BRASÍLIA – Pressionado pelo Congresso Nacional, o governo começa a dar uma “cara” para a sua reforma administrativa. A ministra da Gestão e Inovação em Serviços Públicos, Esther Dweck, é enfática ao dizer que a reformulação da administração pública não depende de uma Proposta de Emenda à Constituição (PEC), em referência à PEC 32, que foi elaborada pela gestão anterior e pode ser desengavetada pelos parlamentares, à revelia do Planalto.
A reforma proposta pelo governo Lula, portanto, será “fatiada” em diversos projetos de lei e medidas que não dependem da aprovação da Câmara e do Senado. O objetivo principal, segundo a ministra, é melhorar a qualidade da administração pública, sem grande foco na questão fiscal.
Dentre os projetos prioritários para o governo, está um texto que tramita há 20 anos no Congresso e muda a forma de avaliação dos candidatos nos concursos públicos, permitindo provas que vão além da múltipla escolha. O governo avalia que o texto ainda precisa de ajustes, mas que será importante para dar segurança jurídica à prova unificada que será aplicada em 2024, já em novo formato.
Há também um texto - ainda em elaboração dentro do governo - que renova a lei de cotas raciais no serviço público, que perderá a validade no ano que vem. A legislação atual reserva aos negros 20% das vagas oferecidas nos concursos, percentual que poderá ser elevado.
Já do ponto de vista fiscal, a proposta que tem o maior potencial de efeito nos cofres públicos é o que acaba com os supersalários – que superam o teto de R$ 41,6 mil mensais. O texto está há dois anos parado na Comissão de Constituição e Justiça (CCJ) do Senado, à espera de um relator, e ganhou o apoio recente do governo.
Confira abaixo os principais pontos da reforma administrativa proposta pelo governo Lula.
PL dos concursos públicos
Projeto de Lei que tramita há 20 anos no Congresso e muda a forma de avaliação dos candidatos. O texto voltou ao Senado em 2022, depois de ser aprovado pela Câmara.
“Não é o projeto ideal, mas tem a vantagem de enfrentar a judicialização dos concursos”, afirma Francisco Gaetani, secretário extraordinário para a Transformação do Estado. Segundo ele, essa legislação será importante para dar segurança jurídica à nova prova unificada, que será realizada em 2024 com perguntas abertas e possibilidade de entrevista (leia mais abaixo).
“Às vezes, o governo faz um concurso muito simplificado, com múltipla escolha e provas cognitivas apenas, e não consegue trazer o perfil que estava buscando. Então o PL dá conforto para enfrentar o risco da incerteza jurídica”, diz Gaetani.
O PL prevê que os concursos públicos deverão avaliar os candidatos por meio de provas objetivas ou dissertativas; provas orais que cubram conteúdos gerais ou específicos; pela elaboração de documentos e simulação de tarefas próprias do cargo.
Também estão previstos na avaliação testes físicos compatíveis com as atividades habituais do cargo e avaliação psicológica, exame de higidez mental ou teste psicotécnico.
Gaetani reconhece, no entanto, que há críticas importantes ao projeto: “Tem gente que teme que, com isso, haja uma subjetivação das entrevistas. Afirmam que a análise de comportamento é uma coisa muito difícil. Então isso terá de ser discutido no Senado”, afirma o secretário.
Concurso unificado
O governo realizará no ano que vem, provavelmente no final de fevereiro, o Concurso Nacional Unificado para preencher cerca de 8 mil vagas abertas em diversos ministérios e outros órgãos do serviço público federal.
Diferentemente do modo de seleção atual, no qual cada órgão faz seu próprio processo e realiza as provas separadamente, o concurso prevê uma seleção única, que será realizada simultaneamente em 179 cidades de todo o País.
A iniciativa, proposta pelo Ministério da Gestão, se inspira no modelo do Exame Nacional do Ensino Médio (Enem) e tem o objetivo de democratizar o acesso da população às vagas do serviço público federal, ampliando a diversidade dos servidores.
A ideia é possibilitar a participação de pessoas que estão fora dos grandes centros urbanos e não têm recursos para se deslocar até Brasília.
Reestruturação de carreiras
O Ministério da Gestão abriu na semana passada dez mesas setoriais de negociação, com foco na reestruturação de carreiras do serviço público. O objetivo é tentar criar famílias de carreiras, para que elas recebam tratamento equivalente e não ocorra o que a ministra Esther Dweck chama de carrossel - ou seja, uma categoria consegue um reajuste ou benefício e as outras abrem uma frente de batalha com o poder público atrás das mesmas condições.
São cerca de 300 as carreiras do governo federal, mas metade está ligada a funções que estão desaparecendo e não estão sendo mais repostas, como datilógrafo, por exemplo. Para as cerca de 150 carreiras ativas, o governo quer separá-las por grupos a partir das reestruturações negociadas com as categorias.
As carreiras prioritárias para a reestruturação estão na ANM (Agência Nacional de Mineração) e na Funai (Fundação Nacional do Índio), cujos servidores se queixam de esvaziamento e falta de quadros para o trabalho básico.
O objetivo do governo é verificar ainda questões das próprias carreiras, como a evolução de promoções e reajustes periódicos. Cada categoria tem níveis de progressão distintos, que ou encurtam o tempo até o topo salarial ou que tornam as promoções lentas demais. Dweck afirma que o plano dela é vincular essas promoções à formação continuada do serviço público.
PL de cotas raciais
Projeto de Lei que atualiza o regramento sobre cotas raciais no serviço público, que foi criado em 2014. O texto aguarda a avaliação e a assinatura do presidente Lula para ser enviado ao Congresso. Essa atualização das normas já foi parcialmente feita por meio de uma instrução normativa, mas o PL será necessário porque a legislação atual perde a validade no ano que vem.
A Lei de 2014 reserva aos negros 20% das vagas oferecidas nos concursos públicos no âmbito da administração federal, autarquias, fundações e empresas públicas e sociedades de economia mista controladas pela União. Ela tem vigência de dez anos. O Ministério da Gestão defende a ampliação desse percentual, mas isso ainda está sendo negociado dentro do governo.
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Além desse percentual de reserva, a ministra Esther Dweck enumera pelo menos quatro “ineficiências” que estão sendo aperfeiçoadas no PL. Uma delas é o fato de as cotas serem comumente aplicadas apenas na primeira chamada do concurso, e não nos demais recrutamentos. “Então só valia a regra da cota para o primeiro provimento. Para os demais, você não respeitava”, alerta ela.
A pasta também identificou um problema na ordem de chamada dos aprovados nos concursos. “Em muitas carreiras, a ordem que você entra permite uma determinada ascensão. Então havia prejuízo para as pessoas que passavam por cotas, porque elas entravam no final da fila. A gente melhorou esse ponto”, explica Esther.
Outro aspecto que será modificado pelo ministério é o critério para “contabilidade” da cota. “Se uma pessoa negra passava em primeiro em um concurso, ela entrava nas cotas. Ela não entrava no cômputo geral, ela consumia a cota”, exemplifica a ministra.
O projeto também prevê mudanças que afetam os concursos das universidades, que normalmente têm apenas uma ou duas vagas para docentes. Hoje, a reserva de vagas é aplicada sempre que o número de postos oferecidos for igual ou superior a três. A proposta é reduzir para duas. Ou seja, tendo duas vagas, uma seria para a cota.
Uma das nossas pautas prioritárias é exatamente corrigir distorções dentro do serviço público. E essa é uma distorção relevante.
Ministra da Gestão, Esther Dweck, sobre o projeto que acaba com os supersalários na administração pública.
PL dos supersalários
Em 2021, a Câmara dos Deputados aprovou um projeto que tem o objetivo de combater os supersalários de agentes públicos, já que disciplina o pagamento de auxílios que hoje driblam o teto constitucional - atualmente em R$ 41,6 mil mensais. O texto, porém, está há dois anos parado na Comissão de Constituição e Justiça (CCJ) do Senado, à espera de um relator.
A ministra da Gestão diz que o governo quer colocar força política nessa pauta, para tentar destravá-la no Congresso. “É um tema super importante, porque uma das nossas pautas prioritárias é exatamente corrigir distorções dentro do serviço público. E essa é uma distorção relevante”, diz Esther.
Dados compilados pelo Centro de Liderança Pública (CLP) apontam que 25,5 mil pessoas faziam parte desse grupo seleto em 2022, o que representa 0,23% dos servidores estatutários, aqueles que foram aprovados em concurso e têm estabilidade no cargo.
Apesar do número ínfimo, o impacto nos orçamentos públicos é relevante: R$ 3,9 bilhões por ano. A cifra supera, por exemplo, as verbas previstas para o ministério do Meio Ambiente e Mudança do Clima, que somam atualmente R$ 3,5 bilhões. A maior parte do gasto está concentrada nos Estados (R$ 2,54 bilhões, cerca de 60%), seguidos da União (R$ 900 milhões) e dos municípios (R$ 440 milhões).
Segundo o levantamento, o valor máximo recebido por um servidor, em 2022, foi de R$ 302,2 mil mensais -- cifra quase oito vezes superior ao teto vigente à época, que era de R$ 39,3 mil, e 54 vezes maior que o salário médio de um funcionário público no país, que no ano passado somava R$ 5,6 mil.
Serviços compartilhados: Colabora GOV
Criação de uma secretaria transversal, que vai prestar serviços ligados à gestão e contratação de pessoas, tecnologia da informação e licitações para onze ministérios. A expectativa, segundo a ministra, é de que essa administração unificada traga economia de custo e de pessoal, e melhore a qualidade da gestão.
Trata-se, na realidade, da ampliação de uma estrutura que existia no antigo Ministério da Economia, chamada Secretaria de Gestão Corporativa, que migrou para o MGI com o nome de Secretaria de Serviços Compartilhados.
Hoje, ela atende cinco ministérios: Fazenda, Indústria, Gestão, Planejamento e Povos Indígenas. A partir do ano que vem, mais seis pastas serão incorporadas: Empreendedorismo, que é uma cisão da Indústria, Direitos Humanos, Mulheres, Igualdade Racial, Turismo e Esporte.
“Isso traz economia de custo, porque você faz contratações centralizadas. E também economia de gente”, afirma Esther. Segundo a ministra, hoje há falta de pessoas especializadas no governo, sobretudo na área de TI. “Cada vez que um ministério reclama que falta gente especializada, ele rouba do outro. Aí o outro reclama”, aponta.
Segundo a ministra, “haverá uma grande contratação de técnicos” para atuar nessa nova secretaria transversal, que passará a ter uma análise de qualidade de serviço - um pedido feito pelo presidente Lula.
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