O senador José Serra (PSDB-SP) diz que o novo governo do presidente eleito Luiz Inácio Lula da Silva está entrando em uma “arapuca” política com desdobramentos fiscais. “Demoraram semanas para protocolar um texto que será muito modificado e estão escolhendo caminhos que não resolvem o problema”, alerta.
Para Serra, Lula deve buscar os melhores na economia para compor seu time. “Ele precisa da estabilidade macroeconômica para mostrar que faz uma boa política econômica”, diz.
Na reta final do seu mandato, Serra apresentou uma Proposta de Emenda à Constituição (PEC) alternativa à protocolada pelo governo de transição para resolver o impasse orçamentário e a regra fiscal para as contas públicas. Serra diz que a Lei de Responsabilidade Fiscal (LRF) já apresenta um conjunto de regras e procedimentos que promovem transparência, controle do gasto e planejamento fiscal de médio prazo.
Na segunda-feira passada, o sr. protocolou uma PEC com solução de curto, médio e longo prazos para as contas públicas e que já conta com 32 assinaturas. É uma alternativa à PEC da Transição?
Apresentei uma PEC que assume responsabilidade fiscal, ambiental e social. Restabelece no País o arcabouço da LRF, permitindo uma gestão planejada e transparente, com regras e procedimentos adotados em países tidos como avançados em matéria de governança. Chamo de PEC da Reconstrução. Proponho a troca da âncora fiscal do país, substituindo o teto de gastos (regra que atrela o crescimento das despesas à inflação) pelo limite da dívida previsto no art. 52 da Constituição desde a constituinte. O Executivo teria que apresentar para o Senado uma proposta com os limites no prazo de seis meses.
Como funcionaria a regra?
Quando o Senado aprovar a proposta, dentro do processo legislativo formal, o teto fica revogado. Enquanto se discute os números, fica valendo o teto. Assim, a política fiscal não fica sem âncora. Há uma troca. Sai o teto, entra a LRF em sua forma completa, pois a lei nunca vigorou com os limites de endividamento previstos na Constituição. Nesse prazo de seis meses, o governo pode editar créditos extraordinários até um valor de R$ 100 bilhões, possibilitando manter o Auxílio Brasil em R$ 600, pagar um adicional de R$ 150 para famílias com crianças em idade inferior a seis anos e realizar outros gastos importantes.
O uso de crédito extraordinário, fora do teto de gastos, poderia ser feito?
O crédito extraordinário já é um instrumento para gastos emergenciais e imprevistos. Nem precisa de PEC para editá-los, mas incluímos na proposta para ampliar o espaço adicional no teto sem alterá-lo. Parte-se da ideia de que não se muda o que não funciona mais. Minha proposta também introduz na Constituição os princípios e as diretrizes para instituir no País as revisões periódicas do gasto público, conhecidas lá foram com “spending reviews”. Trouxe esse instrumento para agenda fiscal no País, como fiz com a Instituição Fiscal Independente. Nesse campo há mais de trinta anos, não tenho dúvidas de que padrões de governança valem mais do que regras fiscais. O grande macroeconomista Olivier Blanchard tem mostrado com clareza esse lado importante da governança na performance econômica de um País.
O teto de gastos não funciona mais?
Eu resumiria assim: o nosso teto de gastos está furado e o chão da sala está inundado. Minha proposta faz uma reforma para resolver o problema definitivamente, trocando a estrutura, deixando o espaço organizado e salubre. É uma reconstrução. Vejo propostas que não resolvem o problema, pois tentam tapar buracos no teto deixando a sala bagunçada. Outras propõem uma estrutura complexa que talvez piore o que temos hoje. No campo institucional, ninguém deveria levar a sério um cenário improvisado e bagunçado.
De que forma a sua PEC contribui para esse debate?
O texto que protocolei quebrou a inércia e foi importante para incentivar outras ações. Os senadores Tasso e Alessandro, a senadora Leila representando a proposta feita por mulheres especializadas no tema, também estão contribuindo para promover o bom debate. O Senado está qualificando a discussão.
O governo está numa armadilha política com a PEC da Transição?
O governo está encurralado. Cada ação para tapar um buraco no teto exige três quintos do Congresso, com votação dupla nas duas Casas. Os custos econômicos que envolvem essas alterações constitucionais são elevados, pois o Executivo consome recursos fiscais, tempo e energia nesse debate. O novo governo está entrando em uma arapuca política com desdobramentos fiscais. Nessa armadilha, a Constituição sai perdendo, pois o texto vai sofrendo alterações que comprometem a consistência da norma. Na minha época de Poder Executivo, o final do ano era marcado por decretos para desbloquear recursos. Hoje, emendas constitucionais funcionam como portaria de liberação de verbas, e o Congresso aproveita a situação para avançar ainda mais sobre o Orçamento. A discussão principal do País fica em torno do quanto e como furar o teto, quando deveríamos discutir o como melhorar os indicadores econômicos e sociais a partir da política fiscal.
Leia mais
O que fazer com a PEC da Transição para o curto prazo?
Demoraram semanas para protocolar um texto que será muito modificado e estão escolhendo caminhos que não resolvem o problema. Penso que essa deveria ser a última PEC para lidar com o teto de gastos para que o governo possa iniciar a gestão focado no que importa. A LRF já apresenta um conjunto de regras e procedimentos que promovem a transparência, controle do gasto, planejamento fiscal de médio prazo, tudo o que funciona bem em matéria de governança está na lei. Confiando nela, todos podem ficar tranquilos de que a gestão fiscal será planejada e transparente. Nesse sentido, acho que os senadores poderiam apostar na solução apresentada na minha PEC, que já teve apoio necessário para começar a tramitar. Deixaríamos um importante legado para o próximo governo e para os que entram no Congresso no próximo ano, em vez de um teto furado e um arcabouço despedaçado. Começariam a próxima sessão discutindo os limites da dívida, o plano de revisão periódica do gasto e quais ações governamentais mais importantes devem ser tomadas para recolocar o país na rota do desenvolvimento.
Lula pode fazer uma boa política econômica?
Lula venceu Bolsonaro unindo forças políticas que trazem uma bagagem na área da gestão fiscal e econômica. O vice-presidente Geraldo Alckmin conta com apoio de economistas e especialistas em diversas áreas que querem apresentar um modelo de gestão responsável do ponto de vista fiscal e racional em matéria de desenho de políticas públicas e de governança. O PT deve buscar os melhores na área econômica para compor com esse time. Se Lula souber coordenar uma boa equipe na área econômica, terá mais facilidade para tocar as demais agendas de governo. Ele precisa da estabilidade macroeconômica para mostrar que faz uma boa política econômica.
Onde Lula precisa mirar primeiro?
No fiscal. Se o Congresso aprovar minha PEC, o governo pode começar a discutir os objetivos fiscais de médio e longo prazo sem se preocupar com o novo arcabouço fiscal. Ela já está pronto, na LRF. Parte da equipe econômica pode começar a discutir com o Senado os limites de endividamento que devem ancorar a política fiscal, enquanto outra parte da equipe pode focar em uma reforma administrativa voltada para a institucionalização das revisões periódicas do gasto. De partida, podem mostrar que estão instituindo no País esse poderoso instrumento de gestão, o “spending review”, a partir do monitoramento de indicadores econômicos e sociais e da revisão de gastos para ampliar o espaço fiscal. A primeira rodada desse processo de revisão deve mirar a entrega de um relatório oficial do Executivo com a agenda legislativa prioritária, com números, projeções e metas que se quer atingir no curto, médio e no longo prazo. Esse plano deve compreender uma revisão de gastos na área de pessoal e da assistência social buscando otimizar recursos.
O que o futuro ministro da Fazenda precisa anunciar logo?
As metas fiscais de médio e longo prazo que vai perseguir ao longo dos próximos 4 anos. Como limites de endividamento definidos para sinalizar uma trajetória responsável das contas públicas, é possível planejar quais resultados fiscais devem ser buscados no curto prazo para atingir os objetivos fiscais de longo prazo. Esse panorama macrofiscal deve ser anunciado juntamente com a imediata estruturação de um primeiro plano de revisão de gastos, mostrando a agenda legislativa prioritária e como o governo pretende financiar os programas do orçamento.
Qual o papel do novo ministério do Planejamento que Lula pretende recriar?
A recriação do Ministério do Planejamento deve assumir um papel central no processo de revisão dos gastos, mobilizando toda a administração pública em torno de uma gestão voltada para a eficiência do gasto público. Esse processo envolve rediscutir o papel do BNDES na área de investimentos, criando-se uma governança específica para promover a infraestrutura no País. Também é preciso nessa área promover instituições de coordenação da política fiscal envolvendo estados e municípios, já que parte relevante das despesas e das receitas do setor público estão concentradas nos governos subnacionais. Nesse sentido, é preciso rediscutir o federalismo brasileiro, como vem defendendo há anos o professor Fernando Rezende.
A reforma tributária finalmente sai?
A reforma tributária sai se for boa para o federalismo brasileiro. O Brasil é uma federação com 27 estados e 5500 municípios. Cada nível com autonomia fiscal e responsabilidades. É um jogo de soma zero, dado que a reforma vai impor perdas e ganhos. Precisa ficar claro quem e quanto se perde e ganha com a reforma, com equalização fiscal para os grupos perdedores. O que não pode é achar que há uma solução fácil para um problema complexo. Simplesmente não passa. Mas pode ser uma reforma tributária menos federativa, mais voltada para tornar o modelo atual mais eficiente. Organizar a legislação para promover um regime tributário mais moderno e eficiente deveria caminhar ao lado de uma reforma mais ampla. Ou seja, o novo governo deve tocar uma agenda federativa ao lado de outra mais operacional e de curto prazo. A primeira, mais difícil de passar politicamente, envolve discussões federativas e equidade tributária. A segunda melhora a arrecadação ao reduzir litigância e complexidades do modelo atual. Temos bons estudos de tributaristas e de organismos internacionais mostrando uma agenda menos complicada do ponto de vista político e extremamente efetiva do ponto de vista arrecadatório.
Como avalia o debate atual entre desenvolvimentistas e fiscalistas? É uma reedição do seu tempo?
Sou tido como desenvolvimentista e fiscalista. Acredito na importância da qualidade do gasto, no controle das contas públicas e no papel do Estado como peça fundamental no desenvolvimento do País. O mercado e o Estado devem trabalhar em sintonia para melhorar o bem estar das pessoas. O BNDES é um instrumento poderoso de captação de recursos, alimentado pela melhor vinculação orçamentária do ponto de vista econômico: economias em receitas correntes canalizadas para investimentos públicos. Basicamente é um fundo permanente de recursos que em tempos positivos acumula para poder usar os recursos em crises econômicas. Tem capacidade técnica para funcionar como um instrumento de gestão especial para promover investimentos em infraestrutura em parceria com o mercado. Temos que ser pragmáticos, pondo a ciência econômica a serviço do País e das pessoas. Não há solução pronta, mas uma combinação de variáveis que otimizam as equações necessárias para desenvolver o País. A responsabilidade fiscal segue ao lado da responsabilidade social e ambiental. O desenvolvimento da infraestrutura é fundamental para o progresso do país, com mercado e governo atuando em sintonia.
Os comentários são exclusivos para assinantes do Estadão.