A analista de RH Samara Braga, 32, divulgou em suas redes sociais um episódio discriminatório que sofreu durante uma seleção para entrevista de emprego no começo deste mês. Na ocasião, o recrutador atrasou mais de três horas, respondeu de forma debochada em relação à demora e ainda enviou mensagens em tom ofensivo ao mencionar a maternidade da profissional. Em entrevista ao Estadão, ela disse que tem medo de processar a empresa.
“Sempre difícil contratar quem tem filhos mesmo”, escreveu o recrutador durante conversa em um aplicativo de mensagens.
A entrevista estava marcada para as 8h. Às 7h51, Samara envia uma mensagem solicitando o link da chamada. Somente três horas depois o recrutador responde: “Bom dia. Podemos começar?”. Em seguida, a analista de RH sinaliza o atraso e pergunta a possibilidade de adiar a conversa para o final do dia.
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O responsável pela contratação argumenta que não consegue por ter “muitos compromissos”. A profissional diz que entende e afirma ter demandas também. É neste momento que o recrutador começa a debochar da candidata. “Posso imaginar a rotina de tantos compromissos de um desempregado”, escreve.
A analista de RH reage. “Não é porque estou desempregada que tenho que estar disponível o dia todo. Neste momento, estou organizando para levar meu filho para escola e também estou fazendo um pudim que me encomendam.” Samara foi bloqueada pelo recrutador logo após enviar a última mensagem. Confira o diálogo:
A publicação da profissional no LinkedIn, divulgada no início deste mês com a troca de conversas na íntegra, já acumula mais de 28 mil curtidas e outros 4 mil comentários até o momento da publicação deste texto.
A grande maioria das interações são de apoio a Samara e de repúdio ao comportamento do responsável pela contratação na entrevista de emprego.
Seleções pouco estruturadas e reflexo do machismo
“Temos percebido áreas de recrutamento e seleção enxutas e muito pouco estruturadas. Falta metodologia, faltam processos, falta inteligência e falta muita tecnologia”, afirma Marcello Amaro, CHRO (diretor de RH) do Portão 3, plataforma de gerenciamento de despesas corporativas.
Segundo o especialista, o cenário econômico pós-pandemia trouxe mais sobrecarga para os funcionários que ficaram nos setores responsáveis por contratação. “Muitos recrutadores ingressaram no mercado e sem vivenciar o modelo passado, onde o cuidado na relação com os candidatos e de organizar as agendas, era muito maior devido ao presencial”, explica Ricardo Rocha, diretor-executivo da LHH, consultoria de recursos humanos.
A headhunter Maria Eduarda Silveira reforça que o entrevistador precisa estar preparado para avaliar competências e habilidades técnicas para o preenchimento do cargo ofertado.
Entrevistadores, não só do RH, mas também líderes e pessoas que contratam, precisam de treinamento para saber fazer as perguntas certas. É trabalhar os nossos próprios vieses em uma entrevista para não sermos levados por aspectos que não se referem aos objetivos práticos daquela contratação.
Maria Eduarda Silveira, headhunter e sócia fundadora da Bold HRO, consultoria de recrutamento especializado
Além disso, a discriminação de gênero é uma realidade em muitos processos de seleção. Quem afirma é Silmara Araújo, head de gente e gestão da Kipiai, empresa de marketing digital. “Isso pode resultar em perguntas invasivas e inadequadas sobre a vida pessoal e sobre os filhos das mulheres candidatas”, diz.
Jenifer Zveiter, psicóloga e head de diversidade e inclusão da Condurú, concorda com essa perspectiva.
“A mulher tem que atender inúmeras cobranças e o querer trabalhar quase vem desta forma: ‘Você não quer trabalhar? Já que você quer, você tem que se adaptar.’ E se você tem que se adaptar, o problema é seu, se você tem filhos, se você tem outras demandas pessoais”.
Conduta do recrutador pode render processo por danos morais
Legalmente, existe o entendimento de que o potencial empregador possui uma responsabilidade pré-contratual, avalia Aloísio Costa, advogado especializado em direito do trabalho e sócio do escritório Ambiel.
Nesse caso, a candidata poderia acionar a Justiça do Trabalho e pedir indenização por danos morais, mesmo que não exista um vínculo empregatício.
Sobre o tom discriminatório relacionado à maternidade, poderia até mesmo haver uma investigação do Ministério Público do Trabalho.
Isso porque, segundo Costa, o teor da mensagem é “ilegal, discriminatório e demonstra uma cultura, uma regra não escrita da empresa de não contratar quem tem filhos”, afirma.
Caso confirmado o ato discriminatório de uma empresa, existem algumas punições legais:
- Condenação por danos morais coletivos, já que apresenta uma “política da empresa de não contratar mães, ou que queiram ter filhos”, sugere o advogado Aloísio Costa
- Abertura de inquérito
- Ação civil pública
- Obrigação de não fomentar condutas discriminatórias sob pena de multa
- Indenização para fins pedagógicos
Conforme a lei brasileira, um dos deveres do empregador também envolve ”comunicar internamente que seus colaboradores estão proibidos de adotarem práticas que violem os direitos humanos sob pena de sanções internas”, diz Mariana Leal, advogada especializada em direito do trabalho.
A advogada chama atenção para a importância de implantar treinamentos e qualificar representantes das empresas para que condutas discriminatórias não aconteçam, principalmente da área de recursos humanos.
Trabalhadores que enfrentaram casos semelhantes ao da analista de RH Samara Braga, podem realizar denúncias por meio dos canais internos da empresa ou no site do Ministério Público do Trabalho.
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