Episódios de assédio sexual no trabalho representam um desafio para a gestão de uma empresa. Como agir quando um funcionário faz uma denúncia? A resposta depende de dois fatores: a cultura ética da organização e a gravidade do caso. Esses elementos determinam não apenas se os líderes encaminharão a denúncia ao setor responsável, como também se vão oferecer suporte às vítimas. É o que revela uma pesquisa desenvolvida pelo Talenses Group, o Insper e a consultoria Think Eva, obtida com exclusividade pelo Estadão.
O estudo entrevistou 283 líderes de diversos setores no Brasil em maio de 2024.
Uma das descobertas da pesquisa foi o nível de gravidade avaliado pelas lideranças. Os resultados mostraram que a gravidade de casos de assédio sexual tem impacto direto na decisão dos líderes a encaminhar as denúncias.
O clima organizacional ético foi o segundo fator analisado. O conceito diz respeito à percepção dos trabalhadores sobre o que é permitido, proibido ou exigido em termos de conduta moral dentro da empresa. Isso inclui a existência de políticas e práticas éticas, confiança e o compromisso das lideranças e equipes com os valores organizacionais.
A falta de apoio gerencial é um dos principais fatores que perpetuam o ciclo do assédio sexual no trabalho, aponta o documento da pesquisa.
No Brasil, o Ministério Público do Trabalho define assédio sexual como “condutas de natureza sexual, manifestadas fisicamente, por palavras, gestos ou outros meios, propostas ou impostas contra a vontade da pessoa, causando-lhe constrangimento e violando sua liberdade sexual”. O ato não precisa se repetir para ser caracterizado como assédio.
Gravidade do caso e clima ético
As denúncias envolvendo contato físico não consentido, solicitações de favores sexuais e ameaças ou chantagens para obter promoções ou manter o emprego foram vistas como mais graves e, consequentemente, mais propensas a serem encaminhadas pelas lideranças.
Por outro lado, os casos percebidos como menos graves, como insinuações veladas ou comentários inadequados, enfrentaram menor intenção de encaminhamento para o setor responsável pela denúncia (RH, compliance, etc).

O estudo confirmou que quanto mais forte a percepção de um clima organizacional ético, maior a tendência de líderes apoiarem e darem continuidade a denúncias de assédio sexual.
A conscientização e o letramento são fundamentais. Lideranças, funcionários, alta gestão e o RH precisam estar capacitados, pois muitas áreas ainda enfrentam dificuldades em saber como agir diante de um caso de assédio.
Maíra Liguori, co-fundadora da Think Eva
Carla Fava, diretora do Instituto Talenses Group, destaca a importância do design organizacional para entender como os processos são estruturados na empresa. Por exemplo, verificar se os canais de denúncia funcionam, se os líderes de fato encaminham os casos e se há um ambiente de confiança.
“Comportamento ético não é apenas ter processos, é preciso demonstrar que eles funcionam. As pessoas devem confiar neles sem precisar testá-los”, avalia Fava.
A educação contínua nas escolas também é uma alternativa, sugere Mari Stela Ribeiro, conselheira executiva de RH. Ela alerta que, caso uma mulher não tenha sucesso ao denunciar na empresa, pode encaminhar o caso ao Ministério Público.
A pesquisa categorizou o assédio sexual em três níveis:
- Hostilidade sexual: comentários ou comportamentos explícitos de cunho sexual.
- Atenção sexual indesejada: investidas ofensivas e sem consentimento.
- Coerção sexual: solicitação de favores sexuais em troca de benefícios profissionais ou para evitar prejuízos na carreira.
Os 283 participantes analisaram dez cenários hipotéticos, em que deveriam se colocar no papel de um líder que recebeu denúncia de uma subordinada (uma mulher) contra outro gestor (um homem) no mesmo nível hierárquico do líder, mas de outra área.
Tempo de casa, gênero e hierarquia parecem não fazer diferença
Embora o clima ético e a gravidade do caso influenciem a decisão dos gestores, fatores como gênero, tempo de casa e posição hierárquica não afetam a escolha da liderança ao encaminhar uma denúncia, concluiu a pesquisa.
O medo da rejeição pode influenciar mulheres líderes a encaminharem denúncia, avalia Tatiana Iwai, professora no Insper e uma das autoras do estudo. “Sabemos que muitas mulheres se sentem menos legitimadas e ocupam posições mais frágeis. Quando elas apontam um problema, são mais questionadas.”
Uma hipótese levantada pelos pesquisadores é de que: à medida que um líder ganha tempo de casa e sobe na hierarquia, maior a tendência a proteger a reputação da empresa.
Quanto mais tempo você está na organização e quanto mais poder tem, eventualmente pode criar maior identidade com a organização.
Tatiana Iwai, professora no Insper e uma das autoras do estudo
Outra possibilidade é de que profissionais mais experientes tenham um entendimento mais amplo das dinâmicas organizacionais e avaliem melhor os riscos antes de tomar uma decisão.
“Os profissionais com mais tempo de casa enxergam as engrenagens organizacionais com mais clareza. No fundo você consegue fazer um diagnóstico mais preciso de onde está. Ele olha para o ambiente e fala: “faz sentido eu fazer isso ou não faz?”, acrescenta Iwai.
De acordo com a pesquisadora, o ambiente organizacional, as normas e a cultura são determinantes para a condução de casos de assédio sexual.
A lógica também se aplica às denúncias: “quando tratamos o ato de denunciar como heroico, isso sinaliza um ambiente de risco. O ideal não é depender de indivíduos corajosos, mas criar um contexto em que qualquer pessoa se sinta segura para reportar problemas.”
Como as empresas podem agir?
Para criar um ambiente de trabalho seguro e estimular a denúncia de assédio sexual, as empresas podem adotar algumas medidas práticas. No caso das lideranças, recomenda-se uma revisão constante da própria conduta.
É necessário que os líderes conheçam os canais de denúncia e os procedimentos da empresa. Eles devem saber como agir: devo separar as pessoas envolvidas? Conceder licença à vítima para que possa se recuperar? Todas decisões devem estar alinhadas com os protocolos organizacionais.
Maíra Liguori, co-fundadora da Think Eva
Veja lista de práticas sugeridas no estudo:
- Mapear a cultura organizacional: realizar estudos específicos para identificar áreas mais vulneráveis, nível de conhecimento dos colaboradores sobre o tema e a gravidade de casos não registrados.
- Criar canais de denúncia seguros: implementar um canal externo e confidencial, sem rastreamento de IPs ou e-mails, permitir denúncias anônimas e garantir a proteção da vítima.
- Acolher as vítimas: oferecer suporte psicológico e um atendimento livre de julgamentos, além de garantir a separação imediata entre denunciante e denunciado até a apuração dos fatos.
- Criar protocolos claros de apuração: garantir processos rápidos e rigorosos, com critérios de confidencialidade e instâncias externas para analisar casos envolvendo lideranças.
- Manter a vítima informada: assegurar que a denunciante receba atualizações constantes sobre o andamento da investigação.
- Punir exemplarmente: definir parâmetros claros para sanções, incluindo demissão por justa causa em casos graves.
- Capacitar lideranças: treinar gestores para lidarem adequadamente com denúncias e respaldo organizacional.
- Promover educação contínua: realizar campanhas de conscientização e comunicação constante sobre assédio, incentivar denúncias e reforçar os valores organizacionais.
O pesquisador Maicon Angelo, um dos autores do estudo, destacou que houve resistência durante a fase de coleta dos dados. Muitos respondentes alegaram que não podiam responder a pesquisa porque nunca haviam sofrido assédio. Segundo o pesquisador, o problema é um reflexo da ausência de referência no tema.
“A falta de literatura de pesquisa sobre o tema foi algo que nos assustou. Por isso, precisamos trazer mais vozes para esse tipo de pesquisa, não somente dentro das universidades, mas também do mercado de trabalho”, resume.