O economista Eduardo Giannetti avalia que o quadro econômico piorou do ano passado para cá. Se antes avaliava que o governo Lula vencia a batalha das expectativas, hoje, diz que o cenário é mais difícil diante da mudança das metas fiscais promovida pela equipe econômica e da previsão de que os juros nos Estados Unidos fiquem mais altos por um período prolongado.
“O quadro fiscal brasileiro parece cada vez mais preocupante”, afirma.
Giannetti diz que o País “está amarrado a uma espécie de Lei de Say das finanças públicas”. O nome Say tem origem no economista francês Jean-Baptiste Say. Ele formulou uma teoria, segundo a qual a oferta criaria sua própria demanda. Portanto, ao serem remunerados, trabalhadores e empresários iriam optar por gastar.
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“No Brasil, nós inventamos uma nova lei. É a Lei de Say das finanças públicas. A arrecadação cria a sua própria despesa. O dinheiro público já está gasto antes de ser arrecadado e nós precisamos sair disso”, diz.
Na avaliação de Giannetti, se o governo quiser alcançar o ajuste das contas públicas, precisa discutir e avançar com a desvinculação de benefícios previdenciários e sociais do reajuste do salário mínimo, como passou a ser defendido pela ministra do Planejamento, Simone Tebet.
“O problema é que nós estamos com um orçamento completamente enrijecido e imune às decisões e às prioridades”, afirma Giannetti, que atuou como conselheiro econômico de Marina Silva, atual ministra do Meio Ambiente, em campanhas presidenciais.
“A ideia do Ministério da Fazenda de cumprir o arcabouço fiscal pelo lado da arrecadação não resolve o problema. Nós vamos ter de repensar as vinculações constitucionais e mecanismos automáticos de correção de Previdência e benefícios sociais”, acrescenta.
A seguir os principais trechos da entrevista concedida ao Estadão.
No ano passado, o sr. disse que o governo vencia a batalha das expectativas depois de um início claudicante. Esse cenário continua?
Em 2024, o quadro mudou. Eu acho que o governo saiu com a sua capacidade de comandar as expectativas abalada por conta da revisão das metas previstas pelo novo arcabouço fiscal e num momento em que o cenário externo apresentou uma piora diante dos números ruins da inflação americana, que acabaram levando a uma postergação longa dos juros necessários para trazer a inflação dos EUA de volta para meta. De fato, essa combinação fez com que o Brasil, mais do que outros mercados emergentes, tenha sofrido um abalo. O quadro fiscal brasileiro parece cada vez mais preocupante.
E por que é preocupante?
Talvez, a mensagem central que eu tenha a dizer em relação à questão fiscal brasileira possa ser introduzida com uma ideia que eu tive e que é a seguinte. Durante muito tempo, a teoria econômica trabalhou uma lei chamada Lei de Say. O nome Say vem de Jean-Baptiste Say, um economista francês que formulou uma ideia que parece muito plausível, segundo a qual a oferta cria sua própria demanda. Ao produzir, você remunera os fatores de produção. O que os trabalhadores, os empresários e os prestadores de serviço recebem, ao serem remunerados, vão gastar e, portanto, a oferta cria sua própria demanda.
Até que economistas muito importantes questionaram a Lei de Say. Um deles foi Malthus e, depois, John Maynard Keynes. A oferta não cria automaticamente a sua própria demanda, porque tanto trabalhadores como empresários como profissionais liberais podem não gastar toda sua renda na aquisição de bens e serviços gerados. Você teria uma insuficiência de demanda que não preencheria e não compraria toda a oferta produzida.
E como ela se relaciona com o Brasil de hoje?
No Brasil, nós inventamos uma nova lei. É a Lei de Say das finanças públicas. A arrecadação cria a sua própria despesa. O dinheiro público já está gasto antes de ser arrecadado e nós precisamos sair disso.
Qual é a origem desse problema?
Isso vem das vinculações que foram colocadas na Constituição de 88: 18% da arrecadação federal está gasta obrigatoriamente em educação, 15% da receita tributária dos três níveis de governo está gasta em saúde. Isso tudo poderia até se justificar se nós tivéssemos resultados educacionais maravilhosos, mas está longe de ser esse o caso. Países que gastam muito menos em educação proporcionalmente ao PIB têm resultados melhores que o Brasil.
O problema é que nós estamos com um orçamento completamente enrijecido e imune às decisões e às prioridades. Ele não permite um exercício natural do governo, de estabelecer prioridades e fazer uma alocação de recursos de acordo com a sua necessidade e a sua maior eficiência. O aspecto que eu queria complementar disso é a questão do atrelamento do gasto obrigatório do governo ao salário mínimo. E é uma outra maluquice.
Por quê?
Você tem benefícios previdenciários e assistenciais atrelados à política de ganhos reais do salário mínimo. R$ 1 de aumento do salário mínimo impacta em R$ 385 milhões em gastos adicionais de Previdência e assistência social. O governo Lula tem uma ideia perfeitamente legítima de promover uma política de ganho real do salário mínimo. Agora, atrelar isso a todos o gastos previdenciários e a todos os benefícios sociais gera uma bola de neve e leva as finanças públicas para uma situação insustentável.
Estamos numa situação em que 91% do total dos gastos federais em 2025 é gasto obrigatório, despesa obrigatória, e 9% é o chamado gasto discricionário, que inclui todo o investimento do setor público. Esse número vai piorar nos próximos anos. Em 2028, pela própria LDO (Lei de Diretrizes Orçamentárias), serão 95% das despesas obrigatórias e, pela simulação do Tesouro Nacional divulgada em março, em 2030, serão 100% os gastos obrigatórios.
Essa conta não fecha...
O Brasil, então, não vai investir mais? É zero? O sistema público de arrecadação é só para transferir recursos sem nenhum tipo de escolha? Nas despesas obrigatórias, estão salários, aposentadorias, benefícios assistenciais, gastos obrigatórios com educação e saúde. Então, a gente está amarrado a uma espécie de Lei de Say das finanças públicas. O dinheiro público no Brasil já está gasto antes de ser arrecadado.
A ideia do Ministério da Fazenda de cumprir o arcabouço fiscal pelo lado da arrecadação não resolve o problema. Nós vamos ter de repensar as vinculações constitucionais e mecanismos automáticos de correção de Previdência e benefícios sociais. Quem está defendendo isso dentro do governo é a Simone Tebet. Eu acho que ela está correta. Eu devo dizer que, na campanha presidencial de 2018, a equipe da Marina Silva já defendia (essa ideia) com muita coragem naquele momento. Politicamente (esse tema) é muito difícil de ser apresentado e legitimado, mas nós já defendíamos com absoluta clareza isso - provavelmente para espanto dos nossos adversários que acharam, talvez, com alguma razão, que a gente estava cometendo suicídio eleitoral.
O que significa em termos práticos essa sua preocupação com as contas públicas?
O mercado financeiro não espera as coisas acontecerem para agir. Se por acaso se fixar a expectativa de que estamos num caminho fiscal explosivo, com aumento muito forte da dívida pública, isso provavelmente levará a uma pressão sobre o câmbio, que, inclusive, já retrocedeu este ano por conta do abalo da credibilidade da política fiscal e do fator externo. Ao pressionar o câmbio, se houver uma desvalorização mais forte, você vai ter imediatamente um impacto inflacionário e, se houver o impacto inflacionário, a redução dos juros prevista para os próximos meses - que já é menor do que se imaginava - vai virar o seu contrário. Para cumprir a meta de inflação, o Banco Central vai ter de aumentar o juro. Se aumentar o juro com estoque de dívida que nós já temos, aí, de fato, a coisa começa a escapar do controle.
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Parece com o governo Dilma?
Não. Não acho que estamos numa trajetória de governo Dilma. Temos uma equipe econômica muito diferente e melhor do ponto de vista de racionalidade e prudência, mas ela dá sinais de estar um pouco isolada dentro do próprio governo e dentro dos poderes porque, tanto Legislativo como Judiciário, vem dando sinais muito preocupantes de querer atropelar qualquer movimento de responsabilidade em relação ao gasto público. Eu não preciso nem mencionar aquela proposta absolutamente estapafúrdia do quinquênio do Judiciário que, num momento tão delicado como esse, seria a última coisa que o Brasil precisa e que lamentavelmente foi encapada por parlamentares de primeiríssima ordem dentro do Congresso.
O governo não tem nenhum outro caminho a não ser adotar a agenda da Tebet?
Essa agenda é muito fundamental. Lógico que a reforma tributária, se for aprovada, vai trazer benefícios numa frente ligada ao investimento. Cria uma previsibilidade em termos de constituição tributária, que é fundamental como ambiente de negócios para o nível de investimento voltar. Mas, do ponto de vista fiscal, já sabemos a essa altura que não fecha (a conta) imaginar que só com um esforço de arrecadação você vai cumprir o que foi contratado no novo arcabouço fiscal.
Uma parte do PT já criticou bastante essa agenda. O sr. imagina que o presidente Lula vai aceitar essa agenda?
Eu percebo claramente que, no jogo de forças interno ao governo Lula, há uma divisão em relação a isso. Por que o que é o governo Lula no fundo? O Lula arbitra entre dois grupos abrigados dentro do poder federal Executivo. Tem o que eu chamo de PT raiz e tem um grupo do centro liberal. A área da economia ficou bastante alinhada com o centro liberal, mas tem outros setores do governo com uma visão mais afinada com aquela ideia desenvolvimentista desastrada que valeu durante o governo Dilma.
Se mudar a equipe econômica, eu acho que aí apertem os cintos, porque a alternativa que está colocada é uma recaída naquele desenvolvimentismo desastrado que se revelou durante o governo Dilma, de uma incompetência épica e que nos levou a maior recessão certamente desde o início dos anos de 1980, além do descontrole da dívida pública e de toda a dificuldade que foi para o Brasil resgatar a sua condição de ordenamento das contas. Agora, o fato é que, depois de a gente destruir a Lei de Responsabilidade Fiscal, depois de destruir a lei do teto dos gastos, o novo arcabouço fiscal está sob risco de morte precoce. Não acho que esse jogo já foi jogado, mas certamente o cenário que a gente imaginava mais otimista no final do ano passado sofreu um revés por conta da combinação que descrevi no início.
Com o isolamento do Haddad, de onde pode vir uma mudança na perspectiva fiscal? Todo sinal até agora é na perspectiva contrária.
Muitas vezes a mudança vem por uma percepção de que a situação está se agravando. É a pedagogia do medo. Eu gostava muito daquela frase do Lula de quando foi eleito no primeiro mandato. Ele dizia: ‘Isso daqui não pode dar errado’. Tanto que, no início do primeiro mandato, aumentou o superávit primário em relação ao que vinha sendo praticado no final do governo Fernando Henrique Cardoso. Ele (Lula) colocou no Banco Central uma equipe - não tinha autonomia do BC naquela época - que se mostrou extremamente, talvez até excessivamente, prudente e ciosa de cumprir meta de inflação. Agora, o Lula precisaria voltar para aquele momento, do início do primeiro mandato, de perceber que com o Banco Central e com as contas públicas não se brinca. O espaço é estreito, porque o mercado financeiro antecipa e age com muita contundência quando ele firma uma expectativa ruim. Um momento que vai ser muito delicado e que vai ser muito sinalizador do que paira à frente é a mudança prevista e a nomeação do novo presidente do Banco Central.
Por enquanto, o sr. vê um risco teórico? Na prática, as coisas estão seguindo dentro da regra do jogo?
Nós estamos com as contas externas positivas e saudáveis. Temos um Banco Central independente sobre o qual não há dúvida sobre a sua autonomia. Temos uma reforma tributária encaminhada que pode ser uma melhoria expressiva no nosso ambiente de negócios. O que desperta a apreensão em relação à macroeconomia brasileira é fundamentalmente o gasto público e a nossa Lei de Say das finanças públicas. Isso realmente estrangula completamente a nossa capacidade de decisão e de uso adequado dos 34% do PIB que o Estado brasileiro arrecada. Eu não me canso de ficar chocado de lembrar que nós estamos em pleno século XXI com cerca da metade dos domicílios brasileiros sem coleta de esgoto num Estado que arrecada mais de um terço da renda nacional. É um problema de saúde pública. É um problema de dignidade humana. É um problema de educação, porque piora a qualidade da formação do cérebro na primeira infância e o País não atenta para isso.
O sr. traçou um cenário por pressão de gasto tanto de parte do PT como do Legislativo e do Judiciário. Há um cenário de queda da popularidade do presidente e temos eleição municipal. A polarização vai dificultar o ajuste das contas públicas?
O fato de ser um ano eleitoral não ajuda. A polarização não precisa ser um problema. Do ponto de vista lógico, a questão da desvinculação constitucional dos gastos obrigatórios e do desatrelamento da Previdência e dos benefícios sociais do salário mínimo não polariza. É algo que qualquer analista interessado em melhorar a condição das finanças públicas brasileira obrigatoriamente identifica. Nós gastamos com proporção do PIB muito mais do que a média dos países de renda média e temos resultados educacionais muito abaixo. Se essa vinculação obrigatória redundasse em resultados educacionais espetaculares, vá lá, mas está longe de ser o caso.
A expectativa é que a dívida bruta do País estabilize por volta de 2030. Esse cenário é preocupante e o País deveria revertê-lo?
A simulação do Tesouro indica que, em 2030, 100% do gasto público será obrigatório. Isso não vai acontecer. Como é que vai financiar o custeio e o investimento que não pode ser comprimido? Vai ter de ser com dívida. Esses números da Lei de Diretrizes Orçamentárias não são consistentes com a estabilização da dívida pública, a não ser que a gente faça uma revisão do gasto público no atacado, não no varejo.
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