Depois de quatro trocas de moeda em oito anos, cinco planos econômicos diferentes e preços reajustados a todo momento, antes da implementação do real, os brasileiros precisaram aprender a lidar com outra novidade: uma “quase-moeda” ou “moeda virtual”. A URV, Unidade Real de Valor, entrou em vigor em 1.º de março daquele ano, marcando o início do Plano Real e a transição para a futura nova unidade de padrão monetário.
Embora parecesse complexo pedir que o País compreendesse o uso de uma “moeda imaginária”, a inovação não gerou mais confusão entre os brasileiros. Pelo contrário: a URV serviu para acalmar os ânimos. “Era estável e as pessoas gostavam desse negócio da URV, porque não mudava. É simplesmente uma coisa que a gente estava preparando, para igualar ao real e dizer, agora, o real é igual a 1 URV”, afirmou em entrevista ao Estadão Winston Fritsch, ex-secretário de Fernando Henrique Cardoso e integrante do grupo que trabalhou na formulação do Plano Real.
A estratégia consistia em ter, por um período, uma moeda antiga, inflacionada, e a URV, corrigida diariamente observando a paridade com o dólar. A URV não existia fisicamente. Tratava-se de um indexador, com cotação atualizada dia a dia através de comunicado do Banco Central. Quando lançada, a URV custava CR$ 647,50. Na véspera do início da circulação do real, em 30 de junho, uma URV correspondia a CR$ 2.750.
“A criação de uma moeda virtual possibilitava a gradual troca de referência dos contratos, ou seja, permitia que os novos contratos fossem feitos já em URV e não na moeda vigente que carregava inflação. Assim, meses depois de sua adoção, a URV, e não a moeda então vigente - o cruzeiro real - passou a ser a referência da nova moeda, o real. O que tornava possível que a inflação do cruzeiro real não fosse incorporada à nova moeda, o real”, afirma Vinícius Müller, doutor em História Econômica e professor do Insper.
O professor do Insper diz que o plano foi bem sucedido, pois também garantia o tempo necessário para consolidar ajustes que vinham sendo feitos, principalmente relacionados às contas públicas, antes da adoção do real. “E, por fim, permitia que, antes da nova moeda circular, houvesse tempo dos ajustes políticos necessários para a troca definitiva da moeda. Esses ajustes políticos dependiam da capacidade do governo de explicar à população sobre a troca da moeda”, afirma Müller.
Inicialmente, salários, aposentadorias e contratos passaram a ser calculados em URVs. Aos poucos, os demais preços foram se alinhando até que, em julho, entrou em cena o real. É com a entrada em vigor da URV, que não existia fisicamente e por isso era chamada de “quase-moeda”, que se considera o início oficial do Plano Real.
“Quanto tempo iria durar essa fase de transição, nenhum de nós sabia dizer. Era preciso esperar para ver a velocidade com que a sociedade brasileira iria assimilar e entender o conceito da URV. E o fato é que foi muito mais rápido do que todos estávamos imaginando. O mais otimista de nós não esperaria que fosse tão rápido”, afirmou, em entrevista ao Estadão, o economista Gustavo Franco, que também foi da equipe que formulou o Plano Real.
Ao longo de quatro meses, o brasileiro aprendeu a viver sem sobressaltos, sem congelamento de preços e sem desabastecimento. Para isso, os preços eram contabilizados em cruzeiro real e em URV. O seu uso foi disseminado rapidamente e abriu caminho para a chegada do real.
Rafael Schiozer, professor de finanças da FGV EAESP, afirma que a URV funcionou “de maneira surpreendentemente tranquila”. A população recebeu bem a ‘quase-moeda’, seja porque os brasileiros estavam cansados de tantos planos infrutíferos e se apegaram à ideia de algo que fosse eficiente no combate à inflação ou porque tantas mudanças em preços e moedas deixaram a população aberta a entender o novo mecanismo de conta.
“O Brasil não pode ter duas moedas contemporâneas e era preciso criar uma transição da moeda antiga para o real. A importância da URV foi funcionar como uma moeda paralela, não inflacionária e que seria capaz de acomodar os valores já pré-programados de pagamento na moeda antiga”, diz Schiozer.
“A URV foi uma ferramenta econômica, mas também uma saída política para que o governo pudesse desenvolver uma pedagogia que explicasse a troca da moeda à população. A aderência da sociedade era fundamental ao sucesso do Plano Real. O tempo de vigência da URV foi o tempo necessário para a construção da credibilidade do Plano Real junto à população”, afirma Vinícius Müller, doutor em História Econômica e professor do Insper.