“Com as tecnologias exponenciais o cenário competitivo que vivemos está cada dia mais complicado”, afirma Nick Davis, Vice-Presidente de Soluções Empresariais e Inovação na Singularity University (SU), destacando: “If necessity is the mother of invention, exponential change is the mother of reinvention”.
Tecnologias inovadoras estão emergindo mais rapidamente, resultando na reinvenção de todas as organizações e setores. E exemplifica com casos lendários como o telefone fixo que demorou 75 anos para que o seu uso atingisse 50 milhões de usuários.
Já a adoção de telefones celulares levou 12 anos para atingir a mesma marca. E o Pokémon GO alcançou 50 milhões de usuários em apenas 19 dias. Davis também monitora diversas tecnologias de alto impacto que têm o potencial de transformar todos os tipos de indústrias — e transformá-las mais rapidamente do que nunca.
E pergunta: “Você está monitorando essas tendências e tem uma estratégia sobre como aproveitar essas tecnologias?” Também enfatiza que hoje em dia, não é apenas o seu próprio setor que precisa ser monitorado. As tecnologias exponenciais também permitem a disrupção de indústrias adjacentes.
Pesquisa realizada pela SU mostrou que existe uma lacuna alarmante entre as organizações que afirmam priorizar a inovação e aquelas que realmente criaram um plano de inovação, uma vez que 70% das organizações pesquisadas tratam a inovação como uma prioridade estratégica, mas apenas 34% têm um plano de ação documentado para implementar uma estratégia de inovação.
Michael G. Jacobides professor de estratégia na London Business School em artigo publicado em 2013 pela Harvard Business Review sublinhou uma nova verdade para a época sobre o cenário competitivo, e que vale até os dias de hoje: o sucesso ou o fracasso não é uma função de um bom produto ou serviço, ou de uma empresa bem gerida, rentável e com uma estrutura de capital sólida. Além disso, requer uma estratégia eficaz para gerenciar o seu ecossistema.
E exemplificou com a ascensão e queda do BlackBerry. A BlackBerry Limited, inicialmente conhecida como Research In Motion (RIM), era uma empresa canadense de tecnologia que ganhou destaque no início dos anos 2000 por seus dispositivos móveis inovadores e serviços de comunicação.
Você leitor deve estar se perguntando qual a razão de eu ressuscitar o caso do BlackBerry. É simples: trata-se do fato de ter sido lançado recentemente no Brasil o filme BlackBerry, dirigido por Matt Johnson, e escrito por ele, por Jacquie McNish e Sean Silcoff, estes dois últimos autores do livro “Losing the Signal: The Untold Story Behind the Extraordinary Rise and Spectacular Fall of BlackBerry”, no qual se baseia o filme, que explora a história do crescimento meteórico e da queda trágica do primeiro smartphone do mundo.
O longa inicia-se na década de 1990, quando o engenheiro Mike Lazaridis, interpretado por Jay Baruchel, apresenta a uma empresa sua mais nova empreitada: colocar um computador dentro de um telefone celular. Boa parte do filme mostra Lazaridis, e Doug Fregin, interpretado por Matt Johnson, tendo ideias e vivendo um período como inovadores no mercado de telefones celulares. É interessante ver como a dupla e seus engenheiros canadenses conseguiram alterar boa parte da forma como a troca de mensagens em dispositivos móveis era encarada até boa parte dos anos 2000.
Michael Lazaridis, um estudante de engenharia da Universidade de Waterloo, ganhou vários prêmios por suas inovações técnicas. Destes avanços nasceu em 1984 a RIM, companhia que mudou a cara da telefonia mundial graças ao lançamento do primeiro telefone que funcionava efetivamente como um smartphone no mercado. Lazaridis e Fregin tinham o conhecimento técnico, mas claramente não tinham o tino e as competências de vendas. Entrou em cena então Jim Balsillie, um MBA de Harvard, para administrar as operações comerciais. Balsillie foi nomeado co-CEO e, como Lazaridis, tornou-se bilionário com suas ações.
Depois de lutar durante anos para desenvolver um dispositivo de e-mail, a RIM lançou seu primeiro produto BlackBerry em 1999 e listou suas ações na NASDAQ. O objetivo era criar a primeira solução completa para acessar e-mail corporativo e gerenciamento de informações pessoais a partir de um único dispositivo portátil. Além de simplificar o acesso remoto ao e-mail, atendia a requisitos corporativos cruciais em relação ao desempenho, à confiabilidade, à segurança, à funcionalidade e ao suporte.
O BlackBerry combinava tecnologia de dispositivos sem fio líder do setor, software inovador e redes sem fio avançadas para oferecer um grande salto em mobilidade. O usuário beneficiava-se de uma solução completa com uma fatura mensal simples e fixa e um único ponto de contato para suporte em todos os aspectos da solução de e-mail móvel – incluindo software de desktop, dispositivo portátil, cobrança e rede sem fio.
Ao cabo de um ano, o produto foi um grande sucesso. O BlackBerry era o aparelho do momento na América do Norte. Embora não tenham sido tão populares no Brasil, dominaram 43% do mercado de telefonia móvel mundial. Destaque-se que à época em que foi presidente, Barack Obama foi seu ilustre garoto propaganda, tendo certa feita declarado: “Eles vão tirar isso das minhas mãos”, foi como ele descreveu seu esforço para manter seu BlackBerry. Para Obama, usar seu Blackberry era uma forma de manter contato. “Olha, é a coisa mais difícil de ser presidente. Como você fica em contato com o fluxo do dia a dia...”
O filme evolui mostrando a trajetória descendente resultado do lançamento de um pequeno aparelho conhecido como iPhone. Vale lembrar que o Blackberry teve seus momentos de grande sucesso e foi pioneiro em muitas das funcionalidades que associamos hoje aos smartphones modernos. É basicamente a história da criação de uma indústria que pavimentou a estrada para outros rodarem: smartphones Android e iPhones da Apple, que ofereciam uma experiência de usuário mais ampla e aplicativos diversos. Infelizmente, a RIM não conseguiu acompanhar as mudanças do mercado.
Atento aos sinais e discordando dos rumos dados à RIM, Fregin aposentou-se do cargo de vice-presidente de operações em 2007, e vendeu todas as suas ações na mesma época em que a Apple lançou o primeiro iPhone, e é bilionário até os dias atuais. Em 2012 Jim Balsillie e Mike Lazaridis deixam a presidência da empresa e não mais figuram na lista de bilionários da revista Forbes.
Embora não seja mais uma líder no mercado de smartphones, a empresa mantém uma presença significativa no setor de segurança cibernética e serviços empresariais.
Que lições podemos tirar desta história?
Falta de monitoramento da concorrência intensa e falta de inovação foram cruciais para a derrocada da empresa. Enquanto concorrentes como Apple e Google continuavam inovando rapidamente com novas funcionalidades e interfaces mais amigáveis, a RIM se manteve muito tempo com um design e funcionalidades quase inalterados.
Quando questionado em uma entrevista sobre o iPhone, Lazaridis, disse: “Quanta presença a Apple tem nos negócios? É extremamente pequena.” Lazaridis esperava que o teclado do BlackBerry continuasse a ser uma vantagem competitiva. Referindo-se ao iPhone, ele comentou: “Eu não consigo digitar nele, e muitos dos meus amigos também não conseguem…É difícil digitar em um pedaço de vidro”.
Clássica arrogância! A entrada desses concorrentes fortes reduziu rapidamente a participação de mercado do BlackBerry. A ascensão meteórica, o sucesso excessivo e a prepotência fizeram com que a empresa tomasse algumas decisões estratégicas questionáveis ao longo dos anos, incluindo atrasos no lançamento de novos produtos e o fato de não ouvir o feedback dos usuários. A liderança tornou-se complacente, desprezando a nova onda de inovação disruptiva que vinha dos rivais.
Quanto ao Sistema Operacional, o do BlackBerry era menos intuitivo e flexível em comparação com o iOS da Apple e o Android do Google. Além disso, a empresa foi lenta em responder às necessidades dos desenvolvedores de apps e usuários. Justamente uma das maiores vantagens do iOS e Android era a grande variedade de aplicativos disponíveis para essas plataformas. O BlackBerry tinha uma seleção limitada, o que o tornava menos atrativo para os consumidores.
O BlackBerry inicialmente focou no mercado corporativo, oferecendo recursos como o serviço de e-mail seguro BlackBerry Enterprise Server (BES). No entanto, com o passar do tempo, consumidores comuns passaram a ser um mercado mais amplo para smartphones, e a empresa não conseguiu atrair esse público tão efetivamente quanto seus concorrentes.
Resistência à mudança foi fatídica, uma vez que por muito tempo, a RIM manteve-se fiel ao teclado físico, enquanto o mercado movia-se claramente para telas sensíveis ao toque. O preciosismo de suas ideias e decisões fez com que seus produtos ficassem para trás. Talvez o rumo da história fosse outro se Lazaridis e Fregin tivessem cedido às mudanças dos tempos, se adaptando e continuando a inovar como fizeram no passado.
O ambiente e o clima organizacional tornaram-se turbulentos com excesso de fusões e aquisições. E houve muitos conflitos entre os co-CEOs sobre a estratégia a ser adotada. Funcionários antigos começaram a deixar a empresa. Lazaridis e Balsillie começaram a formar facções com suas próprias visões. Missão, visão e propósito foram perdendo o foco e o alinhamento estratégico. O esfacelamento da estratégia e da cultura organizacional foi inevitável. Vários outros executivos seniores deixaram a empresa em 2011. A fragilidade do modelo de governança tornou a empresa incapaz de se reorientar.
Retomando as palavras de Davis, é fundamental que todas as empresas de todos os setores se reinventem. Para tanto, é crucial monitorar as tendências e ter uma estratégia sobre como aproveitar as tecnologias exponenciais nos negócios. Também não basta apenas afirmar que inovação é uma prioridade estratégica. É mandatório elaborar um plano de inovação documentado. O ritmo da mudança tecnológica é exponencial e acelerado, por isso, todas as organizações são desafiadas a se reinventarem.
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