Analistas brasileiros divergem nas avaliações sobre os rumos do liberalismo econômico no País, principalmente após a pandemia da covid-19. Mas todos concordam em um ponto: a promessa do ministro da Economia, Paulo Guedes, de adotar um choque liberal no País, privatizar “tudo” e levantar R$ 1 trilhão aos cofres do governo - feita há mais de dois anos, no período de campanha presidencial - não se concretizará.
A visão é que, no caso brasileiro, a pandemia não foi a única responsável pela mudança de rota da política econômica. Antes, o próprio ministro já não conseguia avançar com seu projeto liberal à Escola de Chicago, dizem economistas de diferentes vertentes.
Presidente da Associação Keynesiana Brasileira, Fábio Terra destaca que o liberalismo vinha com força no Brasil antes da pandemia, mas, no mundo, já havia uma tendência de maior intervenção na economia desde a crise de 2008, quando Estados tiveram de salvar dezenas de bancos e nunca voltaram ao patamar anterior à recessão. “Depois da pandemia, deve haver algo parecido”, diz.
Segundo ele, no Brasil, o fato de a população reconhecer, durante a pandemia, a importância de um serviço público de saúde também pode dificultar o enxugamento do Estado.
Para a diretora de privatizações do BNDES entre 1994 e 1996, Elena Landau, no entanto, os Estados não cresceram durante a pandemia, pois não aumentaram os serviços prestados. Eles apenas elevaram a liquidez e os desembolsos, diz. “Isso não vai se manter, porque não há nem aqui nem no mundo capacidade financeira.”
Landau afirma ainda que a covid-19 “coloca uma responsabilidade grande no liberalismo”, para que haja maior justiça social. “O liberalismo não é contra a atuação do Estado na área social. Faz parte da agenda liberal até pensar em renda mínima. Mas o Estado não pode ser capturado pelo corporativismo e pelo populismo”, acrescenta.
O economista Eduardo Giannetti se limita a dizer que não será possível que o gasto público continue avançando nos próximos anos na mesma velocidade de 2020, mas destaca que o liberalismo tem mais de 250 anos e vem sobrevivendo a crises e guerras por ser “capaz de dar respostas às questões”.
“Não tenho a menor dúvida de que esse campo de pensamento que privilegia a liberdade e as regras do jogo de uma economia competitiva de mercado continuará sendo uma força muito relevante no debate público e na orientação das políticas econômicas”, frisa. “Agora, não vamos confundir o liberalismo ao longo de dois séculos e meio de história com essa versão muito empobrecida representada no Brasil pelo Paulo Guedes, que é o neoliberalismo de Chicago”, acrescenta o economista.
Giannetti destaca ainda que discutir “determinado rótulo ou ideologia não resolverá os problemas”. “O importante é identificar o problema e comparar os caminhos propostos para solucioná-los”, acrescenta.
O economista critica também a falta de avanços econômicos do governo Bolsonaro e diz não ver nenhum empenho da equipe de Guedes para cumprir as promessas. Giannetti também vê com preocupação o aumento dos gastos que foram impulsionados com a pandemia.
“Não tem desculpa para terminar dois anos de governo sem sequer ter apresentado uma proposta de reforma tributária. É absolutamente injustificável esse grau de omissão. No entanto, paira hoje no Brasil um risco muito sério de guinada populista fiscal, abrindo mão de qualquer compromisso com o controle do gasto público e usando o poder de gasto para fins de viabilizar reeleição.”
Landau afirma que Guedes “fracassou completamente” em sua reforma liberal. Diz que ele poderia, por exemplo, ter feito a abertura da economia do País, dado que, para isso, não é necessária aprovação do Congresso. “Era só enfrentar o lobby do empresariado.”
Crítica antiga do governo Bolsonaro, Landau também ataca a falta de avanço nas privatizações. “Só há uma obsessão com a agenda fiscal, como se ela resolvesse os problemas do Brasil. Tem de ter agenda de produtividade: privatização, abertura comercial, reforma administrativa. O Estado continua do tamanho que estava antes ou até maior, porque tem estatais prontas para serem criadas.”
Fábio Terra, por sua vez, diz que, até o fim do mandato de Bolsonaro, o País continuará com sua economia desgovernada. “Paulo Guedes faz um discurso insistentemente liberal, mas é preciso que saia da fala para construir isso politicamente, o que duvido que vá acontecer em 2021”, diz. “O Estado vai precisar permanecer em ação. As condições da crise não vão mudar e minha sensação é que a realidade será o limite da ideologia. Em 2020, já foi o Estado que impediu o setor privado de afundar”, acrescenta.
No mercado financeiro, o ceticismo em relação às grandes reformas no atual mandato também impera. Fontes consultadas pelo Estadão colocam que a corda está esticada. Apesar disso, não existe a percepção de que Guedes sairá antes do fim do mandato de Bolsonaro. A leitura é que o ministro seguirá à frente do Ministério da Economia mesmo que não consiga implementar nem uma parcela da sua agenda liberal vendida ao longo da campanha e no início do governo.
“O ano será de pressão do mercado em torno desses pontos, mas não existe a leitura de que Guedes poderá sair do governo”, diz uma fonte do alto escalão de um banco brasileiro.
Por outro lado, há um certo pedido de urgência na sinalização de que o governo, ao menos, garantirá o controle de gastos, mantendo a responsabilidade fiscal, após um ano em que teve de abrir a torneira em meio à pandemia para irrigar famílias que perderam as receitas na crise, por meio do auxílio-emergencial.
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