BRASÍLIA – O diretor de Política Comercial do Itamaraty, embaixador Fernando Pimentel, prevê um cenário negativo a partir de janeiro do ano que vem para as exportações brasileiras à União Europeia (UE). Segundo o diplomata, com o começo da aplicação da nova lei antidesmatamento do bloco, o simples risco de sanções poderá levar importadores a abandonar os fornecedores brasileiros.
Em entrevista ao Estadão, Pimentel disse ainda que eventuais punições, com banimento de produtos nacionais do mercado europeu e bloqueio de cargas, vão “azedar muito” as negociações paralelas do acordo entre Mercosul e União Europeia, que se arrastam há 25 anos.
“Trabalhamos para ter o menor nível de distúrbio possível no comércio, mas a gente não sabe como os europeus vão implementar (as sanções). Alguns dizem que haverá flexibilidade no começo. Num cenário onde a gente não consiga exportar, os bloqueios sejam frequentes, cargas contaminadas por um pequeno carregamento sejam rejeitadas, o clima de negociação fica muito azedo, muito prejudicado”, diz Pimentel, um dos negociadores do governo Luiz Inácio Lula da Silva.
O embaixador diz que a lei vem sendo colocada na mesa de negociação do acordo porque parte considerável dos ganhos que a economia brasileira terá, com o acesso ao mercado agrícola europeu, podem ser prejudicados com o fechamento via sanções.
A lei europeia para frear o desmatamento não estava no radar quando os dois blocos anunciaram, em 2019, a conclusão técnica do processo de negociação dos termos do acordo de livre comércio. Porém, ele nunca foi assinado e acabou sendo freado quando os europeus adicionaram exigências ambientais, enquanto a Amazônia registrava um período de crescentes incêndios florestais.
Lula tentou levar a assinatura adiante e encerrar a negociação no ano passado, mas fracassou em convencer a França a ignorar o lobby agrícola contrário.
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A situação das emissões é ainda mais grave em 2024, com recorde, em todos os biomas, de focos de queimada sem precedentes – o que pôs o governo em alerta e sob pressão, como admitiu a ministra Marina Silva (Meio Ambiente), ao falar sobre os esforços para controlar os incêndios no Pantanal.
Em paralelo ao acordo, a nova lei antidesmatamento (EUDR) entrou em vigor em junho de 2023. A aplicação das disposições sobre o desmatamento, com multas e outras punições, porém, passará a valer em 1º de janeiro de 2025.
Para o embaixador, o placar de aprovação da lei em abril do ano passado (552 votos a favor, 44 contra e 43 abstenções) não permite especular que a nova configuração do Parlamento Europeu favoreça mudanças. Ele avalia que a perda de espaço dos verdes, que reduz o ímpeto ambiental, será compensada pelo lobby protecionista agrícola, com maior representação da extrema direita.
“Pode ter atrasos, eles tropeçando nos próprios cadarços, como já estamos vendo na implementação da lei. Mas não um cenário de reversão. As eleições não configuraram uma virada desse tamanho”, diz Pimentel.
A União Europeia quer banir do seu mercado interno produtos com origem em terras desmatadas, uma forma de desincentivo à expansão de área de cultivos, principalmente nos países tropicais que ainda detêm florestas.
Mudanças no uso da terra (48%) e a produção agropecuária (27%) foram as principais fonte de emissões brutas de gases de efeito estufa no Brasil, em 2022, conforme estudo do Observatório do Clima.
A legislação mira nas cadeias produtivas de sete commodities: gado, madeira, cacau, soja, óleo de palma (azeite de dendê), café e borracha, assim como seus derivados, a exemplo de couro, chocolate, pneus e móveis.
Para serem vendidos nos 27 países da UE no ano que vem, as mercadorias não podem ter sido produzidas em áreas com qualquer tipo de desmatamento – legal ou ilegal – de 2020 em diante. Antes disso, poderiam vir de área de desmate autorizado, conforme previsto na lei nacional vigente.
O governo brasileiro realizou nesta terça-feira, 2, uma reunião ampliada com Estados e setor privado para unificar o discurso e compartilhar estratégias sobre como se adequar às disposições da lei europeia, evitando retrabalho.
Participaram os ministérios das Relações Exteriores, da Agricultura, do Meio Ambiente, dos Povos Indígenas, do Desenvolvimento, Indústria, Comércio e Serviços, a Câmara de Comércio Exterior (Camex), as secretarias de Agricultura dos Estados, as federações agrícolas e dos setores afetados.
Fernando Pimentel alerta que as exigências de controle de procedência recaem sobre os importadores europeus e podem fazer com que eles busquem fornecedores alternativos e deixem de comprar no Brasil. O ônus de provar a conformidade dos produtos estrangeiros vendidos no mercado europeu recai sobre o importador, que assume esse risco, explica o diplomata.
O embaixador relata que o governo federal e o setor privado estão preocupados com os impactos da nova lei, porque as autoridades europeias perderam prazos estabelecidos e não esclareceram informações detalhadas relativas à auditoria prévia nos fornecedores, que será exigida dos importadores. Apesar do atraso em relação à lista de conformidades, a data de aplicação das sanções permanece inalterada.
“Eles cobram dos importadores deles a chamada due diligence (diligência devida). O importador tem que ter certeza que não houve desmatamento a partir de 2020 e que a produção cumpre com a legislação socioambiental do país onde está onde está ocorrendo. Se não houver a diligência devida o importador incorrerá em multas pesadíssimas. O que é essa diligência devida? Qual que é o rigor? Quantas e quais certificações são necessárias?”, diz o embaixador.
Conforme a legislação, os produtores que desejem vender ao mercado da União Europeia precisarão atender as regras ambientais europeias e também o conjunto normativo socioambiental do país de origem dos produtos.
“No Brasil, a legislação é gigantesca. A gente vai ter uma grande dificuldade. Nosso produtor não anda por aí provando a inocência, sua conformidade com a lei, com a imposição internacional, a todo momento, a cada safra. Tampouco o produtor brasileiro sabe o que precisa fazer para atender as demandas dos importadores que, na dúvida do que fazer, têm grande chance, há um grande risco de overcompliance, de pedir cada vez mais coisas. Ou, se a aversão deles a risco for muito grande, podem mesmo sem nenhuma comprovação de desmatamento desistir e tomar o risco em outro país. O processo está opaco. Só a falta de informação pode impactar bastante nossas exportações para a União Europeia hoje”, avalia Pimentel.
‘Nada consta’ online
O governo brasileiro e o setor privado preveem que os importadores poderiam repassar aos fornecedores no País o custo de certificação com empresas privadas da própria Europa. Para evitar o impacto na concorrência e aumento de despesas, o governo pretende utilizar uma plataforma online já desenvolvida no Ministério da Agricultura e Pecuária.
O sistema agrega digitalmente informações de conformidade com as leis europeia e brasileira, oriunda de diversos órgãos, com processos trabalhistas, dados de satélites sobre área cultivada e ausência de área desmatada, entre outros. O uso da plataforma federal não seria cobrado das empresas.
Segundo o Itamaraty, os europeus se comprometeram a aceitar o “nada consta” emitido pelo sistema governo federal. Um dos argumentos usados na negociação para que fosse aprovado é que a exigência de certificação privada – e europeia – poderia ter o “efeito colateral” de favorecer a concentração fundiária no País. Os grandes fornecedores teriam condições de custear a auditoria prévia com empresas especializadas, mas os pequenos negócios, não. Ainda, convenceram de que o Brasil possui expertise e respeitabilidade na análise de dados de satélite do Prodes.
Segundo o governo, algumas tecnologias europeias de captação e análise de imagens apresentaram problemas ao diferenciar pés de café e mata.
“A lei foi concebida com grande ambição ambiental, mas com pouca atenção aos processos produtivos dentro da fazenda, no chão de fábrica, e com menor atenção a particularidades da agricultura tropical avançada”, opina o diretor de Política Comercial. “É um direito do produtor brasileiro poder comprovar que ele não viola a lei. A custo zero. Havia o risco de que somente imagens e companhias europeias fizessem essa certificação. Poderia ser um negócio bilionário. A tecnologia e os dados oficiais nacionais serão utilizáveis e têm que ser preferenciais, porque tem a chancela do governo brasileiro.”
Embora o governo Lula proteste contra a legislação da UE, o embaixador e representantes do setor produtivo que conversaram com o Estadão dizem que este é um “caminho sem volta” por causa da mudança climática. Eles entendem que o agronegócio brasileiro precisa se adequar, porque outros países seguem o mesmo rumo dos europeus e, no futuro, implementarão barreiras a produtos não-certificados.
A corrente de comércio entre Brasil e União Europeia foi de US$ 91,7 bilhões, com superávit de US$ 876 milhões, no ano passado. No primeiro semestre de 2024, atingiu US$ 38,6 bilhões, com déficit de US$ 271 milhões. Tomado em conjunto, o bloco é o segundo parceiro comercial do País. Dos produtos do agro, destacam-se soja e farelo de soja, café não torrado, celulose, sucos de frutas, tabaco, entre outros.
A Confederação Nacional da Agricultura (CNA) estima que 34% da pauta exportadora brasileira para a União Europeia está exposta ao risco de sanções, com base na lei antidesmatamento.
OMC
O embaixador Fernando Pimentel afirma que o Brasil, enquanto se prepara para a implementação das sanções, vai seguir questionando diplomaticamente a lei antidesmatamento europeia. O governo Lula não descarta que, no futuro, o caso seja levado como contencioso à Organização Mundial do Comércio (OMC), de forma fundamentada, caso fique demonstrado dano comercial ao País, ao longo dos anos.
“Esse é sem dúvida um caso importante e grande, que pode levar décadas. A OMC não tem agilidade para resolver essas questões. E, agora, não tem funcionado muito bem. Não dá para esperar dez anos com bloqueios injustificados no mercado europeu. A gente não descarta acionar a OMC, mas primeiro temos que examinar, com a lei em vigor, para poder levar um caso robusto”, diz o embaixador.
Governo e setor produtivo dizem que a legislação é punitiva, impositiva e discriminatória, de forma unilateral. Os europeus negam.
“Já lideramos duas cartas: uma assinada por 12 e outra por 17 países em desenvolvimento que estão incomodados. Continuamos a levantar os problemas da lei nos foros internacionais. Trabalhar de forma pragmática para superar as barreiras não quer dizer que a gente endossa ou acha que a lei europeia faça sentido, nem que ela seja benéfica para combater o desmatamento. Tem o risco de efeitos colaterais negativos.”
Essa questão também vem sendo discutida pela representação brasileira em reuniões globais como a Cúpula do Clima (COP) e o G-20. A diplomacia nacional lembra que os países desenvolvidos – como os europeus – admitiram a maior responsabilidade sobre emissões históricas, prometeram ajudar com US$ 100 bilhões anuais – e jamais alcançado – e agora adotam punições.
“O valor de ajuda nunca veio e passamos disso para uma lógica punitiva porque a emergência é muito grande. É ruim para os dois lados”, diz Pimentel. “Quebra a confiança na ação climática, que só vai funcionar se houver engajamento sincero. Esse tipo de ação é contraproducente.”
Os europeus alegam, no entanto, que, como a legislação se aplica a todos os produtos em circulação no mercado – inclusive os de origem europeia –, não haveria o caráter discriminatório apontado pelo Brasil, o que impediria levar a questão a um contencioso na OMC.
Para a CNA, a lei tem brechas para discriminar produtos do agronegócio, porque prevê que a UE, com base em critérios definidos por ela, classifique os países em grau de risco, com base em critérios como taxa de desmatamento, expansão de terras agrícolas e tendência de produção. As sanções ao importador serão mais pesadas a depender do grau de risco do país de origem do produto.
Houve intensa reclamação do Brasil e outros países exportadores por causa da classificação de risco: alto, baixo ou padrão. Por enquanto, conforme o embaixador, os europeus ainda não conseguiram desenvolver uma metodologia com critérios transparentes. Todos os países, por tempo indeterminado, serão considerados de risco padrão.
O Brasil questiona também os conceitos que embasaram a legislação europeia. A lei antidesmatamento usa um conceito de floresta da FAO (Organização das Nações Unidas para a Agricultura e Alimentação). Segundo esse critério, floresta é toda “área medindo mais de 0,5 hectare com árvores maiores que 5 metros de altura e cobertura de copa superior a 10%, ou árvores capazes de alcançar estes parâmetros”.
A norma não difere o desmatamento legal do ilegal no Brasil. Com base nos critérios previstos no Código Florestal, a área da reserva legal (que deve ser mantida com cobertura vegetal nativa) varia conforme o bioma, representando de 80% a 20% da área de uma propriedade.
Pelos critérios da lei, o eucalipto reflorestado para ser usado como matéria-prima na agroindústria, com rodízio de culturas, e que fosse cortado acabariam sendo enquadrado como desmate de floresta, argumentam o governo.
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