De setembro a novembro deste ano, aconteceram a New York Climate Week, a COP-16 da Biodiversidade, a COP-29 do Clima e a Cúpula de Líderes do G-20, moldando a geopolítica ambiental. As frustrantes decisões da diplomacia multilateral não representam o todo dos movimentos que estão ocorrendo no campo ambiental.
É visível o aumento do engajamento do setor privado com diversas nuances estratégicas, algumas voltadas para mitigação de emissões de gases de efeito estufa, outras destinadas a medidas de adaptação. As mudanças climáticas estão afetando cadeias de suprimento dependentes do uso da terra, com alterações drásticas em regimes hídricos (excesso de chuvas no Sul e secas dramáticas na região Norte), confirmando previsões de especialistas de que o Brasil será um dos países mais afetados pelos fenômenos climáticos extremos.
Em todos os eventos multilaterais mencionados, a presença da sociedade civil foi intensa e contributiva, alavancada pela filantropia. Seu papel tem sido central na geração e disponibilização de conhecimentos, no desenho de estratégias de políticas públicas e privadas, na incubação de iniciativas tecnológicas e, muito especialmente, no fortalecimento de redes multissetoriais (por exemplo, a Coalizão Brasil Clima, Florestas e Agricultura, a Concertação pela Amazônia e o MapBiomas, entre outras).
É evidente a complexidade da crise climática, das transições energética e alimentar, dos limites dos recursos naturais, da perda de biodiversidade, do aumento da desertificação, da poluição plástica dos oceanos, dos refugiados climáticos, além, obviamente, dos conflitos armados, geradores de terrível sofrimento humano e consequências econômicas globais. As teorias acadêmicas que estudam a complexidade destacam os chamados “problemas indomáveis”, ou “wicked problems” (Horst Rittel e Melvin Webber), bastante apropriados para lidar com a dinâmica diplomática, civil e empresarial desses eventos.
Em geral, problemas indomáveis têm as seguintes características:
- Não há uma formulação definitiva para os problemas. Não há informação suficiente em racionalidade completa. Os limites são imprecisos, incertos, voláteis.
- Há sempre várias explicações para o problema, muitas delas discrepantes (ambíguas). A escolha da explicação é frequentemente arbitrária.
- Não há soluções definitivas para os problemas e não há como mapear todas as possíveis alternativas.
- Cada problema tem características únicas. Não há referenciais completos para as soluções.
- É muito difícil testar soluções antes que sejam amplamente praticadas. Há, na realidade, uma sequência de aprendizados, que ocorre como resultante das soluções postas em prática.
- Cada problema pode ser considerado como um sintoma de um outro problema. No mínimo, está sempre conectado a outro problema e, portanto, as situações são multicausais e interconectadas.
- São situações que afetam múltiplos ‘stakeholders’, com agendas distintas e comumente conflitantes. Não há tolerância nem imunidade para as consequências das soluções implementadas. Sempre haverá pluralismo de visões e dilemas sobre o problema e, portanto, sempre haverá críticas.
- Não há um julgamento final sobre as soluções apontadas, como sendo corretas ou incorretas. São passíveis de interpretações, de acordo com diferentes grupos afetados.
- A temporalidade das consequências varia muito e estas são frequentemente ambíguas, contraditórias. O que pode ser ruim num momento pode vir a ser muito bom em outro. O curto prazo enfrenta como nunca as consequências no longo prazo.
- Não há como medir, de forma definitiva, os resultados das soluções encontradas. Com frequência, uma solução gera consequências que se desdobram e são difíceis de serem avaliadas.
O quadro parece ser desalentador. Suscita comportamentos negacionistas, simplificadores – “para todo problema complexo existe sempre uma solução simples, elegante e completamente errada” (H.L. Mencken) – ou descolados da realidade, enlouquecidos. A aceitação e o reconhecimento da complexidade é o caminho indicado, mas ainda pouco praticado.
A ciência oferece informações cruciais para a conscientização do desastre climático. Tecnologias energéticas foram apresentadas e inovações na produção agrícola surgiram. Quase 30 Conferências do Clima foram realizadas, com intermináveis negociações (e frustrações) sobre fundos financeiros e mecanismos de mercado. A humanidade sabe o que precisa ser feito para endereçar os desafios climáticos e a destruição irreparável dos recursos naturais, mas sempre surgem justificativas para não avançar em profundidade e escala. No entanto, estas não são consistentes.
O fato é que não há liderança – esta é a mais dolorosa constatação – nem no multilateralismo, nem nos governos, para implementar as necessárias mudanças institucionais. Neste quadro, o papel da sociedade civil tem sido de grande relevância na liderança geopolítica, a partir da constatação de que situações complexas não se solucionam, se governam (Vitor Freire).
Problemas indomáveis são altamente desafiadores das fronteiras do conhecimento. Uma cronologia simplista da história do conhecimento indica uma sequência de passagens de bastão, a partir dos filósofos gregos e da ciência oriental, para tentativas de explicação e predição de fenômenos reais do mundo por meio de exploração e experimentação no início da era cristã, para o controle do conhecimento pela igreja, as primeiras universidades no século XII e XIII (ainda sob o domínio da igreja), a revolução científica, Galileu, as universidades e academia. Muito especialmente, no campo do conhecimento relacionado ao meio ambiente, houve uma nova passagem de bastão, agora para as ONGs. É inquestionável que boa parte do conhecimento sobre meio ambiente e desafios sociais foram desenvolvidos e disseminados pela sociedade civil.
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Problemas indomáveis desafiam a racionalidade. Além de expor sua limitação (Herbert Simon), são altamente afetados por componentes emocionais. A vertente acadêmica que fundamenta a chamada abordagem de paisagem (Fernanda Rennó) contempla de forma poderosa o equilíbrio entre razão e emoção. Esse tipo de situação é pouco comum no campo empresarial e da gestão pública. Novamente, a sociedade civil organizada, mais permeável a inovações no campo da gestão, entra em cena.
Paisagens, diferentemente do que estamos acostumados a lembrar quando vemos um quadro ou uma foto, ou mesmo da maneira que grande parte da ciência ambiental assume, envolvem pessoas. Pessoas que as transformam, que nelas habitam. Pessoas que têm histórias de vida, sonhos, planos, desejos e diferentes compreensões do que pode se chamar de realidade factual. Pessoas que interpretam problemas de maneiras próprias, indomáveis. Pessoas que, nas suas expressões culturais, confirmam a elegante frase de Paul Klee: “A arte não reproduz o que vemos. Ela nos faz ver”.
A sociedade civil tem maior liberdade para lidar com a harmonização do conhecimento e emoção, razão e sensibilidade. Tem maior potencial para lidar com componentes culturais. Pode escapar mais facilmente dos limites das teorias de gestão empresariais e mergulhar sem medo na complexidade. Pode errar mais. Pode andar sem depender de medições, ousar muito mais e fugir de estereótipos gerenciais do mundo corporativo.
A filantropia é importante fornecedora de recursos financeiros para a geração e disseminação de conhecimentos sobre questões ambientais e sociais. A sociedade civil, na ausência de liderança global nos desafios ambientais, tem exercido esse papel, atuando como designer de soluções públicas e privadas, como mobilizadora de movimentos da sociedade, influenciando políticas públicas e consolidando instituições, moldando as regras do jogo civilizatório.
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