Reforma agrária volta à discussão na campanha eleitoral; veja o que aconteceu com áreas invadidas

Para especialistas, o modelo de reforma agrária baseado na instalação de assentamentos para apaziguar os conflitos rurais não se sustenta; é necessário levar em conta a aptidão para a prática agrícola e garantir investimentos e apoio

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Foto do author José Maria Tomazela
Atualização:

Marabá Paulista e Iaras (SP) - Em outubro de 2009, quando integrantes do Movimento dos Trabalhadores Rurais Sem Terra (MST) invadiram uma fazenda da empresa de sucos Cutrale, entre Iaras e Borebi, no interior de São Paulo, e usaram tratores da própria fazenda para destruir 7 mil pés de laranja, a assentada da reforma agrária Conceição do Marinho, de 74 anos, estava entre os invasores. “Fiquei sentadinha em um canto com a minha Bíblia orando ao Senhor e vendo o pessoal quebrar tudo.” Hoje, a agricultora agradece a Deus pelo MST não ter conseguido tomar a fazenda da Cutrale. Seu marido é empregado da empresa há sete anos e o salário de R$ 1,5 mil por mês sustenta o casal.

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Assentados há 15 anos no Assentamento Zumbi dos Palmares, vizinho à Cutrale, Conceição e Eurimar Francisco da Silva, de 60 anos, moram em um barraco de madeira coberto com lona preta e não conseguem se sustentar com a renda do lote de 15 hectares - cada hectare equivale a um campo de futebol. Além do salário da Cutrale, o casal obtém uma renda extra coletando a resina dos pinus que restaram no lote quando as terras de um horto florestal foram divididas.

Nesta campanha eleitoral, o tema da viabilidade dos assentamentos e da questão das invasões de terras voltou às discussões. No último dia 7, durante discurso pelo bicentenário da Independência, no Rio, o presidente Jair Bolsonaro (PL), candidato à reeleição, disse que seu governo botou um fim nas invasões do MST. “Você não ouve mais falar de invasão do MST pelo Brasil. Demos dignidade aos assentados titulando terras para a eles”, afirmou.

O tema está no programa de governo de sete dos doze candidatos à Presidência. Quatro defendem a redistribuição de terras para quem ainda não tem, entre eles o ex-presidente Lula. Três, como o presidente Bolsonaro, defendem a regularização fundiária, que é a titulação dos assentados como proprietários das terras. Os outros são Simone Tebet (MDB) e Ciro Gomes (PDT).

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Em seu mandato, Bolsonaro suspendeu a desapropriação de terras para novos assentamentos e investiu na entrega de títulos aos assentados. Até agora, foram entregues quase 360 mil documentos. Em sabatina no Jornal Nacional, da TV Globo, o presidente já havia dito que pacificou o MST, “titulando as terras pelo Brasil”.

Questionado pelo mesmo programa sobre a proximidade do seu partido com o MST, o que gerava desconfiança no agronegócio, Lula disse que o movimento só invadiu terras improdutivas e está “cuidando de produzir”. Segundo ele, o MST de 30 anos atrás não existe mais e o atual convive pacificamente com o agronegócio. “Para mim, o pequeno produtor rural, o médio produtor rural, tem de viver pacificamente com o grande negócio que o Brasil tem. O Brasil tem a possibilidade de ter os dois. Um produz mais internamente, o outro produz externamente.”

Conforme apurou o Estadão Verifica, embora o número de ocupações de terra tenha diminuído no governo de Bolsonaro, elas não deixaram de ocorrer. Segundo relatório da Comissão Pastoral da Terra (CPT), em 2021 foram registradas 50 ocupações; em 2020 foram 29; e em 2019, ano em que o presidente assumiu o mandato, 46. Em 2018, por exemplo, foram 157 ocupações e há uma década, em 2012, eram 255. Os números são referentes à soma de ocupações realizadas por diferentes movimentos sociais envolvidos na questão da reforma agrária. O MST, citado diretamente pelo presidente, afirma ter paralisado as ações por dois anos devido à pandemia de covid-19, mas que as retomou em 2022 e ocupou, no primeiro semestre, 28 áreas que considera improdutivas.

Conceição e Eurimar Francisco da Silva estão há 15 anos no Assentamento Zumbi dos Palmares Foto: Daniel Teixeira/Estadão

Modelo

Para especialistas, o modelo de reforma agrária baseado na instalação de assentamentos para apaziguar os conflitos rurais não se sustenta. Segundo eles, sem uma seleção que leve em conta a aptidão do assentado para a prática agrícola, além de investimentos e de uma estrutura de apoio, os projetos estão fadados ao fracasso.

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Conceição e Eurimar são, de certa forma, exemplo disso. Têm uma trajetória de lutas pelo MST. Ele participou das ocupações do Horto Florestal de Iaras, reserva estadual de pinus, em 2005,e foi assentado nessa área três anos depois. Conceição obteve um lote em outra área do mesmo assentamento depois de participar de várias ocupações quando ainda não estava casada com Eurimar. “Não consegui tocar o lote e passei para minha filha e meu genro, mas eles ficaram dois anos e passaram para um pessoal de Campinas”, contou a mulher.

Ela ainda sonha com a casa de alvenaria e com água na torneira que, após mais de uma década vivida no lote, ainda não conseguiu. Segundo Eurimar, o dinheiro liberado pelo governo federal para a construção da casa ficou em contas das inúmeras associações criadas para organizar os mutirões. As paredes de alvenaria nunca foram erguidas.

Conforme a prefeitura de Iaras, menos de um terço das 434 famílias assentadas no Zumbi dos Palmares permanecem em seus lotes. Um número ainda menor consegue tirar renda para sobreviver sem depender de outras fontes de recursos. Só a Cutrale emprega de 200 a 300 assentados ou dependentes. Os ônibus da empresa percorrem as ruas de terras do assentamento levando e trazendo apanhadores de laranja, como Eurimar.

Outros assentados se tornaram servidores públicos da prefeitura ou do Estado. A assentada Vânia Balbino da Silva, 35 anos, trabalha como monitora na Escola de Educação Infantil e de Ensino Fundamental, uma das poucas benfeitorias do assentamento. “A maioria trabalha fora porque não dá para viver da terra”, disse.

Um dos poucos que resistem desde o início, Evanildo Daniel dos Santos, assentado desde 2005, produz leite e ovos, mas depende dos R$ 600 do Auxílio Brasil para não passar necessidade. “Isso porque também faço bicos como pedreiro e meu companheiro que mora comigo aqui no lote, trabalha no laranjal da Cutrale”, disse.

Pedro da Silva arrendou a área de outro assentado no lote 278, denominado Sítio São Pedro Foto: Daniel Teixeira/Estadão Conteúdo

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Projeto de colonização

O assentamento Zumbi dos Palmares foi criado em 1998, depois que o governo federal decidiu retomar as terras de um antigo projeto de colonização conhecido como Núcleo Colonial Monções. O parcelamento do núcleo aconteceu em 1909, quando cerca de 40 mil hectares foram distribuídos a colonos europeus e asiáticos, mas o projeto não vingou. As glebas foram ocupadas por fazendeiros e arrendadas para empresas de reflorestamento como a Eucatex e a Duratex. O governo estadual instalou um horto florestal para abastecer as ferrovias com madeira de dormentes.

Em 1993, ao realizar um estudo da cadeia dominial (a relação de todos os proprietários de determinado imóvel) a pedido da Justiça, em uma ação de usucapião, o Incra concluiu que as terras eram da União e iniciou o processo de retomada. As fazendas entraram na mira do MST. O Incra concluiu que parte da fazenda Santo Henrique, da Cutrale, com 1 milhão de pés de laranja, também pertence à União. A ação reivindicatória das terras ainda não teve julgamento final.

A fazenda de laranja está rodeada por outros assentamentos, além do Zumbi dos Palmares, o mais antigo. Conforme a pesquisadora Marina Caraffa, que baseou sua dissertação de mestrado na Faculdade de Arquitetura e Urbanismo da USP em estudo desse assentamento, a permanência dos assentados nos lotes é uma seleção natural. “Ficam os que melhor aprendem a lidar com a terra, e são poucos.”

Ela relatou o caso de um assentado que plantou arroz beneficiado, comprado em supermercado, esperando que nascesse. “Observa-se que o perfil das famílias verificado no levantamento de campo, cerca de 70% são de origem urbana, por isso faz-se necessário acompanhamento mais efetivo dos técnicos de campo.” Em 2014, quando o estudo foi realizado, muitas famílias tinham vendido ou arrendado o lote, o que as normas da reforma agrária não permitem.

Nos últimos anos, a situação só se agravou. No início de setembro, a reportagem encontrou Pedro da Silva, de 69 anos, sua mulher e sua enteada no lote 278, denominado Sítio São Pedro. Ele contou que o genro arrendou a área de outro assentado há cinco meses e entregou para ele plantar legumes. “Meu genro não mora aqui, mas vem todo mês”, disse. Silva não conseguiu abrir um canteiro sequer na terra seca e arenosa, porque o lote não tinha água. “Estou tentando cavar um poço no braço”, disse. Pedro, aliás, desconhecia o nome do assentamento em que mora.

O assentado Florisvaldo de França na Fazenda Nazaré, uma propriedade considerada modelo na criação de gado com alto padrão genético  Foto: Daniel Teixeira/Estadão

Fazenda modelo

Mesmo em assentamentos mais novos e mais bem estruturados, como o Governador André Franco Montoro, instalado em outubro de 2017, em Marabá Paulista, no Pontal do Paranapanema, a reforma agrária pouco avançou. As 236 famílias foram assentadas sobre os 5,1 mil hectares da Fazenda Nazaré, uma propriedade considerada modelo na criação de gado com alto padrão genético. O assentado Florisvaldo de França, de 65 anos, conta que, quando entrou em seu lote, o 182, o capim braquiária, cultivado como pasto para o gado, chegava à altura do peito.

Com o pasto pronto, muitos assentados passaram a criar vacas de leite, incentivados por um projeto do Instituto de Terras do Estado de São Paulo (Itesp), órgão do governo estadual responsável pelo assentamento, que liberou R$ 8,9 milhões para a compra das matrizes. Eurismar afirma que o dinheiro ainda não chegou para ele. Em um pedaço da terra o assentado cria três matrizes cedidas por um primo e tira 10 litros por dia, vendidos a cerca de R$ 2,5 o litro - uma parte fica para o consumo da família. O resto da área com pastagem ele arrenda para um vizinho. “Ele não me paga em dinheiro, mas em madeira para cercar o lote.”

O Itesp informou ter perfurado três poços artesianos com caixas d’água para uso coletivo, mas o encanamento não chegou ao lote de França. O vizinho que arrenda o pasto também cede água para ele tratar as galinhas, regar a horta, o pomar e abastecer a casa. A moradia foi construída com verba de R$ 34 mil liberada pelo Itesp para cada família.

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O leite é a única produção comercializada pelo assentado e sua mulher, Rosemeire Martins da Rocha, de 48 anos, que trabalha como cozinheira no único restaurante de Marabá Paulista, recebendo R$ 60 por dia. Passados cinco anos, o casal depende da aposentadoria dele, de R$ 1,2 mil, para sobreviver. “Como estou pagando empréstimo consignado, sobram só R$ 600 por mês”, disse.

A Fazenda Nazaré foi invadida ao menos nove vezes ao longo de 15 anos, até ser conquistada pelo MST. A propriedade, da família do político e ex-prefeito de Presidente Prudente Agripino Lima (PMDB), estava em terras devolutas (áreas públicas sem destinação específica), como a maior parte das terras do Pontal do Paranapanema, segundo o governo estadual, que acionou os donos.

Enquanto o processo se arrastava, os sem-terra atuaram frequentemente. A primeira invasão aconteceu em 2001 e França estava entre os ocupantes. “Fomos colocados para fora pela polícia, mas depois voltamos”, contou. Em janeiro de 2002, ele estava também na marcha promovida pelo então líder do MST, José Rainha Júnior, em direção a Presidente Prudente para pressionar o governo pela desapropriação da fazenda. Prefeito à época, Agripino comandou pessoalmente um bloqueio no acesso à cidade pela rodovia Assis Chateaubriand com tratores e caminhões da prefeitura. “Eles podem entrar, por cima do meu cadáver”, disse, na ocasião. A marcha foi interrompida.

Em 2004, integrantes do MST liderados por José Rainha invadiram a fazenda duas vezes. Em uma delas, depois de serem retirados do local, usaram coquetéis molotov para atear fogo às pastagens. Os 40 empregados se mobilizaram para retirar as 8 mil cabeças de gado do pasto em chamas. Na época, o atual secretário nacional de Assuntos Fundiários, Luiz Antonio Nabhan Garcia, dirigia a União Democrática Ruralista (UDR), entidade dos fazendeiros com sede em Prudente. Ele enviou ofício pedindo segurança ao então secretário estadual de Justiça, Alexandre de Moraes, atual ministro do Supremo Tribunal Federal.

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Em agosto de 2009, a Justiça reconheceu que as terras eram públicas e foi iniciado o processo para assentamento. Passados cinco anos, a maioria dos lotes ainda está coberta pela braquiária. O assentado Rafael Domingues, de 38 anos, que arrenda parte do lote de Florisvaldo, também ocupa a gleba de Adilson Gales, que faleceu. Ele conta que a viúva foi embora, deixando o local abandonado. Com o seu, Domingues já explora três lotes do assentamento e vai formando uma fazendinha no interior do assentamento, onde cria 25 matrizes leiteiras, um touro e uma dezena de bezerros, tirando 60 litros de leite por dia.

Mesmo com mais apoio do que os colegas de Iaras, muitos assentados de Marabá Paulista já desistiram dos lotes. No último dia 2 de setembro, a agricultora Fernanda Santos Pereira, de 36 anos, não sabia o que fazer para enfrentar a praga conhecida como assa-peixe que infestava o pasto do seu lote, o Sítio Canaã.

Ela contou que seu marido, Carlos Alexandre Pereira, pegou o lote que havia sido abandonado pelo assentado original, seu primo, Sílvio Oliveira Pereira. “Ele (Sílvio) entrou em 2017 e tocou até o início deste ano, mas não conseguiu trazer a esposa dele para o assentamento, e foram embora para o Paraná.” Segundo ela, o marido está regularizando a situação junto ao Itesp para continuar no lote. O casal tem quatro filhos - Gabriel, 17 anos, Iago, 15, Yasmin, 10 e Nuan, de 2 anos. Sem produção na terra, a família sobrevive com os R$ 600 do Auxílio-Brasil.

‘Ações esparsas’

Para a pesquisadora Caraffa, os assentamentos rurais do programa de reforma agrária implantados nos pequenos municípios do interior de São Paulo são resultado de ações esparsas que não fazem parte de um planejamento estratégico territorial articulado, no qual as esferas federal, estadual e municipal funcionam com participação social.

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“O Estado distribui terras, mas não investe capital necessário para um planejamento de longo prazo. Não são criadas as condições institucionais e financeiras para prover a estruturação dos assentamentos e dos seus sistemas produtivos. O que se verifica é um relativo abandono dos assentados após a entrada no lote.”

No estudo A Criação de Assentamentos Rurais no Brasil e seus desafios, publicado em 2020, o engenheiro agrônomo Marcelo Scolari Gosch, doutor em Ciências Ambientais pela Universidade Federal de Goiás, identificou que a maioria dos assentamentos foi criada “ao sabor dos conflitos rurais e dos interesses políticos”, de forma desordenada.

“A política de reforma agrária como mero instrumento para apaziguar conflitos sociais deve deixar de existir para dar lugar a uma reforma agrária eficaz e eficiente, onde o Estado brasileiro consiga planejar as ações de criação de assentamentos rurais em zonas prioritárias, viabilizar sua permanência e produção rural, vinculando essa produção a mercados consumidores locais e regionais, proporcionando assim renda e bem estar social às famílias”, avaliou.

O Incra informou que a política atual é concluir o processo de assentamento das famílias nos lotes concedendo títulos de domínio aos assentados para que tenham autonomia para produzir no que é seu. De 2019 a 30 de agosto deste ano, foram emitidos 358.144 documentos de titulação para famílias beneficiárias do Programa Nacional de Reforma Agrária. Em São Paulo, foram entregues 806 títulos. Desde que foi iniciado, há 35 anos, o programa assentou mais de 1,3 milhão de famílias.

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O Itesp informou ter investido, em parceria com o Incra, R$ 6,7 milhões em projetos de habitação no Assentamento Governador André Franco Montoro, além de R$ 2 milhões para apoio inicial e fomento às famílias. Outros R$ 4 milhões foram liberados para projetos de produção. Além de cursos e palestras, foram realizadas 1.325 visitas aos assentados para orientações técnicas.

Para MST, houve desmonte da política

Gilmar Mauro, da direção nacional do MST, disse que já são seis anos de desmonte da política da reforma agrária, com corte total no orçamento do Incra, que deixou de investir nos assentamentos existentes e não assentou novas famílias. “Houve desmonte de políticas públicas para a pequena agricultura e assentamentos. Acabou o crédito, acabou o Programa de Aquisição de Alimentos (PAA) e a Conab (Companhia Nacional da Abastecimento) foi sucateada. Toda prioridade foi para a grande agricultura e o agronegócio. Hoje o Brasil planta 40 milhões de hectares em soja e apenas 4,3 milhões em feijão e arroz”, disse.

Segundo ele, a lógica da exportação levou o país a exportar trigo e depois importar em larga escala. “O benefício é da Lei Kandir de 1996, de que quem exporta não precisa pagar imposto. Ou seja, o produtor exporta o trigo produzido aqui e depois o governo precisa importar. Chegamos à vergonha de ter 33 milhões de pessoas passando fome, por isso defendemos que as terras públicas sejam destinadas à reforma agrária para a produção de alimentos.”

O líder do MST afirmou que, no Pontal do Paranapanema ainda existem 1 milhão de hectares de terras públicas griladas e que, na região de Iaras, a Cutrale se apropriou de terras griladas. “Que essas terras sejam destinadas para a reforma agrária, ao plantio de alimentos, ao estilo de agrofloresta, que se garante alimentos e reflorestamento. Para isso é necessária uma reforma agrária que estimule a produção, que assente muitas famílias produzindo alimentos para os grandes centros.”

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