Especial para o Estado
As casas geminadas e os sobrados construídos ainda antes da industrialização já foram marcas importantes de bairros de São Paulo. Demolidos, muitos deram espaço a arranha-céus em um processo de verticalização e transformação urbanística. Mas na Rua João Moura, em Pinheiros, na zona oeste da capital paulista, a reutilização de um terreno com construções antigas chama a atenção de quem passa pela região. Na altura do número 931, desponta um empreendimento comercial de ar contemporâneo que preserva a fachada de oito casinhas da década de 1920.
Considerado um bairro com vasta diversidade de construções, Pinheiros tem na sua história uma presença forte de casas em vilas ou conjuntos, conforme conta o professor de arquitetura e urbanismo da Fundação Armando Álvares Penteado (FAAP) Márcio Novaes Coelho Jr.
"A cidade como um todo tem essa forma de habitação como uma característica forte no passado. Terrenos maiores eram loteados para a construção desses conjuntos, que costumavam ser casas de aluguel para o público de classe média."
De fácil acesso ao resto da cidade, Pinheiros figura entre os mais tradicionais de São Paulo. Aparece como o 12º melhor bairro para se viver na capital, com base em uma pesquisa da administradora de condomínios LAR.app. Por outro lado, é caro viver ali - o preço anual do metro quadrado é de R$ 681,42 para aluguel; na lista dos bairros mais baratos para inquilinos, ele está na longínqua 35ª posição.
Mesmo com esse apelo, Pinheiros vê uma queda nos lançamentos imobiliários. Os residenciais vêm sofrendo uma queda desde 2017, quando o bairro registrou 1.394 lançamentos. Em 2019, até setembro, foram 743, segundo o Secovi-SP (sindicato da habitação). Entre os empreendimentos comerciais, a queda foi de 21.060 (em 2018) para 13.072 até agora, segundo a consultoria Cushman.
Projeto familiar
Dialogar com a São Paulo antiga foi a ideia que norteou a criação do edifício que fica na Rua João Moura, projetado pela Kruchin Arquitetura. A empresa é conhecida por projetos de preservação de patrimônio, como o restauro do Palácio da Justiça.
Em Pinheiros, a proposta é a construção de um empreendimento comercial contemporâneo e tecnológico que possa atender as necessidades do bairro, mas que, ao mesmo tempo, preserve o vínculo histórico e a memória arquitetônica. Não à toa, o prédio leva o nome da última proprietária do antigo conjunto, Edith Blumenthal.
A história de Edith com o conjunto de casinhas foi o que deu origem ao projeto. Seu filho, o engenheiro agrônomo Marcelo Arnhold, conta que a ideia de construir o empreendimento veio da família justamente para preservar o DNA do local. Edith veio ainda criança com a família da Alemanha para o Brasil e morou por muito tempo no número 941 da rua. Quase 40 anos após terem se mudado da região, ela comprou a casa 923, além das 941, 931, 933 e 921. A sociedade Blumenthal, que encabeça a construção, é formada por familiares e amigos, que se uniram com o único objetivo de realizar esse projeto, em conjunto com a Kruchin Arquitetura.
Em uma área de aproximadamente 2.600 m², o projeto traz uma construção que aposta nos brises - elementos arquitetônicos para controlar a incidência de luz e que garantem ainda a vista do interior para o ambiente externo. A obra está levantando um prédio de seis andares que vem atraindo olhares curiosos de quem passa pela região.
Segundo o arquiteto responsável pelo projeto, Samuel Kruchin, o prédio chega para dar um destino à área, que contava há algum tempo com casas já vazias.
"O projeto teve o cuidado de se contextualizar ao entorno. O bairro era repleto dessas casinhas e, em geral, as incorporadoras acabam derrubando esses registros. Nós não quisemos interromper a estrutura daquela rua. Preferimos manter o vínculo histórico do lugar criando dois planos de percepção: o de quem passa pela rua e vê o casario contínuo e outro de quem se depara com o edifício por trás desse conjunto", diz o arquiteto.
Já na opinião do professor Márcio, construções desse tipo funcionam na contramão da preservação dos imóveis por transformar um patrimônio em um mero cenário. Assim, seriam desconsiderados os valores da memória e da história local.
"Eu acho importante preservar essas construções porque elas estão desaparecendo em uma velocidade assustadora. Mas, no meu entendimento de preservação, deixar só a cara de um patrimônio é um tratamento raso e superficial, perde o sentido", avalia.
Na visão do arquiteto responsável pela obra, no entanto, como o "patrimônio" em questão não se refere a um imóvel tombado, fica registrada a homenagem à memória do lugar e da família justamente por conta da preservação da fachada.
"Trata-se de uma colagem, um fragmento do tempo a dialogar com a escala contemporânea. É outra linguagem", diz Samuel Kruchin. "Não há critérios de preservação aqui, há linguagem da arquitetura contemporânea em diálogo com resquícios de história, não com patrimônios preservados."
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