O ano de 2023, o mais quente registrado até então, foi marcado por uma elevação de temperatura de 1,48°C em relação à média pré-industrial (1850-1900). As temperaturas mais quentes trouxeram eventos extremos e desastres em todo o mundo, desde ondas de calor fatais nos Estados Unidos, no Sul da Europa e na China, até incêndios florestais devastadores no Canadá e no Havaí, além de chuvas torrenciais e inundações na Coreia do Sul, Líbia e Índia.
No Brasil, a seca afetou drasticamente as águas do Rio Amazonas, cujo nível caiu mais de 7 metros, muito além da média histórica para períodos de estiagem. Essa redução impactou severamente o transporte hidroviário, gerando uma crise de segurança alimentar para comunidades dependentes da pesca. Além disso, em setembro, um ciclone extratropical no Rio Grande do Sul resultou no aumento vertiginoso do Rio Taquari, deixando um rastro de destruição, mortes e milhares de desabrigados.
Meses depois, antes que qualquer plano de ação de emergência fosse colocado em prática na região, vivemos o maior evento climático da história do Rio Grande do Sul e do País. São mais de 2 milhões de pessoas afetadas, em 447 municípios, além de 147 mortes registradas, número que, infelizmente, tende a se atualizar, já que são 127 os que ainda estão desaparecidos.
Esse cenário destaca a urgência de ações coordenadas para enfrentar os impactos de eventos extremos devido às mudanças climáticas. No entanto, o que se observa é que o progresso na adaptação às mudanças climáticas permanece desigual, fragmentado e desproporcional em seu impacto aos mais vulneráveis. Como se não bastasse, a polarização da agenda climática tem aumentado no mundo. Nos EUA, por exemplo, 85% dos que se encontram à esquerda politicamente consideram as mudanças climáticas como uma grande ameaça ao seu país, contra apenas 22% dos que estão à direita (Spring 2022 Global Attitudes Survey, Pew Research Center). Esse dado importa em um ano em que o maior número de eleitores da história irá votar, com 64 países, mais a União Europeia, com eleições nacionais em 2024, representando 49% da população mundial.
Os desafios de adotar uma agenda de adaptação climática não estão circunscritos somente à polarização política, mas se fazem presentes em dimensões concretas. O financiamento global para o clima, por exemplo, dobrou de US$ 653 bilhões, em 2019-2020, para US$ 1,3 trilhão anualmente em 2021-2022. Em contrapartida, o montante destinado aos esforços de adaptação - em sua maioria vindo do setor público - diminuiu de 7%, em 2019-2020, para 5% em 2021-2022 (Global Center on Adaptation, 2023). Ainda, o Relatório de Adaptação da UNEP 2023 estima o hiato atual de financiamento para adaptação entre US$ 194 bilhões e US$ 366 bilhões anualmente.
Para dar conta do desafio, o Ministério do Meio Ambiente deve lançar o Plano Nacional de Adaptação, como parte integrante do Plano Nacional sobre Mudança do Clima. Além de uma estratégia nacional, 14 planos setoriais de adaptação serão publicados para os seguintes setores: agricultura e pecuária, biodiversidade, cidades e mobilidade, gestão de riscos e desastres, indústria, energia, transporte, igualdade racial e antirracismo, povos e comunidades tradicionais, recursos hídricos, saúde, segurança alimentar e nutricional, oceano e zona costeira.
Além de políticas públicas robustas nacionais, como a incorporação de medidas de adaptação dentro do Programa de Aceleração de Crescimento (PAC), é crucial que os esforços de adaptação sejam ampliados para os estados e municípios brasileiros. A lista de municípios prioritários para ações de gestão e prevenção de desastres, elaborada pela Casa Civil, identificou mais de um terço dos municípios brasileiros como áreas de alta vulnerabilidade, porém negligenciou regiões ameaçadas por secas e cenários climáticos futuros. Ainda, faz-se necessário garantir que as novas Contribuições Nacionalmente Determinadas (NDCs) ao Acordo de Paris, que devem ser apresentadas antes da COP-30 no Brasil por todos os países, elevem o perfil e a ambição de medidas de adaptação para potencializar a ação global nessa agenda.
Os sistemas que nos sustentam sempre foram complexos. Então, por que nossas respostas a eles não são? Evidente que a complexidade da questão demanda coordenação a nível subnacional, nacional, regional e internacional, mas tamanho desastre traz uma reflexão necessária para o campo filantrópico climático.
A filantropia climática desempenha um papel crucial nesse cenário, promovendo abordagens inovadoras e colaborativas. É preciso nos mantermos firmes nos esforços para acelerar a mitigação das mudanças climáticas, mas também ampliar nossa atuação e desenvolver estratégias e soluções que tenham as pessoas no centro da discussão. Isso exige uma abordagem integrada para uma agenda de desenvolvimento de país.
Um olhar para as pessoas inclui temas como redução de escassez de água, construção de sistemas alimentares e agrícolas resilientes ao clima, redução de impactos à saúde relacionados ao clima, como ondas de calor, proteção dos ecossistemas e biodiversidade, aumento da resiliência de infraestruturas, redução dos efeitos do clima nos meios de subsistência e proteção do patrimônio cultural.
Situações extremas como a que vivemos no Rio Grande do Sul provocam também uma reflexão sobre as tendências da filantropia climática global para a década 2030. Entre elas, estão a agricultura e a pecuária regenerativas, a transição energética e esforços intensificados de descarbonização da economia por meio de transições industriais e das cadeias de suprimentos. Ainda que a agenda de sistemas alimentares, por exemplo, seja a que mais cresce no nosso campo, o financiamento para torná-la mais resiliente e adaptável ainda não é compatível com o tamanho do desafio. O sistema alimentar global recebeu apenas 3% do financiamento público climático e, arrisco dizer, muito pouco deste montante está dedicado à construção de uma agricultura adaptável às mudanças do clima e que, em vários casos, pode contribuir para amenizar eventos extremos - por exemplo, a partir da agricultura urbana.
Por muito tempo, a adaptação foi enquadrada como um desafio e uma prioridade doméstica, exigindo financiamento público doméstico, tornando-se uma agenda de relevância estratégica apenas para os países em desenvolvimento mais vulneráveis às mudanças climáticas. No entanto, a interconexão das cadeias de suprimentos globais e a interdependência mútua entre países estão se tornando cada vez mais evidentes. Ondas de calor e escassez crescente de água na Índia, por exemplo, levaram a uma queda drástica na produção de trigo e açúcar em 2023, gerando proibições e restrições de exportação que também perturbaram os mercados globais. No Brasil, a seca na Amazônia e em grande parte do Cerrado, em 2023-2024, causou um recorde de quebra de safras como a soja.
É evidente que a filantropia sozinha não irá mudar esse ponteiro. Mas ela pode liderar a construção de alianças e coalizões entre atores não estatais, sociedade civil, setor privado e organizações internacionais em prol de uma agenda de adaptação global. Em tempos de crise sem precedentes, precisamos de lideranças igualmente extraordinárias. Não temos mais tempo para o business as usual. Precisamos manter acesa a esperança de reverter o aumento da temperatura terrestre na mesma medida em que aceitamos o que já é uma verdade: o clima já mudou, e a gente precisa mudar com ele.
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