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Saneamento: investimento bate recorde após marco legal, mas universalização em 2033 deve atrasar

Passados quatro anos desde a adoção do novo arcabouço regulatório, participação da iniciativa privada e aportes no setor ganham tração, mas ritmo de investimento ainda é insuficiente para garantir cumprimento das metas previstas no dispositivo

Foto do author José Fucs
Atualização:

No folclore político nacional, há uma máxima segundo a qual “os políticos não gostam de investir em saneamento básico, porque as obras ficam embaixo da terra e ninguém vê”. O velho dito popular pode até ser uma explicação simplista para o quadro sinistro apresentado pelo País na área, mas traduz, em boa medida, o descaso histórico das autoridades com o problema.

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Embora quase todos os brasileiros disponham hoje de luz elétrica e telefone celular e cerca de 80% tenham acesso à internet, o saneamento ficou para trás, bem para trás. De acordo com dados oficiais, quase metade da população, o equivalente a 100 milhões de pessoas, não está ligada a rede de esgoto e 15% ou cerca de 30 milhões não têm acesso a rede de água. Do esgoto gerado no País, quase 50% também não passam por tratamento e boa parte chega aos rios e ao mar, poluindo as águas e comprometendo a fauna e a flora marítimas e fluviais.

Segundo o Banco Mundial, o Brasil ocupa apenas o 81º lugar na lista dos países com maior acesso da população a rede de esgoto, que engloba 135 nações com informações disponíveis, abaixo da Faixa de Gaza, da Índia, do Marrocos, da África do Sul e do Peru. No ranking dos países em que há mais acesso a rede de água, o Brasil aparece um pouco melhor, ocupando o 62º lugar, mas ainda fica atrás da Malásia, do Chile, de Porto Rico e do Turcomenistão.

Quase metade da população brasileira não está ligada à rede de esgoto Foto: Sergio Castro/Estadão

Diante deste quadro desolador, é até natural que muita gente desconfie das promessas recorrentes dos políticos de que, agora, vão resolver a questão. Mas, nos últimos anos, uma luz surgiu no fim do túnel, por mais inverossímil que isso possa parecer à primeira vista, renovando as expectativas de que o Brasil possa atender, enfim, o enorme contingente da população que não tem acesso a água e esgoto, num prazo relativamente curto. Ou, pelo menos, melhorar de forma significativa seus indicadores na área.

Desde a aprovação do novo marco legal do saneamento, em julho de 2020, que estabeleceu metas de universalização dos serviços até 2033 e estimulou a concorrência e a participação da iniciativa privada no setor, até então dominado por empresas públicas, uma transformação significativa vem ocorrendo na área.

Quatro anos depois da aprovação do novo marco, os investimentos na ampliação das redes de água e de coleta e tratamento de esgoto começam a ganhar tração. De acordo com um estudo divulgado pela Abcon, a associação que reúne as empresas privadas do setor, os investimentos chegaram a R$ 22,5 bilhões em 2022, um recorde histórico. E, no ano passado, conforme as estimativas da entidade, superaram a marca anterior, alcançando R$ 26,8 bilhões, 41% a mais do que em 2019.

“Passados apenas quatro anos desde a aprovação do novo marco, os números mostram um avanço considerável”, afirma a diretora executiva da Abcon, Christianne Dias Ferreira, que participou da elaboração da primeira MP (medida provisória) do dispositivo, ainda no governo Temer, e depois foi presidente da ANA (2018-2021), a agência reguladora federal que ficou encarregada de elaborar as normas de referência da área.

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O novo marco, que obrigou as empresas que já atuam no setor a comprovar capacidade econômica e financeira para cumprir as metas de universalização ― de 99% para a água e de 90% para coleta e tratamento de esgoto — e para poder continuar no jogo, também gerou uma movimentação inédita na gestão dos serviços e das companhias.

Diante do prazo exíguo para alcançar os resultados previstos, um número crescente de Estados e municípios vem privatizando as empresas públicas ― quase todas deficitárias, marcadas pela ineficiência e com um quadro de pessoal inchado por indicações políticas ― ou pelo menos repassando a operação do sistema à iniciativa privada. “O predomínio das companhias estatais não estava se refletindo numa boa prestação de serviço”, diz Christianne.

Governador de São Paulo, Tarcísio de Freitas, na cerimônia de toque da campainha, que concluiu o processo de privatização da Sabesp, na B3, em 23 de julho Foto: Rodilei Morais/PAGOS

A última a engrossar a lista foi a Sabesp, a ex-estatal paulista de saneamento e maior empresa do setor na América Latina, privatizada em julho, que talvez seja o exemplo mais emblemático da nova era que se anuncia para o saneamento no País. Ainda que fosse vista como uma referência entre as estatais da área, faltavam recursos à Sabesp, para acelerar os investimentos, e maior eficiência na gestão.

De acordo com a secretária de Meio Ambiente, Infraestrutura e Logística do Estado de São Paulo, Natália Resende, ex-consultora jurídica do Ministério da Infraestrutura, onde trabalhou com o governador Tarcísio de Freitas quando ele estava à frente do órgão, os investimentos da Sabesp deverão mais que dobrar nos próximos cinco anos com a privatização, passando de R$ 30 bilhões, que era a capacidade de investimento da companhia sob controle estatal, para R$ 69 bilhões.

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A Equatorial Participações e Investimentos, que passou a ser investidora de referência da Sabesp e a ocupar um assento no Conselho de Administração com a conclusão da oferta pública da empresa, também se comprometeu a entregar a universalização até 2029, quatro anos antes do prazo previsto pelo novo marco. Para chegar lá, terá de expandir a rede de tratamento de esgoto para mais 10 milhões de pessoas, a de coleta para 5 milhões e a rede de água para 2 milhões, inclusive em áreas rurais, sendo que, em muitos casos, a população não é atendida hoje em mais de um serviço.

Governança

“A Sabesp já era uma boa operadora, mas a gente precisava melhorar a gestão, a governança”, afirma Natália, que esteve à frente do processo de privatização da companhia. “Além disso, a empresa que está investindo vai entregar a universalização em menos da metade do prazo do que a Sabesp entregaria sob gestão do Estado, porque, se ela mantivesse o mesmo ritmo de investimento, precisaria de 10 a 12 anos para conseguir o mesmo resultado que a gente vai alcançar em cinco.”

Fora a Sabesp, outras estatais parrudas de saneamento foram privatizadas, como a Corsan, do Rio Grande do Sul, ou repassaram a prestação do serviço ao setor privado parcial ou plenamente, como Rio de Janeiro, Paraná, Ceará, Alagoas e Amapá, algumas vezes com a participação de investidores estrangeiros, por meio de fundos de investimento dos Estados Unidos, do Canadá, de Cingapura e de outros países. No dia 14 de agosto, deve ser finalizada a concessão do serviço no Piauí, dentro do princípio de regionalização da operação estimulada pelo novo marco, e até o fim do ano em Sergipe.

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“Se o leilão for bem-sucedido, como esperamos, nas condições colocadas no edital, que prevê um lance mínimo de R$ 1 bilhão e um investimento de R$ 10 bilhões até 2033, a Agespisa (empresa de saneamento do Piauí), que só dá prejuízo, tem uma capacidade de investimento limitada e possui uma folha de pagamento insustentável, certamente deve seguir para o processo de liquidação, porque ela já está quase inoperante”, diz o secretário de Administração do Estado, Samuel Nascimento.

“A operação será realizada por meio de uma rede que a gente criou em 2022, a Microrregião de Água e Esgoto do Piauí (MRAE), formada por todos os 224 municípios do Estado (exceto Teresina, cuja concessão foi feita em 2017), para estruturar e viabilizar o projeto de concessão total dos serviços de saneamento.”

Até agora, incluindo a Sabesp, já foram realizados 46 leilões de concessão e privatização dos serviços de saneamento desde julho de 2020, em 19 Estados, de acordo com a Abcon, e contratados cerca de R$ 140 bilhões em novos investimentos privados na área até 2033, sem contar os valores pagos como outorga aos controladores e os recursos obtidos com a venda de ações da ex-estatal paulista no mercado global, que somaram R$ 49,5 bilhões.

Há, ainda, conforme a Abcon, um novo ciclo de projetos sendo estruturados pelo BNDES (Banco Nacional de Desenvolvimento Econômico e Social) e por consultorias privadas. No total, são 43 projetos em estruturação, com potencial para render mais R$ 105 bilhões em novos investimentos e outorgas, segundo a entidade, incluindo as concessões do Piauí e de Sergipe.

‘Realismo esperançoso’

Com isso, o número de municípios atendidos pela iniciativa privada aumentou mais de três vezes desde a aprovação do novo marco, de 291 em 2019 (5% do total) para 1.247 (22,4% do total) em 2024, incluindo os 371 servidos pela Sabesp ― um aumento de 329%. Ao mesmo tempo, a população sob gestão privada passou de 31 milhões para 81,2 milhões, um crescimento de 162% no mesmo período. E, pelas projeções da Abcon, o setor privado deverá responder pelo atendimento de quase 50% dos brasileiros ou cerca de 100 milhões de pessoas até o fim de 2026, com a realização das concessões de Goiás, Pernambuco, Pará, Rondônia, Espírito Santo, Maranhão e Rio Grande do Norte.

“Homenageando o escritor Ariano Suassuna, eu diria que hoje, quatro anos depois da aprovação do novo marco, o sentimento é de um realismo esperançoso”, afirma o consultor Gesner Oliveira, da GO Associados, ex-presidente da Sabesp (2007-2011), que produziu outro estudo sobre as mudanças ocorridas na área desde 2020, em parceria com o Instituto Trata Brasil, uma ONG dedicada ao avanço dos serviços na área e à proteção dos recursos hídricos do País.

“Nos anos 1980, a gente tinha uma população sem saneamento, sem eletricidade e sem telefone. Hoje, grande parte da população continua sem saneamento, mas com eletricidade e telefone, que foram os segmentos que privatizaram e conseguiram oferecer o serviço para todos.”

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Na visão da economista Martha Seillier, ex-diretora do BID (Banco Interamericano de Desenvolvimento) e ex-secretária especial do PPI (Programa de Parcerias de Investimento) ― o órgão responsável pela operacionalização das privatizações e concessões do governo federal ― a grande mudança introduzida pelo novo marco foi o fim dos contratos sem concorrência fechados com os municípios pelas empresas estaduais de saneamento, os chamados “contratos de programa”.

“A legislação anterior fechava as portas para a entrada da iniciativa privada, porque facilitava a assinatura de contratos sem concorrência. Os prefeitos entregavam suas cidades para as empresas estaduais com base em contratos que não tinham regulação tarifária, não exigiam comprovação da capacidade de investimento e não tinham metas de atendimento à população. Era uma troca desequilibrada, porque muitas vezes o governador tinha ascendência sobre o prefeito, para dizer “assina aqui esse contrato com a minha estatal de saneamento”, diz.

“Agora, toda vez que um prefeito for assinar um novo contrato de saneamento, ele tem de abrir a disputa para o mercado. Se a estatal quiser participar, ela pode, mas junto com outros prestadores de serviço. E o que a gente viu acontecer depois da mudança? Contratos bilionários sendo fechados, todos vencidos por investidores privados. Nenhuma estatal venceu um leilão na área de saneamento, porque elas não têm capacidade de entrega.”

Por ora, ainda não houve um impacto relevante de tudo isso na ponta, ou seja, no número de consumidores com acesso aos serviços de saneamento. De acordo com Gesner Oliveira, há um “hiato temporal” entre a decisão de investimento e os reflexos na operação. Ele afirma que primeiro é preciso construir os sistemas, depois fazer a conexão da rede e só no fim do processo é que há a ativação das ligações com os consumidores. “Até todas as ligações serem conectadas à rede de água e esgoto realmente demora. Seria surrealista imaginar que a gente já pudesse ver, depois de quatro anos, um reflexo no atendimento à população.”

Segundo Luana Pretto, presidente executiva do Trata Brasil, isso acontece em qualquer projeto de infraestrutura de grande porte como os de saneamento. Pelos seus cálculos, serão necessários pelo menos mais três anos para os investimentos se refletirem de forma mais clara nos indicadores de acesso aos serviços. Considerando o tempo gasto na estruturação da operação, a realização da licitação e a obtenção de licenças ambientais para as obras, são necessários, em sua avaliação, cinco ou seis anos para os resultados começarem a aparecer. “O ciclo de vida de um projeto de engenharia de grande porte é muito longo”, diz.

Para a universalização do saneamento até 2033 se concretizar, porém, será preciso acelerar ainda mais o volume dos investimentos daqui para a frente, de acordo com analistas e profissionais que atuam no setor. No ritmo atual, há praticamente um consenso de que as metas de expansão das redes de água, coleta e tratamento de esgoto previstas no novo marco dificilmente serão atingidas. Mas, em relação ao tempo de atraso, as projeções diferem bastante.

O estudo da Abcon, que levou em conta o período de 2022 a 2033, calcula que, para a universalização ocorrer no prazo, é necessário realizar um investimento total de R$ 893 bilhões ou R$ 74,4 bilhões ao ano. Só que, apesar da alta significativa em relação a anos anteriores, o investimento médio em 2022 e 2023 ficou apenas em R$ 24,6 bilhões ao ano, conforme as estimativas da entidade, 67% abaixo do necessário. Isto significa que, ao passo atual, o País levaria 36 anos para alcançar a universalização, a contar de 2022, inclusive, e ela só aconteceria em 2057.

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Já o estudo da GO para o Instituto Trata Brasil prevê a necessidade de um investimento total de R$ 509 bilhões em 11 anos (2023-2033) ou R$ 46, 3 bilhões ao ano, mais do que o dobro que os R$ 20,9 bilhões, em média, registrados de 2018 a 2022, usados como parâmetro nos cálculos da consultoria. Neste caso, incluindo 2023 na conta, seriam necessários 24 anos para alcançar a universalização, que só seria concretizada em 2046.

O estudo da GO mostra também que, no ritmo atual, a universalização ocorrerá apenas em 2070, 37 anos depois do prazo previsto no novo marco, quando o cálculo é feito com base na taxa de crescimento da população atendida pelo sistema, também levando em conta o período de 2018 a 2022. E, se o cálculo considerar apenas a evolução da coleta de esgoto em 2021 e 2022, a projeção, de acordo com Luana, é de que a universalização do saneamento vai levar 170 anos para acontecer. “Ainda tem muita gente que precisa se movimentar, que não entendeu que fazendo a mesma coisa o resultado não vai ser diferente”, afirma.

De qualquer forma, independentemente de qual seja o atraso em relação ao cronograma previsto no novo marco regulatório e de quanto será preciso investir para alcançar a universalização, tudo indica que ela não acontecerá até 2033. Muitos executivos do setor já falam que será inevitável esticar o prazo até 2040 ― uma medida prevista na nova legislação, desde que haja o aval da agência reguladora ― para que a meta seja atendida em todo o País.

Retardatários

Há também muitos retardatários, que perderam tempo para deslanchar o processo, especialmente nas regiões Norte e Nordeste, justamente as que apresentam os piores índices de saneamento do País, que devem comprometer os resultados. Segundo Oliveira, da GO, ainda há 579 municípios em situação irregular, 80% dos quais de pequeno porte, com menos de 20 mil habitantes. São municípios que têm contratos precários com as operadoras ou assinaram contratos com empresas que ainda não comprovaram capacidade financeira para promover a universalização ou não incluíram as metas previstas no novo marco no documento.

“Quanto mais tempo passa, mais difícil fica alcançar as metas do novo marco, porque tem de captar recursos no menor prazo possível, em volume alto, e intensificar as obras nas cidades, com mais frentes de trabalho”, diz Neuri Freitas, presidente da Aesbe, a entidade que reúne as empresas estaduais de saneamento, e da Cagece, a companhia de água e esgoto do Ceará, que realizou uma concessão na área em 2023, para atendimento de 24 municípios nas regiões metropolitanas de Fortaleza e do Cariri, onde fica Juazeiro do Norte.

Em tese, os retardatários deveriam perder o direito de receber verbas federais e contrair empréstimos com bancos públicos. O presidente Luiz Inácio Lula da Silva, no entanto, flexibilizou a punição por meio de dois decretos editados em julho do ano passado, a partir de um acordo feito com o Congresso, após uma tentativa fracassada de revogar a essência do novo marco, que permitiria, entre outras coisas, a manutenção de contratos sem licitação com as estatais de saneamento pelos municípios.

“No governo passado, havia uma forte pressão do Ministério de Desenvolvimento Regional e da ANA para a coisa andar rápido. Neste governo, não. Ao contrário”, afirma Gesner Oliveira. “No início, o governo até quis mudar o novo marco por decreto, mas não conseguiu, porque a oposição não deixou, e acabou tendo de negociar um decreto mais brando.”

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No fim, as mudanças promovidas por Lula deram fôlego às estatais do setor, ao alongar os prazos para elas cumprirem as exigências previstas no novo marco do saneamento, dificultando o cumprimento da meta para universalização dos serviços em 2033. Mas a essência do dispositivo, que desde o princípio tem no ministro-chefe da Casa Civil e ex-governador da Bahia, Rui Costa, um de seus principais opositores, foi preservada.

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