A primeira vez que Sheila Makeda tentou abrir uma conta pessoa jurídica num banco tradicional, não conseguiu. Também teve de bater na porta de muitas fábricas de cosméticos, até encontrar uma gerente comercial negra, que deu asas à sua ideia de criar produtos voltados a cabelos afro, 12 anos atrás.
Perdeu ainda as contas dos olhares de incredulidade e desdém quando diz que é dona de uma marca vendida em 60 unidades do Carrefour, na loja conceito Casa Belong Be, na Oscar Freire, além do Mundo Social do Magalu. “Eu e minha irmã participamos de muitas feiras em que íamos em estandes e não éramos nem atendidas”, diz Sheila, dono da Makeda Cosméticos. “Passamos por coisas inacreditáveis.”
Sheila Makeda e a irmã Shirley Leela encaixam-se no perfil médio do empreendedor negro latino-americano, mostrado na primeira pesquisa já feita na região. São mulheres jovens, que levaram adiante o negócio por sobrevivência e com perspectivas limitadas de crescimento. A maior parte desses empreendimentos também têm ganhos baixos, porém essenciais à subsistência.
Patrocinado pelo Banco de Desenvolvimento da América Latina (CAF), organizado pelo Instituto Feira Preta e executado pela agência de pesquisas Plano CDE, o levantamento ouviu quase 3 mil afroempreendedores na Argentina, Brasil, Colômbia, Peru e Panamá, os países com maior população negra da região.
Há descobertas intuitivas, como a precariedade de uma realidade feminina e de uma população mais carente. Já entre as menos óbvias está o fato de que a barreira financeira e a dificuldade de se relacionar com o ambiente bancário é um dos principais entraves ao crescimento dos negócios dos empresários negros.
“Essa pesquisa está alinhada com outro levantamento feito poucos anos antes, que buscava entender quanto tempo era necessário para a geração presente superar os padrões anteriores, em termos de educação e mobilidade econômica e social”, afirma Eddi Bermúdez Marcelín, executivo sênior do CAF. “A população étnica, rural e feminina da América Latina sofre mais com essa estagnação social e partimos para parcerias que nos ajudassem a trazer conhecimento e financiamento, para embasar políticas públicas e privadas e transformar essa realidade.”
Foi assim que surgiu a nova pesquisa, levada adiante com o Feira Preta e a Plano CDE, conforme antecipado pela Coluna do Broadcast. Também as novas frentes de atuação do banco de fomento, que já estão sendo trabalhadas.
No caso do setor financeiro, por exemplo, o levantamento que acaba de ser feito mostrou que os empreendedores negros enfrentam burocracia, sofrem com a falta de histórico bancário e com discriminação. “Cerca de 20% da carteira do CAF está no setor financeiro privado e estamos elaborando iniciativas que permitam evoluir e mudar essa realidade”, diz ele.
Com dificuldade em ter acesso aos empréstimos voltados especificamente às empresas, 64% dos empreendedores negros latino-americanos usam a mesma conta bancária para sua vida pessoal e o próprio negócio. As modalidades de crédito que conseguem para fluxo de caixa e investimentos são, portanto, mais caras.
Os brasileiros, por exemplo, preferem aumentar o limite do cartão de crédito para atender às necessidades de seus empreendimentos. Os argentinos optam por empréstimos com agentes não bancários. Já os empreendedores de Colômbia, Peru e Panamá recorrem mais a empréstimos com amigos e familiares ou ao microcrédito produtivo.
“É uma oportunidade para o sistema financeiro criar soluções de crédito para o empreendedor negro”, diz Adriana Barbosa, diretora-executiva do Instituto Feira Preta. “É um mercado grande, que não é atendido e hoje usa o crédito mais caro possível por falta de acesso.”
Empreendedor teve financiamento negado 9 vezes
Apesar da falta de alternativas, 74% dos empreendedores latino-americanos já pediram empréstimos. No Brasil e na Colômbia, metade já teve os pedidos negados por terem outras dívidas.
Maurício Delfino, dono da empresa Da Minha Cor, que tem várias frentes de atuação, tentou nada menos do que nove vezes ter acesso a uma linha de crédito do Desenvolve SP. “Levei nove nãos: corrigia o problema e voltava a tentar novamente”, diz Delfino. “Hoje, brinco que, para eu aceitar um não, tem de ser por pelo menos 11 vezes.”
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Delfino, porém, tem um perfil diferente da maioria dos pesquisados. Com um negócio bem estruturado e engajado racialmente, ele faz parte dos 24% dos empresários negros com essas características. A maioria (56%) tem empresas bem menos estruturadas e com pouco engajamento racial. Outros 20% empreendem por vocação, “liderado por jovens negros que saíram, sobretudo, no sistema de cotas nas universidades”, segundo Adriana.
Esse empreendedorismo por necessidade faz com que a maioria dos afroempreendedores não se identifique como empresários. Argentinos e panamenhos são os que mais se identificam como empreendedores. No Brasil, a expressão mais usada é “autônomo”.
É um reflexo de uma autoestima menor. Apesar de confiarem em sua capacidade empreendedora e na tomada de risco, a crença na capacidade de criar e fortalecer redes de parceiros para tocar o negócio é pequena. No Brasil, menos de 40% têm essa perspectiva. No Panamá, apenas 26%.
Essa realidade não depende da escolaridade. No Brasil e na Argentina, a maioria dos empreendedores negros têm nível secundário. Nos demais países, a maioria tem ensino superior.
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