Diz uma velha máxima atribuída a Platão que “a necessidade é a mãe da criatividade”. A frase do filósofo grego, cunhada há quase 2.500 anos, pode ser aplicada até hoje a quase tudo na vida e reflete, em boa medida, a transformação silenciosa que está acontecendo no setor público brasileiro.
Diante da cobrança da sociedade por um atendimento mais eficiente e de melhor qualidade, em meio às restrições fiscais crônicas do País, o setor público está tendo de se reinventar, buscando um número cada vez maior de parceiros privados, com e sem fins lucrativos, para prestar serviços que eram ou poderiam ser prestados pelo Estado. Com a vantagem de que, por meio das parcerias, os resultados são quase sempre melhores, com o mesmo gasto ou muitas vezes com um gasto até menor do que se o atendimento à população fosse feito pela estrutura estatal.
De acordo com a terceira edição do Mapa da Contratualização, produzido pela Comunitas, uma organização dedicada à melhoria da gestão pública no País, o número de parcerias firmadas com o setor privado nas três esferas de governo – federal, estadual e municipal – aumentou 30,3% nos últimos três anos, passando de 5.169 em 2021, quando a primeira edição do estudo foi lançada, para 6.735 em 2024 – o equivalente a mais de 500 novas parcerias por ano (veja os gráficos abaixo).
“Houve um crescimento sólido e consistente, a consolidação de um processo, o que é bom”, afirma Fernando Schüler, professor do Insper, uma escola de negócios, direito e engenharia de São Paulo, responsável pela coordenação acadêmica da pesquisa – à qual o Estadão teve acesso em primeira mão – com apoio do pesquisador Rafael Mendonça, especialista em políticas públicas.
Nesta edição, a pesquisa, que exclui as parcerias realizadas na área de infraestrutura e as de valor inferior a R$ 300 mil, destaca também 13 casos inovadores de Estados e municípios, com contratos em vigor há pelo menos dois anos. Na esfera municipal, onde se concentram cerca de 70% dos projetos, fazem parte da lista a gestão de academias ao ar livre em Recife, a assistência a idosos carentes em Belo Horizonte, a reforma e a gestão do Mercado Municipal de Santo Amaro em São Paulo e a adoção de um método de ensino desenvolvido pelo setor privado em escolas públicas de Porto Alegre.
“São projetos que estão tendo sucesso, podem ser replicados pelo Brasil afora e permitem ao poder público oferecer coisas que ele não poderia oferecer sozinho ou ofereceria de uma forma ruim”, diz Schüler. “Com a proximidade das eleições municipais, diversas iniciativas que têm alcançado bons resultados em todo o País podem inspirar os programas de governo dos candidatos.”
Embora uma parcela da sociedade ainda resista ao novo modelo de gestão, principalmente os grupos situados mais à esquerda do espectro político, as parcerias com o setor privado estão avançando em todo o País, independentemente da ideologia e da orientação política dos governantes.
No Piauí, por exemplo, que é administrado pelo PT desde 2015, o governo realizou uma PPP (Parceria Público-Privada) para construir e gerenciar oito miniusinas de energia fotovoltaica no Estado. Em Belo Horizonte, a primeira PPP do País na área de educação foi implementada por Marcio Lacerda, que é do PSB, quando ele era prefeito da cidade (2009-2017).
“Tem gente que coloca as parcerias com o setor privado como se fossem privatizações dos serviços públicos, mas não são. Os serviços não deixam de ser públicos”, afirma Regina Esteves, presidente da Comunitas. “Agora, as parcerias criam parâmetros que permitem uma comparação dos resultados obtidos pela gestão privada de um serviço público com os de uma gestão feita por uma máquina estatal. Também oferecem opção de escolha para a população e permitem ao gestor público avaliar as alternativas e investir nas que estão dando mais certo. Isso ajuda a elevar a régua de desempenho.”
Segundo Schüler, a transformação que está em curso no setor público do País se tornou possível com as mudanças introduzidas na legislação que regula as parcerias com a iniciativa privada e as organizações sociais, a partir dos anos 1990, reconhecida pelo Banco Interamericano de Desenvolvimento (BID) como a melhor do gênero na América Latina e no Caribe.
“Ao longo do tempo, o Brasil criou uma excelente base jurídica para as diferentes modalidades de contratualização e os gestores foram percebendo que têm instrumentos para realizar parcerias para a prestação de qualquer serviço que não seja exclusivo de Estado, como a segurança pública, a diplomacia e a fiscalização tributária”, diz.
“Gradativamente, o Estado vai se especializando na área de planejamento, supervisão e definição de metas de contratos, ou seja, com a parte de inteligência do processo, e vai deixando a execução na ponta para o setor privado. A contratualização toca no principal problema do Estado brasileiro, que é a ineficiência na prestação de serviços, e os gestores estão se dando conta de que, na ponta, a gestão privada funciona melhor.” Não por acaso, de acordo com Schüler, praticamente todos os governos de capitais e dos Estados têm hoje uma secretaria de Parcerias Estratégicas.
Em sua avaliação, a contratualização diminui a pressão sobre o setor público para contratação de pessoal e evita o inchaço da máquina administrativa e os reflexos negativos no sistema de previdência de Estados e municípios. “Como os servidores públicos têm estabilidade no emprego, quando você contrata, não tem como demitir. É um casamento perpétuo. E você nem sabe dizer se daqui a dez ou vinte anos, ou até antes, aquele serviço ainda será necessário no mesmo formato.”
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Para ele, o modelo de prestação de serviços públicos por meio de parceiros privados permite contornar essas amarras e oferece mais agilidade aos gestores. “É óbvio que você ter um modelo flexível, que pode se adaptar à demanda real da sociedade, atende muito mais a um princípio de economicidade e eficiência do que se você enrijecer a estrutura num contexto social em mutação. Não faz nenhum sentido criar uma estatal, uma organização pública, ter um quadro permanente de pessoal para fazer uma atividade que vai apresentar mutações nos próximos anos.”
Schüler cita como exemplo o caso da educação. Com a queda da taxa de natalidade, o número de alunos que entram no sistema também está diminuindo e deve diminuir ainda mais daqui para a frente, mas não há margem na legislação para adequar a estrutura ao novo cenário, gerando ociosidade de pessoal. Ele lembra que algo semelhante aconteceu com os ascensoristas e as datilógrafas que foram contratados décadas atrás, quando a realidade era bem diferente, e depois acabaram ficando sem função, embora continuassem a engrossar o quadro de servidores.
Além disso, em sua visão, falta accountability, que é a responsabilização dos gestores públicos por suas ações e resultados, quando o atendimento à população é feito de forma direta pelo Estado. “As regras da Constituição de 1988 não são próprias para garantir qualidade na prestação de serviços, porque você tem rigidez orçamentária, rigidez de contratação pessoal com o RJU (Regime Jurídico Único dos servidores públicos) e rigidez na contratação de serviços e bens com a Lei das Licitações. Se somar essas coisas todas e a falta de accountability, você tem um resultado que é sempre ruim”, diz.
“O setor privado incorpora tecnologia numa velocidade muito maior, tanto a tecnologia propriamente dita como a tecnologia de gestão. Isso vai criando uma disparidade. O setor público vai ficando para trás e o setor privado vai avançando.” Agora, com o crescimento das parcerias no País, este abismo tende a diminuir.
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