Poupança, erros e constitucionalidade

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Por Everardo Maciel
Atualização:

O Brasil é realmente um país curioso. Há quase duas semanas se discute em detalhes uma nova forma de tributação das cadernetas de poupança, sem que, até o momento em que escrevo este artigo, tenha sido editada medida provisória ou encaminhado projeto de lei ao Congresso dispondo sobre a matéria. Como se costuma dizer, nas leis o demônio transita pelos parágrafos. Qualquer proposição pode se tornar completamente desfigurada com a edição da correspondente norma legal. Admitamos, portanto, que estamos debatendo não um ato, mas um boato, ainda que de boa fonte. A remuneração das cadernetas de poupança, desde o Plano Real, converteu-se em algo insólito no âmbito das aplicações financeiras: piso de remuneração, indexação e isenção de tributos. O tema sempre foi tratado com cautela pelas autoridades, certamente por causa das lembranças traumáticas do confisco da poupança, sob a égide do Plano Collor, e dos justificados cuidados com os pequenos poupadores. A atitude prudencial não elide a evidência de se formar um piso para a redução dos juros, pois haveria, a partir de uma determinada taxa, um estímulo à migração de outras formas de aplicação financeira para a poupança, em razão da óbvia vantagem comparativa que ela passaria a exibir. Essa conclusão permite outra inferência. Como a remuneração da poupança tem sido inferior à de outras modalidades de aplicação sujeitas às variações da Selic, é razoável entender que ela tem sido continuadamente sub-remunerada. Tal fato retira a legitimidade da proposição que pretende tributar a poupança. A ação do Estado não se pode pautar por desvios éticos como o oportunismo. A hora da mudança teria sido tempos atrás. Como pensará o aplicador, justamente quando vai desfrutar de vantagens que antes não tivera, ao constatar que elas serão neutralizadas pela tributação? A quebra de confiança do investidor, tal como no Plano Collor, é um dano crucial para o mercado financeiro. Outra ideia suscitada, conquanto ainda não sancionada pelo boato oficial, seria reduzir para 15% as alíquotas superiores a esse patamar incidentes sobre renda fixa. Em outras palavras, propõe-se retornar ao status quo anterior, eliminando a profusão de alíquotas introduzidas recentemente, com o ingênuo propósito de estimular aplicações de longo prazo, quando em verdade tão somente sobretaxou investidores que, por qualquer razão, necessitaram de resgates de curto prazo. Trata-se de estulto exercício de política fiscal, não submetido a uma avaliação de resultados. A sugestão de uniformizar as alíquotas é sensata, tanto pelo que pode aproveitar à formação de um dique contra a migração para a poupança quanto pelo que significa em termos de assepsia fiscal. Mas sobre isso cabe uma ponderação. A fixação da alíquota de 15% para aplicações de renda fixa, feita no contexto de uma ampla reforma da tributação no mercado financeiro, cuidou de prevenir estímulos, pela via tributária, a aplicações financeiras vis-à-vis investimentos na atividade produtiva. Há, portanto, um limite (15%) para a redução das alíquotas, sob pena de estabelecer um indesejado favorecimento fiscal do mercado financeiro sobre o chão de fábrica. No rol das inúmeras críticas desferidas contra a nova tributação, destacam-se seu caráter regressivo, já bem explorado pela advogada Elisabeth Libertuci, e sua complexidade. Aliás, complexidade em matéria tributária parece ser uma preferência recente da administração federal: o prosaico Simples converteu-se no mastodôntico Simples Nacional; a trivial tributação cumulativa do PIS/Cofins cedeu espaço às incompreensíveis particularidades da incidência não cumulativa; a tributação do mercado financeiro acolheu caprichosas regras que maculam sua desejada neutralidade, etc. A proposta de tributação das cadernetas de poupança reproduz a assinalada compulsão pela complexidade. Pretende-se que o imposto devido seja em parte recolhido na fonte e em parte, na declaração de ajuste, em completa desconformidade com outras aplicações. As alíquotas, por sua vez, seriam variáveis no tempo e condicionadas à Selic - quanto menor a taxa, maior a alíquota. De pronto, estimularia uma torcida dos investidores contra a redução da taxa de juros, pois os aplicadores em renda fixa perderiam remuneração e os da poupança seriam mais tributados. Além da complexidade, há um vício mais grave nessa forma de tributação. Como as alíquotas estariam condicionadas à Selic e essa taxa é fixada pelo Copom - órgão da estrutura administrativa do Banco Central -, pode-se entender que alíquotas do Imposto de Renda (IR) estariam sendo fixadas sem observância ao princípio constitucional da reserva legal. Por conseguinte, a tributação preconizada pelo boato oficial seria escrachadamente inconstitucional. A proposta, como diria Roberto Campos, pode ser qualificada como uma burrice desumana. Qual deveria ser um novo modelo de tributação da poupança, sem as incongruências apontadas? Creio que esse modelo deveria estar assentado nos seguintes pilares: uniformização do IR aplicável à renda fixa, mediante adoção da alíquota de 15%; manutenção das atuais regras da poupança, vedadas novas aplicações; e criação de uma nova poupança compatível com as regras de mercado, sem prejuízo de tratamento isencional e garantia da aplicação para pequenos investidores. Além disso, caberia reestruturar as regras relacionadas com o financiamento habitacional, visando a assegurar adequado funding e compatibilidade entre a captação e os empréstimos. *Everardo Maciel, consultor tributário, foi secretário da Receita Federal (1995-2002)

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