se sabia que junto com o real o País começava também uma nova história. Essa era a ambição, mas depois de algumas tentativas de estabilização econômica frustradas, poucos acreditavam que dessa vez a mudança realmente ocorreria.
Fernando Henrique Cardoso, que no último dia 18 de junho completou 93 anos, capitaneou o plano do qual a criação da nova moeda foi apenas uma etapa. O trabalho começou muito antes e se estendeu por outro tanto espaço de tempo. Envolveu diversos homens e mulheres e, embora alguns nomes venham imediatamente a mente quando se fala nos “pais do real”, a construção e implementação dessa mudança exigiu uma equipe ampla.
Boa parte desses nomes esteve reunida na semana passada num evento comemorativo a esse marco histórico, no centro de São Paulo, na sede da Fundação Fernando Henrique Cardoso. Lá, Pérsio Arida disse que o Plano Real é algo “não repetível” e beneficiou-se da capacidade dupla de Fernando Henrique Cardoso que é, ao mesmo tempo, político e intelectual.
Confira os depoimentos
Durante todo o encontro foi enaltecido o fato de técnicos e políticos do então governo Itamar Franco terem se unido na defesa das ideias, ainda que, nos bastidores, discordâncias existissem. A democracia e a negociação foram pontos essenciais para o sucesso das medidas, segundo consenso de Arida, Gustavo Franco, Edmar Bacha, Pedro Malan, Rubens Ricupero e Armínio Fraga, alguns dos responsáveis pelo plano e sua implementação presentes às discussões.
Também foi comum a ideia de que, desde aquela época, o Brasil não consegue alcançar o crescimento desejável nem todas as condições para que ele ocorra. “O Brasil tem muito de caminhar”, disse Pedro Malan. Para o ex-ministro da Fazenda, o País ainda tem de responder às perguntas básicas de hoje: por que o Brasil cresce pouco, por que o Brasil tem uma distribuição de renda tão desigual e por que é tão difícil fazer reformas no Brasil?
Ainda nesse contexto, discutiu-se a dificuldade fiscal, que é recorrente no País. Na percepção de Edmar Bacha, por exemplo, seria mais difícil hoje do que foi em 1994 fazer os cortes de 20% das despesas obrigatórias, cruciais para o lançamento do Plano Real.
Gustavo Franco lembrou que nos 15 anos que precederam o Plano Real, o Brasil registrou inflação mensal média de 16% e que no mês anterior à implementação da nova moeda, a inflação anualizada foi de 9.785%. Para dimensionar o tamanho do desafio de 1994, Malan frisou que houve mais de uma década de discussões acadêmicas até se chegar ao Plano Real e que o Brasil foi o País com mais inflação no mundo entre as décadas de 60 e 90. “A empreitada deu certo porque conseguiu deixar a hiperinflação para a história”, completou Bacha.
Essa “empreitada” ocorreu com a participação de muitos nomes para além de quem idealizou o projeto e ajudou a introduzi-lo como plano de governo.
Confira depoimentos de algumas lideranças econômicas daquela época, que ajudaram em seu dia a dia a construir a guinada na história do Brasil.
Luiza Trajano
Em 1994, era a superintendente do Magazine Luiza, fundado em 1957 em Franca, interior de São Paulo. Hoje é presidente do Conselho de Administração da holding, depois de, em 2021, ter sido listada pela revista Time como uma das 100 mulheres mais influentes do mundo.
“No momento da criação do Plano Real, vivíamos um ambiente de total insegurança, com uma inflação galopante que impedia as pessoas de consumirem ou de planejarem qualquer compra de bens de maior valor. Todo o setor de varejo sofria com problemas de fluxo de caixa, e a desvalorização constante do dinheiro inibia o consumo. Fazíamos grandes ofertas para atrair os consumidores, mas a falta de confiança generalizada afetava profundamente a decisão de compra.
A percepção de que o Plano Real estava funcionando foi rápida, pois ele apresentava uma consistência que amarrava muito bem todos os aspectos da economia. O Brasil havia passado por diversos pacotes e planos que fracassaram, gerando uma grande expectativa por uma solução eficaz para a inflação.
No meio empresarial, o apoio e a confiança foram dados desde o início, pois não era mais possível conviver com a hiperinflação. Em pouco tempo, ficou claro que o caminho escolhido estava correto.
O impacto do Plano Real dura até hoje e foi uma mudança extremamente positiva. As novas gerações não sabem o que é trocar de moeda, cortar zeros da moeda, confiscar o dinheiro, ou enfrentar uma inflação que causava filas no dia do pagamento porque, no dia seguinte, o dinheiro valeria menos. A total falta de confiança prejudicava o consumo. O Plano Real é um grande marco, uma mudança fantástica que proporcionou um Brasil melhor.”
Luiz Carlos Trabuco Cappi
Em 1994, era o diretor-presidente da Bradesco Vida e Previdência e assumiu a presidência do banco Bradesco em 2009. Atualmente é presidente do Conselho de Administração da instituição.
“O Plano Real representou a redenção da economia brasileira. De referência de instabilidade e turbulência, o Brasil passou à condição de protagonista global por conta dos nossos diferenciais, entre eles, a capacidade de fornecer commodities ao mundo de forma competitiva e eficiente.
O Plano Real foi uma das experiências mais bem sucedidas de enfrentamento da inflação e quebra da indexação. Não é outra a razão de vivenciarmos essa série de eventos, entrevistas, análises que comemoram os 30 anos do Real.
Acrescento que o Plano Real foi complementado com o regime de metas de inflação, criado cinco anos depois. Antes, o Banco Central controlava a inflação pelos agregados monetários e a política cambial. Com o regime de metas, a política monetária ganhou simplicidade e técnica. Entendo que foi importante para consolidar o Plano Real.
Para o setor financeiro tudo mudou com o Plano Real. O sistema bancário de hoje segue os padrões globais e trabalha radicalmente baseado em aplicação tecnológica de vanguarda. Seus pilares são prestação de serviços, distribuição de produtos e fornecimento de crédito para a sociedade.
As áreas de banco de investimento e de gestão de recursos ganharam modernidade e são hoje relevantes na estrutura das instituições. Temos hoje um perfil contemporâneo de atuação.
Até o Plano Real, absorvíamos a liquidez da economia e ajudávamos na política de combate da inflação, de um lado, e na proteção do valor do dinheiro das pessoas e empresas, de outro. Os ganhos eram o resultado dessa atividade. Os riscos do descasamento de moedas e prazos eram consideráveis, por conta da alta volatilidade dos mercados.
O setor bancário passou por uma fase de adaptação e consolidação com o fim de algumas marcas tradicionais. Somos hoje um setor robusto e sólido.”
Carlos Antonio Tilkian
Depois de ter feito carreira na multinacional Gessy Lever, em 1994 tinha acabado de ingressar como vice-presidente na Brinquedos Estrela. Em 1996 tornou-se presidente da empresa, cargo que ocupa até hoje.
“Estávamos vivendo a hiperinflação, com dificuldades enormes para a correta definição de custos e consequentemente de preço de venda aos consumidores, o que trazia um risco enorme para o negócio. Além da dificuldade de administrar custos/preços, éramos obrigados a fazer mudanças contínuas nas tabelas de preço, o que trazia constantemente uma necessidade de negociação com nossos clientes varejistas e atacadistas.
Prazos de pagamento e recebimento passaram a ter uma importância maior do que a própria planilha de custos, pois a demora em receber uma duplicata significava uma perda real do valor do título. Por outro lado, conseguir um pequeno prazo adicional para o pagamento de insumos significava uma enorme contribuição para aumento da rentabilidade do produto.
Pessoalmente foi um momento muito difícil na minha carreira, pois, no final de 1993, tinha me transferido das Indústrias Gessy Lever, hoje mais conhecida como Unilever, para a Brinquedos Estrela, que atua em um mercado altamente sazonal em função do Dia das Crianças e do Natal. A empresa tinha a tradição de apresentar sua nova coleção de brinquedos no início do ano, e os clientes faziam a programação de compras para todo o ano. Como fazer isso com ajustes de custos e preços constantes? Um grande desafio, sem dúvida.
Então, no início de 1994, chegou o Plano Real. Para ser sincero existia uma certa incredulidade com seu sucesso, pois o Brasil tinha já tentado implementar diversos planos econômicos e todos falharam após alguns meses. A diferença foi que o Plano Real trouxe premissas econômicas que nunca haviam sido implementadas anteriormente e com um projeto de médio prazo para modernizar as contas públicas do País.
O início do plano foi brilhante para as empresas e consumidores. Além de estancar a alta semanal/mensal de preços, o fim da inflação proporcionou um aumento real na capacidade de compra da população. Isso se transferiu para o consumo, fazendo com que vários mercados apresentassem crescimentos expressivos, houvesse aumento da geração de empregos e consequente aumento da arrecadação.
Foi um plano que rapidamente conquistou a confiança de empresas e consumidores e finalmente trouxe um mínimo de previsibilidade para o ambiente de negócios.
Hoje, olhando para o cenário econômico que tínhamos antes do Plano Real, podemos dizer que ele foi a oportunidade que o Brasil teve de estabilizar sua economia, incorporar conceitos de administração das contas públicas, dar à população de baixa renda uma oportunidade real de aumentar seu consumo. Essa faixa era a que sempre mais sofria em função da desvalorização de renda. Mas acima de tudo, o plano deu à população brasileira motivos de orgulho e esperança de estar se iniciando, em 1994, um ciclo de inserção do Brasil no rol de países com potencial de crescimento, gerando um desenvolvimento econômico-social que há tempos ansiávamos.”
Horácio Lafer Piva
Em 1994, estava no departamento de Dados e Estatísticas da Fiesp e no Conselho da Klabin. Atualmente é o presidente do Conselho da Klabin.
“Tive momentos de altos e baixos em relação ao Plano Real. Vinha de uma decepção enorme com o Cruzado e vivíamos um momento de muita dificuldade no Brasil. Não só a Klabin, mas as indústrias de uma maneira geral sentiam um enorme desequilíbrio nas relações com o poder e desconfiança em relação às perspectivas de futuro para o País.
Era uma época muito difícil para a decisão de investimentos e para a construção de um espírito otimista. Havia uma crise inflacionária e vínhamos de uma crise no balanço de pagamentos. Eu era muito moço e quando conheci o Collor fiquei muito entusiasmado por ele. Eu pensei naquele momento: “meu Deus, alguém vai ter coragem de enfrentar o status quo deste País”.
E me decepcionei terrivelmente com tudo que deu errado. Portanto, quando o Plano Real chegou eu vinha de um desânimo de alguém jovem, idealista, que queria participar da mudança e ela não acontecia. Era natural que eu tivesse uma certa cautela com relação ao plano. Mas o Malan passou uma serenidade que fez toda a diferença para que eu virasse a chave.
O plano aconteceu em junho e julho de 1994. Em dezembro, eu anunciei o primeiro crescimento positivo no nível de emprego depois de muito tempo, numa das nossas coletivas na Fiesp. Naquele momento eu já estava acreditando. A percepção era de que o plano estava trazendo confiança para a população e para as empresas, que investiam e aumentavam o emprego.
E aí eu pensei: mais emprego, mais consumo, mais produção, mais investimento, mais emprego. Vamos conseguir entrar no círculo virtuoso ao invés de continuar no círculo vicioso que vivíamos antes. Esse momento fez uma grande diferença.
Até então, eu assistia a indústria se destruindo. Obviamente, acabava contaminado por aquele clima de preocupação. Assim, quando o real foi lançado, a minha primeira reação foi de um certo ceticismo, um temor de que o plano não tivesse sustentação, como ocorreu no anterior.
Depois que o plano começou a andar, ficou muito claro que tínhamos pela frente a possibilidade de uma mudança absolutamente significativa e que não foi percebida por todos. Agora, depois de 30 anos, o Plano Real se mostra como um momento absolutamente brilhante deste País, não só do ponto de vista de construção técnica, mas, principalmente, de construção política.
A indústria continua sofrendo, até porque o Plano Real não se completou. A culpa não foi das pessoas que o elaboraram, mas de nós, que não demos continuidade. A indústria não aceitou o desafio da inserção global competitiva, não abrimos as nossas fronteiras como devíamos, não partimos para uma reforma tributária, não fizemos uma reforma de serviço público como se deveria e, portanto, o plano ficou incompleto, embora ele estivesse todo escrito no projeto original.
Eu acho que, infelizmente, as pessoas hoje em dia não fazem ideia da importância de termos acabado com a inflação. Se nós tivéssemos continuado o País não teria sobrevivido. Teríamos, talvez, algumas grandes empresas oligopolistas e monopolistas que conseguiriam repassar preços, mas, o restante seria dizimado.
Essas empresas teriam de vender para um público muito específico, porque a pobreza seria muito maior. Então, o fato de nós termos acabado com a inflação é uma coisa absolutamente divisora no País. Por não ter feito as outras coisas, o Brasil ficou muito longe do potencial que tinha, mas acabar com a inflação é o que nos deu a base para construir coisas nestes últimos 30 anos e daqui para frente.
A inflação não é mais um problema. Às vezes ficamos preocupados porque subiu um pouquinho, mas a inflação não é mais um problema. Essa turma que fez o Plano Real conseguiu acabar com a inflação. Agora, nós temos de trabalhar em outras coisas. Precisamos trabalhar em cima de uma reforma tributária, pois há uma série de grupos de interesse tentando desvirtuá-la.
O fato de haver o IVA já é uma questão positiva. Estamos décadas atrasados, mas é um ponto positivo. Precisamos abrir as nossas fronteiras e ter coragem de invadir a praia dos gringos, de aproveitar as possibilidades que o Brasil tem em vários sentidos, inclusive geopolíticos.
Precisamos fazer uma reforma nas despesas públicas neste País, o que fere muita gente e fere muitos interesses, mas isso precisa ser feito. Ou seja, há um roteiro relativamente claro, ele só precisa ser seguido. Eu não sei se ele será seguido nos próximos anos, mas todos têm feito força para que ele ande para frente, inclusive o próprio ministro da Fazenda, que muitas das vezes fica sozinho, gritando lá no meio do governo ao qual ele mesmo pertence.”
Maria Silvia Bastos Marques
Era secretária de Fazenda da cidade do Rio de Janeiro entre 1993 e 1996, antes de assumir o comando de grandes grupos privados, começando pela CSN e passando pelo grupo Icatu e Goldman Sachs. Também presidiu o BNDES. Em fevereiro de 1997, foi incluída em lista da Revista Time como única mulher entre os 12 executivos mais poderosos do mundo.
“Começamos a nos preparar para o Plano Real desde o momento em que as primeiras medidas foram anunciadas. O prefeito Cesar Maia e seu time já vinham fazendo uma gestão profundamente transformadora desde o início do mandato, com muita ênfase em revisão de processos, medidas de controle e de racionalização, modernização de procedimentos e ferramentas (como, por exemplo, a criação do DARM, documento único de arrecadação municipal com código de barras, altamente inovador à época, que nos permitiu apropriar a arrecadação em prazo recorde, reduzindo o float dos bancos, o que, naquele período, representava muito dinheiro).
Na secretaria de Fazenda, eu tinha, por mandato do prefeito, a gestão tanto sobre o Tesouro (caixa) quanto sobre o Orçamento (planejamento). Além disso, a gestão financeira da administração indireta (estatais e autarquias) e do fundo municipal de saúde, também estava sob nossa gestão. Ter todas as rédeas nas mãos facilitou muito o processo de transição.
Bom lembrar que o prefeito era também economista e muito experiente, havia sido secretário de Fazenda do Estado do Rio e deputado federal. No processo de preparação para a entrada do real, o prefeito organizou reuniões e seminários com os secretários e equipes, para explicar o Plano Real e seus impactos sobre a arrecadação, folha de pagamento e o valor dos contratos.
Teríamos de rever todos os contratos, pois a queda abrupta da inflação aumentaria seus valores em termos reais, elevando instantaneamente nossas despesas. A determinação do prefeito foi para que todos os contratos fossem renegociados, de modo a retirar o componente da inflação inercial, e, caso não houvesse sucesso em alguma renegociação, cancelar o contrato e fazer nova licitação.
A credibilidade da prefeitura era muito grande, os pagamentos eram feitos rigorosamente em dia e publicados com antecedência no Diário Oficial do Município, isso ajudou muito para o sucesso das negociações, resultando em um aumento muito expressivo dos nossos recursos em caixa. Assim, o planejamento antecipado e meticuloso para o Plano Real foi determinante para fazermos uma transição bem sucedida para a nova moeda, do ponto de vista da saúde das finanças municipais.
A percepção de que o plano estava dando certo foi um processo, uma construção. Com alguns solavancos, como quando aconteceu a saída de Gustavo Franco da presidência do Banco Central, em conjunto com a abrupta e forte desvalorização do real e a adoção de uma nova forma de flutuação cambial, a ‘banda diagonal endógena’. Foi um momento de muito estresse, pelo impacto na atividade econômica e nas empresas.
Nessa época eu era presidente da CSN, que também foi bastante impactada. Estávamos todos aprendendo como fazer a gestão de uma empresa em um ambiente sem inflação. Durante o período inflacionário, orçamentos não tinham qualquer relevância, eram peças de ficção, dada a desvalorização galopante da moeda.
Bancos lucravam com float, e não com tarifas, e empresas com receita financeira. Foi um período de muito aprendizado, que ainda não terminou. Ainda convivemos com alguma memória inflacionária, ainda existem muitos reajustes automáticos na economia, pontos de atenção e de melhoria. Temos de estar sempre vigilantes.
Acho que o Plano Real foi civilizatório, devolveu ao País uma referência de valor, uma moeda que realmente traduzia poder de compra. E a conquista mais importante foi o entendimento e o ‘apoderamento’, pela sociedade brasileira, do grande ativo que é, especialmente para a população com menor poder aquisitivo, viver sem inflação. Poder ter referências de preços relativos, poder planejar seu orçamento, sua vida financeira.
O que faltou - e não tem a ver com o plano em si, mas com a dinâmica política - foram os governos posteriores não terem usado a oportunidade criada pelo Plano Real, em termos de estabilidade econômica, para avançarem mais rapidamente nas reformas macro e microeconômicas. Visão de Estado e não de governo. Em vez de herança maldita, tínhamos terreno para avançarmos, de forma consistente, para um país com renda per capita mais elevada e mais igualdade de oportunidades.
Ainda nos debatemos com a questão fiscal, que vem sofrendo sucessivos retrocessos e com a dificuldade de ter um orçamento da União que reflita as prioridades das políticas públicas nacionais.”
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