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Brasil é campeão em processos judiciais de passageiros contra companhias aéreas; veja os motivos

Judicialização no Brasil supera outros países, como EUA e México, e custa R$ 1 bilhão por ano às empresas; problemas nos serviços motivam altíssimo volume de ações, que inibe concorrência no setor

Foto do author Márcia De Chiara

O setor aéreo brasileiro vive uma situação paradoxal. Por um lado, há uma enorme queixa dos consumidores em relação aos serviços prestados pelas empresas. Atrasos, cancelamentos, voos lotados e dificuldades de conseguir reembolso são alguns dos problemas que levam as pessoas à Justiça contra as aéreas e transformaram o Brasil em um campeão mundial da judicialização. Por outro, o setor diz que esse excesso de processos prejudica a operação das empresas, encarece as passagens, reduz a malha aérea e afasta novos competidores - que poderiam forçar uma melhora nos serviços.

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De acordo com a Associação Internacional de Transportes Aéreos (IATA), com base em informações reportadas pelas empresas à Agência Nacional de Aviação Civil (Anac), o custo dos processos movidos por passageiros supera R$ 1 bilhão por ano. Apesar de o setor ter muitos problemas e o serviço deixar a desejar aos consumidores, os números brasileiros são bem acima da média mundial.

“Obviamente, isso é repassado para o preço do bilhete”, diz o diretor geral da IATA no Brasil, Dany Oliveira. Ele calcula que a despesa representa entre R$ 10 e R$ 12 do valor de cada bilhete vendido, levando em conta que cerca de 100 milhões de passageiros são transportados anualmente no País.

Brasil é campeão de processos contra companhias aéreas Foto: Fabio Motta/Estadão

Um levantamento feito pela Latam mostra que o Brasil, que representa quase metade da operação de todo o grupo, responde por mais de 98% dos processos judiciais movidos pelos clientes contra a companhia. A empresa atua no Brasil, Chile, Colômbia, Equador e Peru, e tem voos internacionais dentro da América Latina e para Europa, Oceania, Estados Unidos e o Caribe.

Em nota, a Latam diz que o dado “demonstra a magnitude deste fenômeno no Brasil”. “Apesar de ser reconhecida como a segunda empresa mais pontual do mundo em 2023, de acordo como o ranking da Official Airlines Guide (OAG), houve um incremento de quase 33% no número de ações judiciais no Brasil de 2022 para 2023.” Para 2024, a empresa prevê um gasto de mais de R$ 350 milhões apenas com custos da judicialização no País.

“O dado da Latam é compatível com o mercado e o problema pode ser ainda maior”, afirma Ricardo Bernardi, especialista em Direito Aeronáutico do escritório Bernardi&Schnapp e consultor jurídico da IATA no Brasil.

Ele pondera que não há números gerais sobre a judicialização. No entanto, um levantamento feito pelo consultor da IATA reforça que o Brasil ocupa o pódio dos países com maior número de processos movidos por clientes contra companhias aéreas.

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Nos Estados Unidos, por exemplo, em 2019 uma ação foi movida para cada 1,2 milhão de passageiros transportados. No mesmo período, a proporção no Brasil foi muito maior: de uma ação para cada 227 passageiros. O levantamento considerou dados de três principais companhias aéreas que operam entre Brasil e Estados Unidos.

Essa discrepância se repete quando se compara o mercado brasileiro com outros países da América Latina. Considerando empresas que atuam no País e no México, por exemplo, em 2019, uma ação foi movida a cada 522 passageiros transportados no Brasil. Já no México essa relação foi de uma ação para quase 27 mil passageiros.

Impactos

Além da pressão nas tarifas, a judicialização excessiva cria uma barreira à entrada de novas empresas interessadas em voar no País. Elas veem nesse grande volume de processos um risco à operação.

Jurema Monteiro, presidente da Abear, diz que 'site abutres' turbinam o número de processos Foto: Erivelton Viana

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O diretor da IATA lembra que, em entrevistas recentes, executivos de duas companhias de baixo custo, a JetSmart, baseada no Chile, e a Flybondi, na Argentina, relataram a grande preocupação dos custos de ação judicial no Brasil. “Não apenas pelo custo, que já é muito alto, mas porque traz muita insegurança jurídica para o negócio, postergando o enorme potencial (de mercado) a ser destravado”, diz Oliveira.

Esse grande volume de processos também complica a vida das companhias já estabelecidas no País. A Gol, por exemplo, que entrou com pedido de recuperação judicial nos Estados Unidos em janeiro deste ano, reduziu em julho do ano passado em 48% a oferta de assentos no Estado de Rondônia em relação a maio de 2023.

Além disso, a empresa cancelou voos de Porto Velho (RO) para Manaus (AM). O fator decisivo para esse corte na malha aérea foi a judicialização enfrentada em Rondônia, informa a companhia, em nota.

A Azul diz, por meio de nota, que “a judicialização é um problema crítico do Brasil, e os excessos trazem consequências importantes para o setor aéreo. Os impactos vão desde o aumento dos custos e das passagens aéreas, a redução da oferta de voos e podem chegar até a inviabilidade econômica das empresas”.

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Por que o País está no topo do ranking da judicialização?

Apesar de o cidadão comum perceber perda gradativa de qualidade dos serviços prestados pelas companhias e aumentos das tarifas – dois pontos refutados veementemente pelas empresas aéreas –, a verdadeira causa do avanço da judicialização, segundo Bernardi, “é uma interpretação inadequada dos tribunais sobre o cabimento do dano moral presumido nas hipóteses de atraso de cancelamento de voo, ou mesmo de problemas com bagagem”.

Existe uma legislação específica do setor que exige a comprovação do dano moral. Inclusive, segundo o consultor, há posições do STJ em ações envolvendo transporte aéreo, relatando que, em caso de atraso, por exemplo, o passageiro precisa comprovar o motivo pelo qual é alegado o dano moral.

No entanto, esses princípios, de acordo com Bernardi, nunca foram aplicados no Brasil. Começou-se a seguir as normas do Código de Defesa do Consumidor (CDC) de forma extremamente ampla e inadequada no transporte aéreo. É que muitas vezes voos são atrasados ou cancelados por questões meteorológicas, de segurança e, mesmo assim, aplica-se o dano moral nas ações.

A presidente da Associação Brasileira das Empresas Aéreas (Abear), Jurema Monteiro, também atribui o excesso de judicialização no setor aéreo à interpretação da Justiça de dano moral sem a comprovação. Neste caso, os valores aumentam muito. A indenização de um bilhete de R$ 200, R$ 300 pode chegar a R$ 20 mil em caso de dano moral. E isso onera todo o setor, observa.

“Nossas empresas são muito competitivas e prestam um bom serviço”, ressalta a executiva, citando dados de rankings internacionais. A regularidade de voos no Brasil, por exemplo, é de 98%, indicador semelhante ao dos Estados Unidos e da Europa, diz. Quanto à pontualidade, no Brasil é de 82%, à frente dos EUA (74%) e da Europa (80%).

Apesar de outros países terem indicadores piores em relação ao Brasil, o volume de processos é menor porque o ambiente regulatório dificulta um pouco esse tipo de ação, argumenta.

‘Sites abutres’

Tanto a presidente da Abear como o diretor geral da IATA no Brasil apontam empresas que fomentam o litígio, que eles denominam como “sites abutres”, como outro fator que ajuda a turbinar o volume de ações contra as companhias aéreas.

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Esses sites, segundo os executivos, abordam passageiros que tiveram problemas e oferecem os serviços de litigância. Jurema conta que há escritórios de advocacia que ficam dentro dos aeroportos monitorando voos com atraso para identificar passageiros que tiveram algum prejuízo e estimular que eles acionem a Justiça, antes mesmo de procurar a companhia aérea para obter uma solução administrativa.

Segundo o diretor de relações externas da IATA, Marcelo Pedroso, alguns sites compram os direitos creditórios. Outros obtêm procuração do passageiro, entram na Justiça e cobram um porcentual sobre o valor da causa ganha.

Pedroso diz que chegaram a ser identificados 65 sites atuando desta forma e a Ordem dos Advogados do Brasil (OAB) conseguiu bloquear 40, sob a alegação de que o advogado não pode fomentar a litigância em benefício próprio.

Luciano Barreto, diretor geral da empresa AirHelp, plataforma líder mundial em diretos de passageiros aéreos, porém, contesta essas acusações. “As companhias aéreas têm o hábito de dizer que empresas como a AirHelp fazem essa judicialização predatória, mas isso não é verdade”, diz. Ele conta que na totalidade dos casos que a empresa tenta resolver diretamente, sem intervenção da Justiça, as companhias aéreas no Brasil preferem postergar o processo e não abrem um canal direto de negociação. “As empresas (aéreas) são as grandes incentivadoras desse grande número de processos”, afirma o executivo.

O trabalho da startup, que não revela faturamento, número de clientes atendidos nem a posição do Brasil entre os demais países onde atua, é identificar os direitos dos passageiros que tiveram algum problema e encaminhá-los para escritórios de advocacia parceiros, diz Barreto. “A AirHelp atua para tentar ser esse facilitador”, diz. Inicialmente é feita uma triagem para verificar se cabe um pedido de indenização. Barreto conta que a empresa rejeita mais de 80% dos casos. Mesmo assim, antes de iniciar o processo judicial é tentada uma negociação direta com a companhia aérea. Fundada em 2013 na Dinamarca, a AirHelp está presente em 35 países e atua desde 2021 no Brasil.

Reclamações

A presidente da Abear, por sua vez, diz que o setor aéreo foi o primeiro a assinar com a Secretaria Nacional do Consumidor (Senacon), do Ministério da Justiça, um compromisso para usar a plataforma do consumidor.gov.br como instrumento de mediação. E os índices obtidos têm sido muito bons, destaca a executiva.

De 2022 para 2023, houve uma redução de 30% no número de queixas registrada na plataforma e um aumento de 10% no índice de resolução de problemas. E a nota dada pelos usuários que registraram alguma reclamação sobre o setor foi de 3,82, a melhor desde o início da série histórica da plataforma consumidor.gov.br, no primeiro trimestre de 2017. A nota varia entre 1 e 5.

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Dados da Fundação Procon de São Paulo mostram que no primeiro trimestre deste ano foram registradas 2.134 queixas contra o setor aéreo, um volume quase 4% menor em relação a igual período do ano passado e um quarto do que foi no primeiro trimestre de 2022.

Apesar da queda, os dados da plataforma consumidor.gov.br mostram que desde 2022 o setor aéreo é o segundo mais reclamado, atrás apenas de cartões de crédito. Em 2020, ele ocupava a quinta posição no ranking dos assuntos mais reclamados e, no ano seguinte, subiu para o terceiro lugar.

A presidente da Abear ressalta que o setor nunca se colocou contrário ao direito do passageiro de acessar a Justiça e a própria companhia, caso o contrato não seja cumprido. “Isso é um direito que tem de ser mantido.” Mas ela frisa que é preciso melhorar o ambiente regulatório para reduzir o custo da judicialização.

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