Reforma administrativa precisa melhorar serviços à população, diz economista Francisco Gaetani

Professor da FGV, que integra grupo de seis especialistas que apresentou propostas para o próximo governo, lançou livro sobre reforma do Estado na Flip, em Paraty (RJ)

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RIO – É preciso chamar a atenção para a importância de uma reforma administrativa, em meio ao processo de transição do governo Jair Bolsonaro (PL) para um novo governo Luiz Inácio Lula da Silva (PT), afirma o economista Francisco Gaetani, professor da Fundação Getulio Vargas (FGV) e doutor em administração pública pela Escola de Economia e Ciência Política de Londres (LSE, na sigla em inglês). O objetivo não seria economizar gastos com a máquina estatal, mas melhorar a qualidade e aumentar a eficiência das despesas com os serviços públicos oferecidos à população – ajudando, portanto, com o equilíbrio das contas públicas.

Secretário-executivo dos ministérios do Planejamento e do Meio Ambiente nos governos do PT, Gaetani ainda não vê sinais de que o gabinete de transição de governo dará a importância necessária a uma reforma administrativa – e orçamentária. Fugindo da pergunta sobre a possibilidade de participar do gabinete de transição ou de voltar ao governo, o economista diz preferir colaborar com ideias.

Para o economista Francisco Gaetani, reforma administrativa não pode se preocupar apenas em cortar gastos públicos Foto: Felipe Rau/Estadão - 26/10/2022

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Um passo já havia sido dado em agosto, com um documento com propostas para o próximo governo, elaborado, após um ano de discussões, por um grupo de seis renomados especialistas – incluindo Gaetani. Como mostrou o Estadão, o documento abarca um leque amplo de sugestões, como a ampliação temporária de despesas fora do teto de gastos, a substituição do Auxílio Brasil e uma reforma total do Estado. Além de Gaetani, integram o “Grupo dos Seis” os economistas Bernard Appy, Persio Arida e Marcelo Medeiros, o advogado Carlos Ari Sundfeld e o cientista político Sérgio Fausto.

Para dar mais um passo na contribuição com ideias, Gaetani participou da Festa Literária Internacional de Paraty (Flip), que começou na última quarta-feira, 23. No tradicional evento literário, o economista lançou o livro A construção de um Estado para o século XXI (ed. Cobogó), em coautoria com o cientista político Miguel Lago. A ideia da obra, publicada com apoio do República.org, instituto que se dedica a melhorar a gestão no serviço público, é levar o debate sobre a importância da reforma do Estado para um público mais amplo.

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“Estou brigando para conseguir atenção (para a importância da reforma administrativa). No frigir dos ovos, temos que ter paciência. Saímos do terror para o caos, mas o caos traz uma série de possibilidades interessantes”, diz Gaetani, que também é pesquisador do Centro Brasileiro de Relações Internacionais (Cebri). A seguir, os principais trechos da entrevista:

Qual a importância e a urgência da reforma administrativa, em meio à transição de governo?

Quando falamos em reconstrução, estamos falando do que foi destruído recentemente. Estamos falando de educação, saúde, meio ambiente, assistência social. Mas há áreas que, na verdade, não construímos ainda, nas quais estamos organizando as reformas do século passado. O desafio do próximo governo é reconstruir, em algumas áreas, construir pela primeira vez, em outras, e construir melhor em outras. É claro que isso tem que ser qualificado. Transformação digital e mudanças climáticas, essas coisas têm que ser construídas pela primeira vez. E tem assuntos antigos, nos ministérios da área social. Estamos com isso mal resolvido há 70 anos, não dá para continuar desse jeito. Um problema é que tendemos a tratar desses assuntos de forma separada. Gestão, orçamento, fiscal. Você vai nos países desenvolvidos, isso é uma conversa só. Essa discussão não é fragmentada. A discussão da gestão é a discussão da qualidade do gasto, do espaço fiscal.

No Brasil, não olhamos para a qualidade do gasto?

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Essa é coisa mais difícil, que o pessoal não consegue entender. Se fala: “Vamos gastar em educação”. Agora, quem disse que estamos gastando bem? Triplicamos os gastos em educação em 20 anos, mas a educação não melhorou. Tem coisas que não é mais dinheiro, é gastar melhor. Só que se não nos preocupamos em monitorar isso, a discussão fica em “mais dinheiro, menos dinheiro”. Na área de ciência e tecnologia, precisamos gastar de forma consistente ao longo do tempo, mas se o gasto é pulverizado, não tem efeito nenhum. Precisamos ter foco. Tem palavras com as quais temos dificuldades: foco, prioridades, qualidade do gasto.

Como vê a discussão sobre isso na transição de governo?

A nossa discussão no âmbito da política é muito rasa. Vamos pegar os grupos [de trabalho do gabinete] de transição. O governo [eleito] elegeu um grupo de transição chamado de planejamento, mas não tem ninguém da área de gestão lá. Tem só um pouco de gente da área de orçamento. O governo [eleito] não enxerga isso. Vamos pegar o governo que se encerra. Saiu uma nota do Ministério da Economia umas semanas atrás apresentando resultados de reforma administrativa: 60 mil funcionários a menos e 0,8 ponto porcentual do Produto Interno Bruto (PIB) a menos em gastos com a folha de pagamentos dos servidores públicos. A visão é que gastar menos é bom. Ter menos gente é bom. Assim, no absoluto. Isso é um reducionismo. Agora, o governo [Bolsonaro] desmanchou as áreas de meio ambiente, educação, saúde, assistência social.

Como deveria ser a discussão?

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Temos que trabalhar, simultaneamente, planejamento, orçamento, gestão, compras, controle, transformação digital. Essas coisas fazem parte de um conjunto de politicas de gestão. A tendência nossa é concentrar [o debate] no fiscal, na área econômica, no quantitativo, e não perder tempo em nada dessas outras coisas. Só que o que mais dá qualidade ao gasto são as outras coisas. Para o mercado [financeiro], o que interessa é o desequilíbrio fiscal, o equilíbrio macroeconômico. Tudo bem, isso é importante, mas achar que o governo é só isso é um reducionismo muito grande.

Diante do desmanche das áreas que o sr. mencionou, é melhor o próximo governo apostar numa reforma mais ampla da gestão pública ou recompor minimamente um conjunto de políticas públicas?

Acho que o governo [eleito] está indo na direção da segunda opção, mas acho que é importante a primeira opção, porque as reformas na área de gestão pública afetam todo o governo. Quem disse que vamos conseguir recuperar todas essas políticas [setoriais, de áreas como meio ambiente, saúde, educação e assistência social] simultaneamente e que serão todas bem conduzidas? Provavelmente, vamos acertar numas e errar noutras. Na área de gestão, o impacto é sistêmico, afeta o conjunto da administração. Daí a importância de darmos atenção a essa agenda. É uma agenda estruturante do gasto público, que vai afetar todos os ministérios. Agora, temos que ter atenção para isso e atacar alguns estigmas. Gestão, eficiência, qualidade do gasto são expressões associadas ao discurso conservador, neoliberal, mas não tem nada neoliberal nisso. É igual a associar distribuição de renda, igualdade e participação à esquerda. As palavras não são monopólio das ideologias.

Quais os problemas de uma reforma administrativa focada apenas na redução do gasto?

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Quem sofre é a população. É a população que está interessada em educação, saúde, vacina, acesso a curso superior e técnico, renda mínima e assistência social. O mercado [financeiro] não está preocupado. As pessoas que estão operando no mercado, isso tudo, elas resolvem no setor privado. Quem precisa do Estado é quem não tem condição de acessar a provisão privada de serviços. Não temos a tradição europeia. Lá, todo mundo vai em médico do sistema público. Aqui, a relação das classes médias e altas com o sistema publico é oportunística. Tem a dedução do imposto de renda da saúde privada, os melhores alunos vão para as universidades públicas. Precisamos enfrentar esse assunto na perspectiva de tornar mais eficiente o gasto. Dinheiro não nasce em árvore. O mercado acha que a solução para tudo é mais mercado. A esquerda acha que a receita para tudo é mais dinheiro. Não se trata disso. Temos que gastar bem e regular bem a provisão de serviços públicos e de infraestrutura. As agências reguladoras, por exemplo. Tem várias agencias que ficaram anos sem diretores. E a politização da nomeação de diretores tem sido um desastre. Todo o esforço de regular a provisão de serviços públicos poderá ter problemas.

Só que o próximo governo não poderá abrir mão de algum equilíbrio fiscal. Como fica a reforma administrativa nesse contexto?

As coisas acontecem muito rapidamente. A PEC [proposta de emenda à Constituição] “kamikaze” [como ficou conhecido o conjunto de medidas adotadas pelo governo Bolsonaro perto das eleições de outubro passado, que foram tidas como eleitoreiras, como a elevação do Auxílio Brasil ou o pagamento de auxílios temporários para taxistas e caminhoneiros] do Bolsonaro explodiu tudo. O governo agora eleito está indo pelo mesmo caminho e está tentando segurar um espaço fiscal no início do governo. Acho que fazer isso sem a escolha do ministro da Economia, sem a equipe econômica participando das contas, não é muito simples. Óbvio que o Lula está priorizando a governabilidade política. Ele quer assegurar uma margem de manobra inicial para o governo, mas quem vai ter que equacionar isso depois é a equipe econômica dele, que não está definida.

No livro, vocês listam mitos sobre o funcionalismo público. O quanto eles atrapalham a reforma administrativa?

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A grande maioria dos funcionários públicos trabalha, normalmente, ordinariamente, tranquilamente. Não existe essa coisa de “Maria Candelária” [referência a uma marchinha de carnaval, de 1952, composta por Armando Cavalcanti e Klecius Caldas, que ironiza a figura do funcionário público que não trabalha muito], da cultura política do Rio, que sobrevive de certa forma em Brasília. Agora, precisamos dar transparência ao trabalho, ao desempenho, ao funcionamento das coisas. A opacidade e a desinformação fomentam esses mitos. A sociedade se ressente. Do ponto de vista tributário, o Brasil arrecada mais ou menos a média do que arrecadam os países da OCDE [Organização pela Cooperação e Desenvolvimento Econômico, que reúne os países desenvolvidos e alguns emergentes], mas a contrapartida em serviços públicos deixa muito a desejar. E a sociedade se frusta com isso. O corporativismo, que é uma crítica legítima, quando vamos ver, a maioria dos privilégios não está no Executivo. Agora, tenta entrar no Judiciário e no Ministério Público. Tenta discutir desempenho, carga de trabalho. É outro planeta. Quando há reformas, reclamamos dos sindicatos, mas não são eles quem bloqueiam as mudanças. O medo dos parlamentares não é do movimento sindical. Os parlamentares têm medo é do mundo jurídico, que tem outras formas de se proteger em relação a reformas, particularmente pela separação entre poderes. A lei dos supersalários, por exemplo. O presidente do Senado [Rodrigo Pacheco (PSD-MG)] está sentado em cima tem meses. Já foi votada na Câmara. Por que ela não anda?

Diante do crescimento das emendas de relator no Orçamento, o chamado “orçamento secreto”, é preciso fazer uma reforma orçamentária junto da administrativa?

A reforma orçamentária é talvez a mais importante a ser enfrentada pelo próximo governo. É interligada com a administrativa. A nossa legislação orçamentária é de 1964. Mexemos no lado financeiro, com a Lei de Responsabilidade Fiscal, em 2000, mas não mexemos no lado orçamentário. Todo país desenvolvido tem orçamento plurianual, tem orçamento global. Aqui não, é tudo divididinho: investimento, pessoal, custeio. Você não pode remanejar. Outro exemplo: as universidades ou institutos de pesquisa. Se eles geram receita própria, têm que devolver tudo pro Tesouro. Qual o incentivo para gerar receita própria? Para o Brasil, receber doação internacional [para proteger o meio ambiente, como no caso do Fundo Amazônia] e colocar no Orçamento é um tiro no pé. São questões de décadas que a gente não mexe. Agora, o governo só faz a coisa certa depois de esgotar todas as possibilidades de fazer a coisa errada. Em matéria de Orçamento, temos a impressão que chegamos ao fim da linha, com o “orçamento secreto”, alocado pelo Legislativo. Começou no governo Dilma (Rousseff), com o orçamento impositivo. O Orçamento que o Legislativo aloca é atomizado, para a “minha cidade”, “meus eleitores”. Não é um orçamento que transforma, que muda, que gere escala. Não é um assunto que será resolvido de uma hora para a outra, mas tem que começar. A reforma da Previdência levou quase 30 anos para ser concluída, foram várias etapas.

Não adianta fazer reforma administrativa sem mexer nisso?

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Diria que, para que ela seja mais efetiva, precisa mexer nisso. Se não, ela vai ficar prejudicada.

E como isso se relaciona com o equilíbrio fiscal?

Veja bem, se virarmos para as universidades e dissermos: olha, te dou pão e água. Manteiga, geleia, suco de laranja são por sua conta. Tudo bem. Eu garanto pão e água. Agora, se eu não garanto nada e o que você gerar é meu, fica difícil. Podemos pegar as agências reguladoras, e darmos condições para elas reinvestirem as multas para se profissionalizar e se modernizar. O que não dá é o dinheiro ir todo para o Tesouro e, na alocação do Orçamento do ano que vem, ele ser redistribuído. Isso perverte todos os incentivos.

Então a reforma orçamentária contribuiria para o ajuste fiscal?

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Seguramente.

No governo Bolsonaro, as políticas ambientais foram destaque entre os problemas de gestão pública e o sr. trabalhou no Ministério de Meio Ambiente. O que fazer no próximo governo?

Num outro artigo, propusemos uma secretaria especial de emergência climática, vinculada à Presidência, porque mudança de clima não é mais problema só de meio ambiente. Isso é assim há anos no mundo. Temos ministro da economia discutindo clima, o presidente da República, o primeiro-ministro. Essa é uma área que perpassa todo o governo, desenvolvimento, indústria e comércio, agricultura, minas e energia, ciência e tecnologia, mas precisa coordenar o governo nessa direção. O Meio Ambiente tem suas agendas, (como) biodiversidade, conservação, cidades sustentáveis, desmatamento ilegal, que é uma agenda pesadíssima. Agora, temos que dar um tratamento sistêmico à questão climática.

Para além desse tratamento sistêmico, qual o desafio das agendas específicas do Ministério do Meio Ambiente?

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É grande. Quando conseguimos manter, por cinco anos, as taxas mais baixas de desmatamento [na Amazônia], de 2011 a 2015, tínhamos um esforço conjunto das Forças Armadas, da Polícia Federal, do Ibama, do ICMBio, do GSI [Gabinete de Segurança Institucional da Presidência da República]. Havia um esforço do governo para manter as taxas baixas. Agora, vimos o atual governo patrocinando o desmatamento.

Esse esforço conjunto pode ser retomado?

As Forças Armadas têm uma atuação na região, no geral, muito positiva. Agora, elas precisam ser integradas ao esforço de governo. A questão está menos no campo e mais na mentalidade. Se o comando vai numa direção construtiva, ajuda muito. Agora, se o comando enlouque, fica difícil.

E a parte orçamentária do Ministério do Meio Ambiente?

Vai ser um grande desafio. Vai ter que recompor. E é por isso que é importante a questão das doações internacionais. Do jeito que está hoje, não consigo usar doação para melhorar o efetivo de fiscalização, para melhorar a preservação das unidades de conservação. Eu não posso gastar, não consigo internalizar o dinheiro. Eu não consigo usar o dinheiro de fora [do País] para pessoal e custeio.

Então a recomposição tem que ser no Orçamento, impactando o equilíbrio fiscal?

Ou então permitimos que as doações internacionais não entrem como gasto do Tesouro, por que não? Esses problemas não vão ser resolvidos no Ministério do Meio Ambiente, vão ser resolvidos no Ministério do Planejamento. Os problemas da saúde vão ser resolvidos no Planejamento. Os problemas de infraestrutura também. Achamos que o problema está num lugar, mas, se não resolvermos os problemas de gestão, não adianta.

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