Real 30 anos: brasileiros contam como era viver em busca da estabilidade econômica

Estoques de alimentos, fiscais do Sarney e confisco do governo Fernando Collor marcaram os anos anteriores ao início do plano econômico

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Foto do author Adriana Victorino
Atualização:

A hiperinflação que assolou o Brasil nas décadas de 80 e 90 ainda está na memória de muitos brasileiros. Era um drama diário para a maior parte da população, que via a renda ser corroída rapidamente, limitando o consumo. Como dizem os economistas, era um passo para frente e dois para trás.

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“Depois que passa, é que você se pergunta: ‘Como conseguimos viver numa sociedade tão instável?’”, relata a empresária Concepción Lozano, de 65 anos. “Quando estamos vivendo isso (hiperinflação), não vemos que é tão grave, nos acostumamos. Mas é uma roda-viva, um círculo vicioso.”

A família Lozano, de origem espanhola, costumava estocar alimentos em casa, já que os preços aumentavam de um dia para o outro. “Comprávamos cinco pacotes de arroz e guardávamos na despensa, mas nem todo mundo conseguia fazer isso”, relata.

Concepcíon Lozano Cortés da Silva conta suas lembranças da época da hiperinflação, plano Collor e da implementação do Plano Real há 30 anos Foto: Daniel Teixeira/Estadão

Terezinha Pereira, de 68 anos, era uma dessas pessoas. “Às vezes nem dava pra comprar o básico. Não tinha dinheiro, então comprava só o necessário.” Para conseguir adquirir produtos para o dia a dia, Terezinha se atentava às notícias que circulavam pela vizinhança. Assim que ouvia falar sobre as remarcações, corria até o mercado para fazer as compras antes do aumento dos preços.

“Mas nem sempre adiantava, chegávamos no mercado, e aquelas pessoas que remarcavam os preços estavam lá sentadas com a maquininha, fazendo aquele barulhinho”, conta Terezinha.

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A funcionária pública Maria Bueno, de 62 anos, trabalhava na Cooperativa da Volkswagen e fazia essas remarcações. No momento em que os produtos chegavam até ela, era necessário checar na listagem e corrigir os valores. “Se a mercadoria chegasse duas vezes por dia, duas vezes por dia ela aumentava, sempre vinha com um preço novo. Algumas vezes, nós virávamos a noite fazendo remarcação”.

Os reajustes aconteciam com tanta frequência que o ato de apenas colocar os preços nos produtos era visto como remarcação. “Às vezes, pegávamos a maquininha para colocar o preço, e as pessoas já vinham pra cima de nós, falavam: ‘Está remarcando ali!’. Na verdade, estávamos apenas colocando os preços”, relembra Maria.

O professor de Economia da Fundação Getúlio Vargas (FGV) Marcelo Kfoury explica que um dos problemas da hiperinflação é que, com a variação grande dos preços, a população perde referência de comparação. Ainda assim, o País aprendeu a conviver com a inflação de forma diária.

O dragão da inflação

Quando José Sarney assumiu a presidência do Brasil, em 1985, a inflação no País atingiu 230% ao ano. Para tentar solucionar o problema, Sarney contou com quatro ministros da Fazenda e planos econômicos. Até 1989, a população assistiu às chegadas dos planos Cruzado, Cruzado Novo, Bresser e Verão e lidou com três mudanças de moeda. Primeiro o Cruzeiro (Cr$), passando para o Cruzado (CZ$) e, por fim, o Cruzado Novo (NCZ$).

“Você tinha de usar uma calculadora para converter as coisas. Nós ficávamos com muita pena das pessoas que não entendiam direito, porque poderiam ser facilmente enganadas”, conta Lúcia.

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As fiscais do Sarney

No auge da hiperinflação, o Movimento das Donas de Casa e Consumidores do Estado de Minas Gerais, criado por mulheres revoltadas com a ineficiência dos planos econômicos, ganhou força. Àquela altura, os preços eram alterados duas a três vezes ao dia. Diariamente, as donas de casa saíam às ruas para verificar os valores e denunciar estabelecimentos que não seguissem as regulamentações impostas, como os congelamentos, o que as deixou conhecidas como “as fiscais do Sarney”.

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O movimento era tamanho, que as fiscais conseguiram o fechamento de um supermercado pelo excesso de remarcações. “Já que será de uma forma que o povo não pode comprar, então seria melhor fechar e repensar a situação”, explica a coordenadora institucional do MDC, Solange Medeiros de Abreu, de 74 anos.

As donas de casa também levavam suas indagações até o Banco Central (BC), onde se reuniam e, com auxílio de um megafone, cobravam o poder público e privado apresentando também os Termos de Ajustamento de Conduta (TAC). “Nós nos preocupávamos com o preço do gás, por exemplo, então chamávamos o distribuidor e mostrávamos o TAC que exigia a não correção do preço por dois meses.”

As ações também eram voltadas para a conscientização da população, que diante do desespero armazenava botijão de gás e galões de gasolina nas próprias residências. “Fizemos campanhas para mostrar o perigo daquilo, porque a pessoa enchia o galãozinho e levava pra casa”, explica Solange.

Ainda que a hiperinflação esmagasse o poder de compra de famílias brasileiras, o aumento dos preços não afetava somente pessoas físicas, mas também jurídicas, como era o caso de Santiago Lozano Ibañez, pai de Concepción, cuja microempresa, Plast Moldim, sustentava a família.

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Em meio às dificuldades para honrar com os compromissos da companhia, Ibañez, assim como outros microempresários e comerciantes, buscava ajuda fora dos canais bancários regulamentados. “Meu pai descontava muito cheque com agiota para comprar material e estocar, porque matéria-prima subia como rojão, foi uma fase muito difícil para as pequenas empresas.”

O confisco da poupança

A hiperinflação atendia aos sonhos da valorização da poupança. Famílias vendiam bens e propriedades e investiam no overnight, aplicação financeira que proporcionava rendimentos diários. Funcionário público aposentado, Lenoir Tissiane, de 73 anos, se lembra das confusões em frente à antiga agência Banestado devido ao horário de fechamento dos bancos.

“Na época, não tinha aquela porta giratória, eram dois guardas que controlavam a entrada. Um minuto depois do horário de fechamento do expediente, o guarda já não deixava entrar. Então, o cliente brigava porque ele queria entrar para depositar o dinheiro porque um dia que perdesse não rendia juros”, conta.

Às vésperas do anúncio do Plano Collor, alguns investidores que temiam a taxação dos investimentos pediram o saque do dinheiro. Um banqueiro telefonou para o então ministro da Fazenda, Maílson da Nóbrega, perguntando o que fazer com um cliente que pedia o resgate de NCz$ 300 milhões, ao que Nóbrega respondeu: “Pague, o Banco Central está estocado. Não vai faltar moeda”. Em apenas oito dias, fundos de curto prazo e overnight já haviam perdido NCz$ 41,5 bilhões.

A recém-empossada ministra da Economia Zélia Cardoso de Mello decretou um feriado bancário de três dias, que se estenderia até a data prevista para o anúncio do novo Plano Collor. A causa, segundo ela, foram os “movimentos especulativos que poderiam causar intranquilidade”. Questionada sobre um possível confisco no overnight e no mercado financeiro como um todo, Zélia respondeu: “Meu dinheiro continua depositado no over”.

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Lucia Taboão fala sobre o período em que teve a poupança bloqueada pelo Plano Collor Foto: Daniel Teixeira/Estadão

Na sexta-feira, dia 16 de março, em 1990, a professora Lúcia Taboão estava em casa assistindo ao pronunciamento de Zélia na televisão. “Simplesmente, ela entrou em rede nacional e avisou que, por conta de tudo que estava acontecendo, iria confiscar todo o dinheiro, deixando apenas Cr$ 50 mil na conta. Ficamos revoltados.”

“São medidas duras”, foi o que Lúcia ouviu da então ministra da Economia, naquela tarde. Naquele momento, o governo de Fernando Collor anunciava o novo plano econômico que confiscaria o valor que Lúcia havia investido para custear o parto de sua segunda filha. A medida buscava solucionar o antigo problema da hiperinflação que se arrastava ano a ano.

Como havia feito o plano de saúde havia pouco tempo, o convênio não cobria obstetrícia. Lúcia e o marido decidiram, então, juntar o dinheiro para pagar a cesárea. “Eu tive minha filha no dia 4 de abril de 1990, em um hospital do SUS.” Após 20 dias do nascimento, a família de Lúcia se envolveu em um acidente, e o marido faleceu. “Precisei bancar os custos do velório, enterro, tudo sem dinheiro, porque o Collor tinha confiscado tudo. Nunca me esqueço disso.” Ela conta que precisou da ajuda dos familiares para custear o velório e o enterro do marido.

Naquele mesmo ano, com uma graduação incompleta devido à hiperinflação, que impossibilitava o pagamento do curso, Lúcia passou a trabalhar como faxineira. “Eu tinha duas filhas para criar e não podia me dar o luxo de ficar pensando muito.”

A empresa de Ibañez também ficou à beira da falência com o confisco. “Meu pai ficou desesperado. Não sabia como pagar seus funcionários, a conta de luz, todo mundo achava que ia falir”, relata Concepción. Ibañez apresentou as folhas de pagamento, requeridas na época para a liberação dos valores referentes a salário de funcionários. “Nós conseguimos honrar alguns compromissos, mas foi um passo para trás para as indústrias, porque não havia dinheiro para fazer investimento, só para ir honrando compromisso. Foi assustador.”

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A Frente Brasileira Pelos Poupadores (Febrapo) reúne entidades da sociedade civil para lutar pelo direito de poupadores, e herdeiros, que têm ações na Justiça. Segundo a diretora executiva da instituição, Ana Carolina Seleme, existem cerca de 300 mil pessoas com processos na Justiça abertos que ainda podem receber os valores perdidos no confisco.

A chegada do Real

A impopularidade do Plano Collor enfraqueceu o então presidente. Acusado de corrupção pelo próprio irmão, Pedro Collor de Mello, em dezembro de 1992, Collor deixou o Palácio do Planalto após renunciar ao cargo na tentativa de impedir sua inelegibilidade, mantida pelo Senado Federal por 73 votos contra 8.

Itamar Franco assumiu a Presidência da República em 1993 sob inflação acumulada de 2.000% ao ano, convocando Fernando Henrique Cardoso para o cargo de ministro da Fazenda, após três tentativas frustradas com outros representantes, e colocando em circulação o Cruzeiro Real (CR$).

A implementação do Plano Real foi realizada em etapas. As condições financeiras internacionais melhoraram, e houve renegociação das dívidas do Brasil, contribuindo com a situação externa no País e permitindo a entrada de capital. O governo então criou uma reserva de recursos através do Fundo Social de Emergência para apoiar a economia e manter o cumprimento das obrigações. A medida serviu como uma âncora fiscal que sinalizava o comprometimento da gestão perante as empresas, investidores e consumidores.

De acordo com o economista Marcelo Kfoury, para desvincular a economia da hiperinflação, foi instituída a Unidade Real de Valor (URV) como forma de fixar a inflação em uma unidade de valor estável.

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Em 1º de julho de 1994, o Plano Real foi lançado com bancos colocando R$ 6 bilhões em circulação e equiparando a moeda brasileira ao dólar americano. Nos primeiros três meses, a inflação caiu de 47% para 1,81%.

“A inflação diminuiu bastante, as coisas foram ficando mais tranquilas. Ficamos até desconfiados porque estávamos acostumados com a hiperinflação, então pensamos ‘está bom demais para ser verdade’, quanto tempo será que isso vai durar?”, contou Lúcia.

Com preços controlados e a moeda equiparada ao dólar, a população pôde consumir mais. “Meu pai comprava dólares quando tinha dinheiro e, olha o absurdo, guardava em casa”, afirma Concepción. Ibañez construiu uma adega, com paredes de blocos semelhantes a telhas, onde armazenava os vinhos. Atrás das garrafas da bebida, dentro de saquinhos plásticos, era onde Ibañez mantinha os dólares protegidos do assombroso confisco de Collor. “Nós conseguimos ir para a Europa. Foi muito fácil viajar. A trancos e barrancos, a coisa começou a funcionar”, relembra Concepción.

A queda da inflação gerada pelo Plano Real, contudo, afetou empresas no primeiro momento. O professor de economia da Universidade Federal do Rio Grande do Sul (UFRGS) Pedro Fonseca explica que a valorização do real contribuiu para o combate à inflação agindo como uma espécie de âncora cambial.

Isso, somado à elevação da taxa de juros, porém, dificultou as exportações. O Plano Real também trouxe uma grande quebra de bancos que, segundo Kfoury, eram “ineficientes” porque atuavam sob proteção da inflação. “O dinheiro parava alguns dias no banco, e ele ganhava uma margem em cima disso”, explica.

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Sob lembretes de “não despreze os centavos, agora eles têm valor”, a população foi se adaptando ao novo plano econômico, que transformou os CR$ 2.750,00 em R$ 1,00.

A crise cambial de 1999

A política do câmbio fixo, que mantinha o real equiparado ao dólar, deu ao Brasil o poder de compra no exterior, levando o País a um déficit de 2,3% em 1995, destacou Kfoury. No primeiro trimestre daquele ano, o Plano Real foi alterado estabelecendo o regime de bandas cambiais, de forma a permitir que a moeda brasileira oscilasse dentro de níveis entre R$ 0,88 e R$ 1,22 de 1995 a 1998, conforme dados do BC.

No entanto, o País passou a estrangular o balanço de pagamento. “No começo, o problema não foi tão grande, porque havia excesso de liquidez internacional. Isso foi uma coisa que contou muito no Plano Real, já que durante os outros havia também uma situação internacional ruim”, explica Fonseca. Depois, passou a ser insustentável manter o real valorizado.

Dessa forma, o governo começou a liberar o câmbio por meio do chamado overshooting. “É uma elevação abrupta do dólar e que, obviamente, impactou muitas empresas”, afirma o economista. Em poucos dias, quem era endividado em dólar viu o valor devido aumentar. Para Fonseca, o Plano Real foi uma engenhosidade brasileira que contou com vantagens como a ausência de políticas de congelamento, um ambiente internacional favorável e o apoio do Congresso Nacional.

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