São Paulo - Os estragos na produção agrícola provocados pela maior seca na Argentina em seis décadas fizeram com que a soja se tornasse, de forma inédita, o principal produto fornecido pelo Brasil ao país vizinho. A diferença em relação aos automóveis, normalmente o produto mais exportado ao parceiro do Mercosul, passa de US$ 430 milhões nos embarques desde o início do ano.
A liderança da soja, que respondeu por 15% de tudo o que os argentinos importaram do Brasil entre janeiro e agosto, chama a atenção por o produto ter historicamente peso inexpressivo no comércio bilateral. Na série estatística da Secretaria de Comércio Exterior (Secex), iniciada em 1997, a soja jamais tinha passado antes de 2% das exportações brasileiras para a Argentina - no máximo, chegou a atingir 1,6% em 2018.
Para as montadoras de veículos, deu-se um movimento inverso: de uma participação que até cinco anos atrás estava em 34% - ou seja, um terço das exportações brasileiras para a Argentina -, a parcela caiu para menos de 12%.
Essa “dança das cadeiras” na balança comercial tem relação com as escolhas que a Argentina precisa fazer na gestão de sua crônica escassez de dólares. Enquanto correu para assegurar o fornecimento de soja às fábricas que processam a oleaginosa, e trazem dólares via exportações de óleo e farelo de soja, a Argentina continuou liberando a conta-gotas as licenças de importação de bens de consumo, como os automóveis, que, sem controle, representariam perda de divisas.
Segundo o consultor Matheus Pereira, da Pátria AgroNegócios, a quebra de safra força a Argentina a importar algo em torno de 10 milhões de toneladas de soja do Brasil. Porém, por falta de dólares, o volume comprado até agora - 4,5 milhões de toneladas - não chega à metade do total necessário. “O Brasil, como teve uma safra abundante neste ano, acaba sendo um grande fornecedor da Argentina. Só que a demanda observada não tem sido tão alta como se estimava por falta de recursos”, comenta Pereira.
Diretor-geral da Anec, associação que reúne exportadores de grãos e cereais, Sergio Mendes observa que os grupos com sistemas de produção nos dois países, no arranjo de integração produtiva, priorizaram o abastecimento na Argentina a fim de evitar paradas nas fábricas que fazem o esmagamento de soja, processo de onde é extraído tanto o óleo de soja quanto o farelo, um insumo da ração animal. São dois dos principais produtos exportados pelo país ao resto do mundo.
“Caso faltasse soja, a Argentina teria um problema sério tanto de receita [de exportações] quanto de paradas das fábricas de processamento. As maiores e mais modernas fábricas de farelo de soja estão na Argentina”, pontua Mendes.
Troca por carro nacional
Se a quebra de safra levou a Argentina a abrir suas portas ao fornecimento internacional de soja, no caso dos automóveis, a entrada no país segue sendo regulada por licenças de importações, cujos frequentes atrasos, muitas vezes superiores a dois meses, são a forma de controlar a saída de dólares.
Cinco anos atrás, mais de 60% dos carros de passeio vendidos na Argentina vinham do Brasil, porém essa participação foi se reduzindo rapidamente até chegar a 33% neste ano, conforme levantamento da consultoria Jato Dynamics. Na direção contrária, os carros produzidos no próprio país subiram, no mesmo período, de 15% para 56% do total vendido.
Juntas, as restrições na oferta de automóveis importados e a desvalorização do peso, que tornou mais caro trazer veículos de fora, levaram a uma nacionalização do consumo, agravando a queda das exportações brasileiras, que já aconteceria pela sucessão de crises na Argentina.
Diante das dificuldades do país vizinho, as montadoras instaladas no Brasil, com base em números do ano passado, exportam 37% a menos do que em 2017, quando a Argentina ainda recebia sete em cada dez veículos embarcados pelo setor. A queda só não foi maior por conta da Colômbia e do Chile, destinos agora relevantes para os veículos produzidos no Brasil, e do aumento das entregas ao México, que se tornou neste ano o maior comprador de veículos brasileiros no exterior.
Nova barreira
A compra emergencial de soja permitiu ao Brasil recuperar, ao menos por enquanto, a posição, perdida nos últimos dois anos para a China, de principal origem das importações argentinas. Conforme os números registrados entre janeiro e julho pelo Indec, instituto de estatísticas do governo argentino, os argentinos compraram do Brasil US$ 3,2 bilhões a mais do que da China, um grande fornecedor de bens de capital ao país.
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Porém, com as chuvas trazidas pelo El Niño, a Argentina espera que a safra atual, a ser colhida até 2024, seja a maior em cinco anos, de modo que o país não precisará mais importar soja nos volumes atuais. O fim das importações de soja deixará um espaço que dificilmente será ocupado por outros produtos, já que os obstáculos para entrar na Argentina só aumentam.
A barreira mais recente é um imposto, aplicado desde julho, sobre as compras de dólares para pagamento de importações. As alíquotas variam de 7,5%, nas compras de divisas para importação de produtos - com algumas exceções, como combustíveis e insumos da cesta básica de alimentos -, a 25%, nos pagamentos de serviços fornecidos por estrangeiros.
Ainda que o governo daqui venha pedindo para a Argentina deixar os produtos brasileiros de fora do novo tributo, é remota a chance de um acordo prosperar nos últimos três meses de governo do peronista Alberto Fernández.
“Daqui três meses, a Argentina vai ter um novo governo. Então, hoje a relevância das negociações é limitada. O horizonte dos efeitos de qualquer acerto entre os governos não vai além do dia 10 de dezembro”, comenta Federico Servideo, presidente da Câmara de Comércio Argentino-Brasileira (Camarbra), citando a data de posse do sucessor de Fernández.
Para Constanza Negri, gerente do departamento de comércio e integração internacional da Confederação Nacional da Indústria (CNI), Brasil e Argentina estão se tornando mutuamente menos relevantes como parceiros comerciais. Em nota técnica sobre as relações bilaterais, a CNI chama a atenção para o declínio da participação brasileira nas importações argentinas: de 25,7%, em 2013, para 19,5% no ano passado, enquanto a parcela chinesa subiu de 15% para 21,3% nesse período.
“Os números preocupam por ser uma pauta concentrada em bens de alto valor agregado”, afirma Constanza. A avaliação dela é a de que o acordo recente que prevê US$ 600 milhões em financiamento do Banco do Brasil (BB) às exportações para a Argentina representa uma solução apenas paliativa, porém necessária para revitalizar o fluxo comercial. “O mais importante é que a medida venha rápido.”
Uma consulta feita em abril pela CNI com 252 empresas mostrou que, a cada dez fabricantes que vendem para a Argentina, sete enfrentam alguma dificuldade com o sistema de importação implementado em outubro pelo país.
A promessa da nova plataforma era dar maior fluidez às operações e previsibilidade nos prazos de pagamentos a partir da unificação dos processos de licenças de importação. Porém, o novo sistema alcançou mais exportadores. O número de mercadorias sem licença automática para entrar na Argentina, que antes da pandemia era de 1,5 mil, subiu para 4,2 mil produtos, ou 59% do total exportado pelo Brasil ao país.
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