Refinaria ‘Chevette 1989’: como um grupo do Amazonas virou pivô de briga na reforma tributária

Irmãos Atem construíram império no Amazonas no período em que usufruíram de benefícios da Zona Franca, obtidos por meio de liminar

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Foto do author Mariana Carneiro

BRASÍLIA - Em dezembro de 2023, os irmãos Atem — Dibo, Miquéias e Nadson — entraram em um novo ramo de atuação: ofereceram quase R$ 8 milhões por quatro blocos de exploração de petróleo em terra no Amazonas e também se tornaram sócios da empresa de energia Eneva em um quinto bloco.

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Foi o mais recente movimento do trio, que já foi sócio da distribuidora de energia do Amazonas (a Amazonas Energia) e hoje está no centro de uma guerra no setor de combustíveis. A Refinaria do Amazonas (Ream), que eles compraram da Petrobras em 2022, foi agraciada com um benefício fiscal inédito na reforma tributária que, para seus concorrentes, criará uma distorção que ampliará a presença dos irmãos Atem para além da Região Norte.

O presidente Luiz Inácio Lula da Silva sanciona nesta quinta-feira, 16, o primeiro projeto de lei com as regras de funcionamento do sistema tributário após a reforma aprovada no Congresso. No artigo 441 reside a polêmica envolvendo o Grupo Atem, dos irmãos amazonenses.

Refinaria do Amazonas (Ream), comprada pelo Grupo Atem da Petrobras em 2022 Foto: Ream/Divulgação

Nele, pela primeira vez desde 1967, uma refinaria de petróleo terá acesso aos benefícios industriais da Zona Franca de Manaus. Nem a Petrobras, que era a dona da refinaria, conseguiu tal feito.

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Petróleo, combustíveis e lubrificantes são vedados da lista de produtos aptos a receber o benefício da Zona Franca de Manaus, que reduz e até zera a incidência de impostos sobre atividades desenvolvidas na região.

A Atem sustenta que a atividade de refinar o petróleo para vendê-lo nunca esteve na lista de vedações. Pelo menos não até 2021, quando o governo Jair Bolsonaro fechou essa porta involuntariamente num episódio também controverso.

O então presidente sancionou um projeto de lei e horas depois mandou publicar um novo Diário Oficial, retrocedendo e vetando a trava ao refino. Na ocasião, a virada de chave de Bolsonaro foi atribuída à bancada de parlamentares do Amazonas, notadamente ao líder do MDB, Eduardo Braga (AM), que negou a articulação.

A controvérsia sobre o que deveria valer, afinal, se a sanção ou o veto, foi parar no Supremo Tribunal Federal (STF), que em 2024 deliberou que petróleo está fora da Zona Franca, pelas regras em vigor.

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Mas a pendenga não foi encerrada. Braga tentou reinserir a atividade na Zona Franca na emenda constitucional que instituiu a reforma tributária, em 2023, mas o intento não vingou. Na nova tentativa, em 2024, o refino foi contemplado no primeiro projeto de regulamentação da reforma.

O texto ficou assim: petróleo, lubrificantes e combustíveis são vedados do benefício, “exceto para a indústria de refino de petróleo localizada na Zona Franca de Manaus”. Para os concorrentes, uma ajuda sob medida para o grupo Atem.

É este o projeto de lei que ficou sobre a mesa do presidente Lula nos últimos dias e provocou um intenso debate entre técnicos de seis ministérios sobre vetar ou não a iniciativa. Distribuidores de combustíveis e produtores de petróleo, que concorrem com o Grupo Atem, consideram que ficarão em desvantagem, uma vez que os benefícios concedidos à empresa extrapolam a margem de lucro da atividade, além de criar um incentivo para se produzir combustível fóssil no coração da Amazônia.

Já a empresa alega que tem direito de entrar na Zona Franca e que, sem o incentivo, a produção local é insustentável (veja mais abaixo).

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Desde 2017, a Atem vende combustível importado com isenção de tributos federais. A vantagem foi obtida por meio de uma liminar, em vigor ainda hoje. De janeiro de 2023 a junho de 2024, segundo o Portal da Transparência do governo federal, a distribuidora Atem’s usufruiu de R$ 139,938 milhões em benefícios, não recolhendo tributos sobre a revenda de combustível importado.

Embora sustente que esse combustível não sai da Zona Franca de Manaus, relatório interno da Receita Federal produzido em 2018, inserido no processo que contesta a liminar, afirma que, naquele ano, e em 2017, as vendas chegaram a mais Estados da Região Norte e ao Mato Grosso.

Um executivo do setor afirma, sob condição de anonimato, que essa renúncia, acumulada ao longo do tempo, formou o colchão necessário para a expansão dos irmãos Atem, permitindo que crescessem para novos ramos de atuação, como o refino e mais tarde a exploração de petróleo.

Fernando Aguiar, CEO do Grupo Atem, tem uma versão diferente. Conta que, em 2016, a história da companhia mudou, quando passou a fornecer diesel para usinas termelétricas da Região Norte.

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Então operadas pela Eletrobras (hoje elas pertencem aos irmãos Joesley e Wesley Batista, da J&F), essas usinas passaram a responder por 40% do faturamento do Grupo Atem, que construiu um porto em Manaus para receber navios de grande porte com combustível importado. Hoje, diz ele, esse negócio representa 20% do faturamento.

As geradoras são fornecedoras da Amazonas Energia, distribuidora de eletricidade do Estado. Em 2018, vendo a chance de ganhar sinergia no negócio termelétrico, os irmãos decidiram comprar a companhia. Associaram-se ao empresário Orsine Oliveira, dono do Grupo Oliveira, fizeram uma oferta irrisória e levaram por R$ 50 mil a Amazonas Energia, então estatal e da qual a Eletrobras queria se livrar.

Apesar da experiência em distribuição de combustível no meio da Amazônia, os irmãos se viram incapazes de seguir no intrincado negócio e venderam a sua parte dois anos depois, com a participação que tinham na distribuidora de energia de Roraima.

No setor de combustíveis, o movimento foi oposto. De uma participação de mercado de 37% no Amazonas em 2017, eles superaram 50% em 2024. Passaram a vender não apenas na Região Norte, mas no Centro-Oeste e no Nordeste. Segundo dados da ANP, a Atem vende combustível também em São Paulo, Santa Catarina e no Paraná por meio de postos próprios ou revendendo para os de bandeira branca.

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Aguiar afirma que o combustível que sai da Zona Franca não é incentivado e a empresa faz o recolhimento à parte do imposto quando a transação excede as fronteiras da região.

Refinaria é ‘Chevette 89’ e não sobrevive sem desconto em impostos

No ano passado, o Grupo Atem decidiu parar a produção da refinaria. Desde junho, não é fabricada uma gota de combustível na unidade, o que levou o sindicato dos petroleiros a denunciar uma suposta tentativa da Atem de encerrar a produção e focar apenas na importação de combustíveis.

Fernando Aguiar afirma que esse não é o plano da companhia, mas sim retomar em meados deste ano o refino de diesel e gasolina no Amazonas. A capacidade de 46 mil barris/dia será a mesma, mas as instalações de tancagem e as torres de processamento do petróleo estão passando por uma reforma profunda, diz ele.

Evaristo Pinheiro, que preside a Refina Brasil, entidade que reúne seis grupos privados de refino no País, diz que a refinaria do Amazonas é um “Chevette 1989”, referindo-se à tecnologia implantada e mantida pela Petrobras durante anos na Região Norte.

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“Era uma refinaria pronta e que, por falta de manutenção, refinava menos. Foi vendida pela Petrobras e quem comprou vai investir R$ 400 milhões para refazê-la. Eu visitei. Com o perdão da palavra, estava uma calamidade”, diz Pinheiro.

Quando defendeu o benefício para a refinaria no Senado, em dezembro, Eduardo Braga asseverou: ou o benefício tributário era aprovado ou a Petrobras deveria recomprar o ativo.

Fernando Aguiar não discorda do diagnóstico, nem mesmo da comparação com um Chevette fabricado nos anos 1980. Ele nega, contudo, que haja conversas com a Petrobras sobre uma eventual devolução da refinaria.

“Sobre essa conversa de venda (para a Petrobras), a gente nunca recebeu nenhum contato da Petrobras e nunca provocamos essa conversa”, afirma.

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Aguiar argumenta que a operação no Amazonas tem custos elevados que justificam o benefício: a compra do óleo de Urucu (região produtora no Amazonas que fica em Coari, a 650 km da capital) pagando um preço acima do normal pelo transporte via gasoduto, a despesa com estocagem e a de levar navios pelo rio até Manaus.

“Se não tiver incentivo, esse negócio não se sustenta do ponto de vista financeiro”, afirma. “Se houver o veto, vou ter de transformar a refinaria em um terminal (portuário e de estocagem) para importar e expedir produto importado para reduzir o custo fixo e o consumo de energia. Isso deixará a região 100% dependente de combustível importado.”

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