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Real 30 anos: ‘Pulo do gato foi desindexar a economia’, afirma Winston Fritsch, secretário de FHC

Fritsch assumiu o cargo de secretário de Política Econômica com a chegada de Fernando Henrique ao Ministério da Fazenda; um dos seus grandes trabalhos foi sincronizar o reajuste de todos os contratos

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Atualização:
Foto: Tiago Queiroz/Estadão
Entrevista comWinston FritschFoi secretário de Política Econômica durante a implementação do Plano Real

Foi na piscina da sua casa em Petrópolis, no Rio de Janeiro, que Winston Fritsch recebeu um telefonema de Fernando Henrique Cardoso, então ministro das Relações Exteriores. FHC ligou para comunicar que aceitara o cargo de ministro da Fazenda e que queria Fritsch no cargo de secretário de Política Econômica.

“Era uma grande crise. Uma inflação totalmente descontrolada. Então, ele me liga de Washington. Eu me lembro que estava na minha casa de campo em Petrópolis. Estava na piscina quando recebi o telefonema. Já sabia que alguma coisa iria acontecer”, afirma.

Com a decisão do PSDB de integrar o governo Itamar Franco, Fritsch chegou ao Ministério da Fazenda de FHC acompanhado, inicialmente, de Gustavo Franco e Edmar Bacha. Na elaboração do Plano Real, ele diz que o “grande pulo do gato” foi conseguir realizar a desindexação da economia brasileira. “Isso não é fácil do ponto de vista gerencial. É um trabalho desgraçado, técnico e político.”

Winston Fritsch chegou ao Ministério da Fazenda em 1993, acompanhando Fernando Henrique Cardoso Foto: Tiago Queiroz/Estadão

A seguir trechos da entrevista concedida ao Estadão

O sr. foi para Brasília logo de início com o Fernando Henrique. Poderia rememorar a chegada?

Quando tem o impeachment do Collor, o Itamar assume, mas com um governo muito fraco. Ele teve ministros da Fazenda competentes. Ele teve o Krause (Gustavo Krause), o Haddad (Paulo Roberto Haddad) e, depois, um ministro político (Eliseu Resende), que acaba sendo praticamente demitido por acusações de corrupção. Foi uma crise que aconteceu num fim de semana de maio de 1993. E o Fernando Henrique, na época, era ministro das Relações Exteriores. Eu, obviamente, lendo o jornal, via aquelas coisas de que o Fernando Henrique foi convidado.

Ele (Fernando Henrique) disse que tinha de consultar o partido. Era uma grande crise. Uma inflação totalmente descontrolada. Então, ele me liga de Washington. Eu me lembro que estava na minha casa de campo em Petrópolis. Estava na piscina quando recebi o telefonema. Já sabia que alguma coisa iria acontecer. E aí ele fala: “O partido aceitou, liberou e vou aceitar. Estou falando com você e com o Bacha para perguntar se vocês topam. E eu queria que você fosse secretário de Política Econômica”.

Qual foi o diagnóstico quando vocês chegaram ao governo?

A gente entendia que sem o apoio de uma política fiscal melhor do que a que saiu da Constituição de 1988 não conseguiria manter a inflação baixa. Podia até fazer o truque, de passar a inflação para baixo, mas não conseguiria mantê-la. Então, a gente trabalhou num negócio chamado PAI, o Plano de Ação Imediata. Era uma coisa bastante conservadora do ponto de vista fiscal. Era um pouco preparar o terreno para o day after.

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E nesse caminho, afetar as expectativas, porque o setor financeiro ouvia e falava: “Esses caras podem ter algum coelho na cartola, mas eles estão falando coisas que fazem sentido” e valia a pena esperar. O time econômico anterior não tinha esse discurso. Num certo sentido, o PAI foi bom, porque mostrou que o PSDB e esses caras eram meio diferentes, de que estão batendo muito na tecla do equilíbrio fiscal. E foi a nossa briga com o FMI e com os assessores estrangeiros que vinham aqui e tentavam uma política tradicional. Pediam uma política de renda, quer dizer, de controle de preços e salário.

Era a defesa do congelamento?

E isso não funciona. Isso é uma coisa que explodiu. E a gente viu que não funciona. O ano de 1993 é de formação da equipe, em que a sorte já se apresenta como interessante. Houve a crise dos anões do Orçamento no meio dessa grande discussão sobre a seriedade fiscal. E deu um negócio seríssimo, uma crise horrível. Foram vários impeachments. E o Congresso ficou com medo do Orçamento. Houve uma conversa com a gente e pediram para fazer o Orçamento de 1994. Foi muito bom. Criamos uma interlocução com o Congresso. O Bacha foi importante nisso, porque precisava de tempo (para elaborar). Vários detalhes fiscais do plano, de desindexação de receitas foram feitas e não aparecem. As pessoas não veem muito. Fica tudo meio como a URV (Unidade Real de Valor) era a parte mais mágica da coisa, enquanto que essas outras coisas são importantes para gente entender por que a inflação baixou e ficou baixa.

Uma série de medidas foi adotada antes da URV, então...

O diabo, como a gente sabe, está no detalhe. Uma coisa é fazer uma teoria básica sobre a inflação inercial. Foi isso que foi feito pela gente, pelo subgrupo de pessoas da PUC que trabalhava com a inflação. O pessoal do governo militar achava uma grande coisa: se você tem uma inflação muito grande, protege o setor financeiro. Indexa os ativos. Foi isso que salvou o setor financeiro brasileiro. A gente tem um setor financeiro pujante hoje, os argentinos não têm. A indexação protege isso, mas, pouco a pouco, se você está num regime democrático, os outros contratos começam a ser indexados também. Os salários também.

E qual era a consequência da indexação?

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Ela é uma espécie de organização do conflito distributivo. Eu também quero que o meu contrato seja indexado. E aí o diretor da escola fala: “Mas e o meu contrato? Também quero que seja indexado”. A companhia pública questiona as tarifas: “E as minhas tarifas? Eu quero indexar as minhas tarifas”. Você começa a ter uma economia que tem toda uma estrutura de contratos que está indexado.

Pensa numa economia normal, que não tem nada indexada, como nos Estados Unidos, tem inflação. Agora, por exemplo, houve a desorganização das cadeias produtivas. Subiram os custos. A inflação sobe. Só que lá não se propaga. Não começa todo mundo a querer ganhar em cima do outro. Durante um tempo, sim, ela sobe, mas, depois, estabiliza e cai, porque aquele aumento de preços vai se diluindo. Na economia indexada, tem uma desvalorização cambial, um choque externo, os salários são indexados, os contratos escolares são indexados, todos os ativos são indexados e você começa a corrigir os preços. Deflagra um mecanismo automático. Então, a gente mostrou lá (na PUC) que, ao contrário de uma economia normal, quando tem um choque exógeno, o que acontece é uma mudança no patamar da inflação. Ela sobe e estabiliza num outro nível. Era uma economia esquisita.

Era preciso sincronizar todos os contratos, lembra Fritsch Foto: Tiago Queiroz/Estadão

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O que era preciso fazer, então?

O pulo do gato é desindexar a economia. É mais fácil falar do que fazer, porque tem de sincronizar os contratos. Quando você está numa economia indexada, você tem uma inflação de 30% ao mês, o salário é modificado, o preço da gasolina (sobe) de 15 em 15 dias. Todos os grandes contratos da economia tinham de ser feitos pela média do último período. Isso não é fácil do ponto de vista gerencial. É um trabalho desgraçado, técnico e político. Como secretário de Política Econômica, eu tinha de fazer isso.

E aí eu conversava com a Telebras. A Telebrás tinha 20 e tantas empresas debaixo dela. Eu dizia: “Pessoal, vocês vão reajustar a tarifa pela média, mas vão confiar em mim que a inflação vai parar.” Eles se olhavam assim, com cara do que esse moleque está fazendo aqui? O pessoal do setor elétrico fez uma reunião escondida, dizendo que nós estávamos malucos. Se no governo as coisas acontecem assim, imagina no setor privado. Tinha de passar uma confiança gigante nessa coisa toda. A gente queria criar uma espécie de expectativa de que o que a gente ia criar era estável.

E aí tem a URV...

Tivemos uma ideia de criar uma pré-moeda que seria estável quase que por definição e que cumpriu um papel importantíssimo. Hoje em dia, o IBGE calcula o índice de preços quase que online. A inflação de maio é feita com base nas coletas do preço de maio. Naquela época, não dava para fazer isso. O índice de maio era coletado mais ou menos entre 15 abril e 15 de maio, porque tinha de processar.

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E por que isso era um problema?

Você tem uma inflação de 30% ao mês e, a partir do dia D, ela vai ser zero. O primeiro mês do Plano Real só vai ter sido coletado meio mês de inflação zero. Vai haver um carry over (carrego estatístico) de meio mês de inflação no primeiro mês do real por causa da forma como se calcula o índice. Então, o que a gente fez? Vamos criar uma moeda e criar um índice dessa inflação. Dizer que o que vale, agora, é o índice da URV. Você mata o carry over na saída.

Então, criamos a URV, que acompanhava basicamente o dólar. A inflação era mínima. A inflação mundial era baixíssima. E os preços tinham de ser precificados em URV. Era estável e as pessoas gostavam desse negócio da URV, porque não mudava. É simplesmente uma coisa que a gente estava preparando, para igualar ao real e dizer, agora, o real é igual a 1 URV.

Havia uma discussão de empurrar o plano para 1995?

Vamos lançar ou não vamos lançar. Empurra com a barriga, espera (o Fernando Henrique) virar presidente? Ou vai agora e pode não virar presidente? O plano foi lançado, e o Fernando Henrique se lançou candidato. Digamos assim, os detalhes da URV não existem em nenhum paper. Você tem ideias gerais. Esse diagnóstico da inflação, sim, mas how to do it (como fazer) no detalhe foi bolado lá. É claro que o pessoal que trabalhava mais com isso academicamente, obviamente, tinha mais liderança.

Tinha muita divergência?

Ninguém sabe o que fazer. O tempo é muito bom também. O tempo é a mãe das decisões. Mas eu diria que quase até a véspera havia dúvidas, inclusive, sobre se a política cambial seria sustentável. O real não é só isso. O real é uma contração monetária automática gigantesca. Se colocou também limites na emissão de moeda que são coisas draconianas. Eu particularmente tinha muito medo de uma enorme apreciação cambial. Mas o Banco Central conseguiu, e o Gustavo (Franco) fez um trabalho muito bom de gestão de câmbio na hora do lançamento.

Havia uma convicção de que o plano iria dar certo?

Faz de conta que você é um mergulhador olímpico. Pula de 10 metros e dá 8 voltas. Você acha que, toda vez que ele chega em cima, ele acha que vai dar certo? Não adianta. Você nunca sabe se vai dar certo. Você não tem nenhuma informação. Em 1994, ficar sentado na Secretaria de Polícia Econômica ou na presidência do Banco Central, em termos de indicadores econômicos, sem o big data que tem hoje... Não tinha informação em tempo real. Era como pousar um Boeing no Galeão sem ter o altímetro funcionando. Tem de ser meio de memória, de sentimento, guiar o bicho sem bater em morro e pousar. A resposta para a sua pergunta é não. Ninguém tinha. Passava as noites em claro, óbvio. Eu vou te contar: quando passar por outros ministros, você vai ver que o avião tem raio que também que cai em cima dele.

Então, como se deu a saída do Fernando Henrique e a chegada do Ricupero?

A saída do Fernando Henrique foi: “Alé logo, ministro. Boa sorte”. Entrou pela porta e sentou na mesa dele o Rubens Ricupero. Eu gostava muito dele. Ele estava como ministro do Meio Ambiente. Era só mudar de cadeira. Muito mais fácil. De certa maneira, já passou por um crivo de ser ministro. E o Ricupero era um cidadão acima de qualquer suspeita. E o plano dependia muito de confiança, e o Ricupero era um cara muito sério. Não só ele é sério, como parece sério. Ele era um cara, quando falava, você acreditava nele. Ele que esticou a nota na televisão. Até o dia que saiu aquela porcaria (escândalo da parabólica). Foi uma sexta-feira. Sexta-feira é o pior dia de Brasília.

Passava as noites em claro, recorda Winston Fritsch Foto: Tiago Queiroz/Estadão

Mas a lógica do plano seguiu, correto?

Ele (Ricupero) foi tirado porque foi um massacre. Para nós, o fim de semana foi um horror. Estava tudo indo muito bem. É como se o cara já tivesse dado o salto e tivesse, assim, para bater na piscina. Tudo certinho. E, de repente, acontece alguma coisa esquisita e que podia mudar tudo. Imagina. Voltou para o Itamar. Não que ele fosse um louco, mas pode acontecer tudo. Naquela hora, não era bom que se escolhesse alguém errado. E aí a gente tentou botar o Bacha, que tinha cabelo branco. Faltava pouco tempo. Pega um aí (da equipe) e vamos embora para não quebrar confiança no plano. Mas eu acho que o Itamar tinha um senso político muito interessante.

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Por quê?

Ele queria alguém em quem confiasse. Ele gostava do Ciro. O Ciro mudou muito de personalidade. Ele era um amor de pessoa. Era um político altamente promissor. Governador jovem do Ceará. Muito voltado para coisa fiscal. Quando eu conversei com o Ciro pela primeira vez, ele pegou um computador, um laptop, isso em 1994, e abriu na minha mesa. Ele tinha o orçamento online com o que permitia a tecnologia da época. Sabia como é que estava sendo gasto tudo no Ceará. Ele controlava no laptop dele. Era um sujeito bastante diferenciado. E o Itamar gostava dele. E ele estava no ‘core group’ do PSDB. Quem decidia aa coisas naquela época era o Fernando Henrique, o Covas, o Serra, e os cearenses (Tasso Jereissati e Ciro Gomes). E acabou sendo uma grande decisão.

Como o sr. avalia a passagem de Ciro Gomes pelo ministério?

Algumas coisas nos preocupavam muito. Tinha o dissídio coletivo dos grandes órgãos estatais brasileiros. Eram controlados pelo PT, que era totalmente contra o plano. O dissídio da Petrobras e do Banco do Brasil era em setembro, outubro. E ainda não estava acertado. A participação do Ciro foi absurdamente importante. Aí sim, o lado, às vezes, violento é importante. O pessoal do Banco do Brasil veio visitá-lo. Ele me chamou. Sentamos na mesa do próprio gabinete. E começou uma espécie um nhém-nhém-nhém. Uma hora ele (Ciro) deu um murro na mesa que eu quase caí da cadeira. E falou: “Olha, na minha mesa tem uma (caneta) Bic e papel. Quem não estiver satisfeito assina a demissão.” Acabou a reunião. Pegou um avião. Foi ao Rio. Falou com a turma da Petrobras e a Petrobras topou o negócio.

E qual é a agenda que o Brasil precisa?

O contexto é diferente. O plano Real foi uma coisa para acabar com um incêndio. Quando você tem uma doença crônica, você poder ter essa doença por muito tempo e conviver com ela. O Plano Real é um caso de torniquete. O grande desafio agora é retomar o crescimento. E o Brasil tem uma grande vantagem. Tem um desafio mundial, que é o clima. Você não pode retomar o crescimento com uma economia suja. Tem de fazer investimentos limpos. E o Brasil tem uma vantagem imensa nessa área. O País não só é um grande produtor de energia, mas a gente conhece essa tecnologia e pode exportar. Para o Brasil, a crise do clima, que para alguns países é um horror, é uma oportunidade de investimento, de exportação. O grande desafio do Brasil é implementar essa transformação ecológica, tirando vantagens que temos, e voltar a crescer.

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