“Passarinho, que som é esse?” Assim surgiu Dilma Campos, 53, nas telinhas da TV brasileira na década de 90. No papel de Patativa, uma das passarinhas do programa infantil “Castelo Rá-Tim-Bum”, ela estreou como atriz. Contudo, logo decidiu mudar de rumo. Abandonou a carreira na televisão, formou-se em odontologia e ingressou no mundo da publicidade, onde atuou por muitos anos.
A combinação de experiências a levou ao empreendedorismo. Enfrentando altos e baixos, incluindo a crise do seu negócio durante a instabilidade econômica brasileira de 2016, a ex-passarinha perseverou.
Hoje, ela é CEO e fundadora da Nossa Praia, uma ESGtech criada em 2013 com o objetivo de ajudar empresas a progredirem em questões ESG (governança social, ambiental e corporativa). A empresa oferece tecnologias para medição e análise de ações ESG, além da implementação de projetos a longo prazo alinhados à agenda verde.
Em entrevista ao Estadão, a executiva aponta o futuro da liderança, afirmando que o “comportamento será a habilidade mais requisitada nos próximos anos”. Dilma ainda compartilha como reaprendeu a lidar com os erros no mundo corporativo e destaca a influência da dança no desenvolvimento de seu estilo de liderança, especialmente na disciplina.
Confira trechos da entrevista:
Como foi o início da sua carreira?
Comecei como bailarina, e a dança abriu meu olhar para outras oportunidades. Iniciei como assistente de direção de palco em eventos de marketing, organizando convenções de vendas.
Depois atuei como coreógrafa, assistente de palco, até me desenvolver e chegar ao cargo de diretora artística de eventos. Era aquela que dizia: “Atenção, vai começar o Rock in Rio, bota a música para rodar.” Foi nesse momento que percebi que a comunicação ia além dos comerciais de TV, abrangendo experiências de marca e eventos ao vivo.
Foi durante esse período que cursou odontologia e foi a passarinha do “Castelo Rá-Tim-Bum”?
Quando terminei minha formação de dança aos 15 anos, fui selecionada para um musical dirigido por José Possi Neto, um renomado diretor que dirigiu Cláudia Raia na peça “Tarsila”.
Comecei a conviver com pessoas mais experientes, que já tinham cerca de 25 anos e passagens por diversas companhias de balé. Essa convivência me trouxe amadurecimento. Eles me convidavam para participar de comerciais, cheguei até a fazer um para a C&A com o Sebastian.
Com o tempo, comecei a trabalhar em eventos e, aos 19 anos, fui convidada para participar do “Castelo Rá-Tim-Bum”, meu primeiro trabalho com Fernando Meirelles.
Após me formar aos 17 anos, não tinha dinheiro para a faculdade, então continuei trabalhando em eventos. Casei aos 19 e, aos 22, consegui uma bolsa de estudos na Universidade Castelo Branco no curso de odontologia, graças ao meu irmão mais velho, que é dentista. Durante a faculdade, adiantava as atividades e negociava com os professores para poder viajar a trabalho.
Por muito tempo, escondi que era a passarinha do “Castelo Rá-Tim-Bum” enquanto trabalhava em eventos e depois como diretora artística. Muitas pessoas demoraram para entender minha trajetória e as minhas experiências.
Após alguns da experiência no “Castelo-Rá-Tim-Bum”, você partiu para o mundo corporativo, como foi essa fase?
Depois de passar por algumas empresas de eventos, segui para grupos de comunicação que flertavam com publicidade. Eram grupos publicitários que haviam incorporado a parte de live marketing (estratégia que envolve ações de propaganda e eventos ao vivo). Trabalhei em várias empresas de propaganda, desde a Fischer América até o Grupo ABC (antiga holding de agências de publicidade que encerrou as atividades no Brasil em 2022).
Durante esse período, tive minha filha e entrei em uma nova fase da vida, cheia de questionamentos sobre a ausência de outras diretoras negras.
No Grupo ABC, que somava 23 empresas, eu era a única mulher negra em uma posição de diretoria e não havia outros diretores negros, nem mesmo homens. Isso me parecia impossível em um país tão criativo quanto o Brasil.
Lembro de quando o atual presidente da Bauducco, Andrea Martini, me perguntou: “Como você conseguiu chegar aqui?”. Respondi brincando: “Peguei o avião em São Paulo, fiz a ponte aérea para o Rio de Janeiro, peguei um táxi e cheguei aqui.”
Ele riu e disse que não tinha entendido a pergunta. Ele queria saber sobre minha trajetória e comentou: “Fui presidente da Parmalat, depois saí do Brasil, voltei como presidente da Souza Cruz e nunca trabalhei com uma liderança mulher preta. Por isso estou te perguntando.”
Naquele momento, percebi que algo estava errado. Quando perguntava por que não havia pessoas negras, a resposta era sempre que não as encontravam, até eu entender que elas não estavam na Faria Lima, mas em outros lugares, que essas pessoas não tinham acesso. Como poderia dizer para minha filha que ela podia estar em qualquer lugar, se eu não via outras pessoas negras ali?
Leia também
Certa vez, perguntei ao RH se minhas avaliações estavam boas. Disseram que sim, que eu batia todas as metas. No entanto, as pessoas que começaram comigo há sete anos estavam em cargos de CEO ou vice-presidente, enquanto eu permanecia no mesmo cargo (diretora de Produção e Artístico). Foi a primeira vez que realmente senti o impacto do racismo estrutural. Entendi que não iria ascender a uma cadeira de vice-presidente ou presidência naquele lugar.
Em 2009, decidi sair do ambiente corporativo.
Foi quando migrou para o empreendedorismo?
Sim, fundei uma empresa de live marketing, junto com dois sócios não negros. Essa parceria facilitou muito o acesso a recursos financeiros porque quem ia no banco eram eles. Meu foco era criatividade e produção.
A empresa, chamada Magrela Ideias em Movimento, nasceu com uma visão sustentável e inovadora, utilizamos bicicletas para visitar clientes, numa época em que São Paulo ainda não tinha uma infraestrutura completa de ciclovias. Com o tempo, descobri que nossos valores eram diferentes, larguei o negócio e criei a Nossa Praia em 2013.
O que a arte e a dança te ensinaram sobre liderar?
Me ensinaram o que é liderar e ser liderado, porque você tem que ser um bom liderado para saber liderar.
A dança traz muita disciplina. Por exemplo, você não chega e vai para a aula, você tem todo um aquecimento. A dança me ensinou que mesmo que vá palestrar por cinco minutos, jamais entro em um lugar sem ter visto o tema ou estudado sobre o assunto.
Na dança, você não tem outra chance de acertar. Se caiu no chão, tem que disfarçar e fingir que aquilo faz parte da coreografia e não que aquilo foi um erro.
A dança procura até na repetição dos movimentos atingir a perfeição. Você sabe que não é do dia para noite, mas que vai repetindo para chegar a um lugar de conquista daquilo que você está fazendo e trabalhando.
Defina o seu estilo de liderança.
A minha grande característica como líder é conseguir escutar os outros, até porque temos discutido muito quem é o CEO dentro da empresa. Hoje, ele é um chefe executivo do escritório em sua tradução literal.
Mas acredito que esse conceito vai passar por uma mudança, ele não vai ser mais o chefe, ele vai ser o curador para montar equipes, entender a característica de cada pessoa, como elas são complementares para fornecer as melhores equipes.
O que é uma boa equipe? É aquela que consegue ter pensamento crítico diferente, é um time que vem de lugares diferentes, porque isso soma, não subtrai. Quando tem vários olhares, contempla muito mais clientes.
Em algum momento da sua carreira, já teve que lidar com a culpa do erro, e quais foram as oportunidades que surgiram com as falhas?
Outro dia ouvi uma frase muito especial de uma mulher negra no programa “Roda Viva” (da TV Cultura). Ela disse: “o que é liberdade para uma pessoa negra? Liberdade para uma pessoa negra é se entender humana.” Porque desde que nasce tem que ser cinco vezes melhor, porque talvez sendo cinco vezes melhor tenha alguma chance.
Então, crescemos no lugar em que o erro não é permitido, que o 9,5 é a primeira nota dos perdedores, a primeira nota dos ganhadores é 10, como se o 9,5 fosse um lugar de demérito. Quando transportamos isso para a vida profissional, demora muito mais para você se perdoar de um erro.
No período de crise no País, em 2015/2016, não me perdoei por ter mantido as pessoas por muito tempo, tínhamos mais de 15 funcionários e não demitimos ninguém. Levei muito tempo para entender que estávamos vivendo uma crise e demorei para me perdoar por isso.
Em 2016, entro no projeto Winning Women, iniciativas para mulheres empreendedoras conduzido pela Ernst & Young. Passei três meses tentando entender aquilo que precisava fazer, não enxergava que muita gente só deu certo na terceira, quarta jornada empreendedora.
Naquela época, para entrar na Ernst & Young, a empresa precisava ter um faturamento de, no mínimo, R$ 4,5 milhões, e a Nossa Praia se encaixava neste critério porque já faturava mais de R$ 4 milhões. Mesmo com esse faturamento, me culpei por um erro que era de, sei lá, R$ 67 mil. Mas tinha errado e não podia porque fui criada para não errar. Essa é uma exigência das famílias negras.
Então, o maior erro da minha vida foi ter considerado que o erro foi tão grande a ponto de não perceber que podia me recuperar no futuro. Por isso, hoje digo para todo mundo que errar é humano, vamos dar uma cambalhota e seguir.
Como faz para equilibrar vida pessoal e profissional na sua rotina?
Cheguei à conclusão há muito tempo que não tem essa coisa de vida profissional e vida pessoal, tudo é vida. A partir desse momento em que virei a chave, ficou mais fácil equilibrar aquilo que é vida. Coisas vão acontecer no trabalho e não vou poder estar lá, coisas vão acontecer em casa e não vou poder estar lá.
Foi a forma que achei mais gostosa e leve de conseguir levar as duas partes. Até porque dentro da minha vida pessoal continuo sendo uma pessoa que constrói para que outras mulheres pretas passem por esse mesmo lugar. Hoje me divido entre CEO, head de ESG, conselheira da Universidade São Judas e faço parte do conselho consultivo na escola de dança São Paulo Companhia de Dança.
Sempre olhando como é que trilho esse caminho e deixo mais fácil para outras mulheres pretas passarem.
Em uma entrevista no podcast “O Corre Delas”, você mencionou que a interseccionalidade comportamental vai importar mais no trabalho do que a interseccionalidade etária. Explica um pouco essa visão.
Uma das coisas que tenho falado muito é que hoje quando falamos de mulher, citamos a mulher preta, indígena, amarela. Mais do que isso: qual é a habilidade que esta mulher traz na sua experiência, não importando quem ela é, nem a interseccionalidade, muito menos a idade dela?
Isso faz com que seja um local riquíssimo para que esta mulher esteja posicionada para repassar o seu conhecimento para outras pessoas.
Discutimos muito essa essa questão da interseccionalidade, mas vamos começar a discutir comportamento. Qual o comportamento desse colaborador? Ele está de acordo com que a empresa quer? Para mim, comportamento vai ser a habilidade mais requisitada dos próximos anos. Basta olhar para a entrada de inteligência artificial, uma série de cargos sendo suprimidos.
Mas onde que a IA não vai suprimir? Em resolver problemas complexos, porque ali você precisa de várias inteligências humanas para falar com pessoas, quem é que vai demitir as pessoas, quem vai aceitar? Tudo isso tem relação com a criatividade humana.
Qual o seu conselho para mulheres que desejam alcançar cargos de liderança?
Traga a sua caixa de ferramentas femininas. Todos nós temos uma caixa de ferramentas. Muitas vezes, quando você ascende no trabalho, as pessoas podem falar: “você não é tão assertiva.” Você é assertiva, ouça sua intuição, vai te ajudar para que seja ainda mais assertiva.
Seja vulnerável porque a vulnerabilidade traça caminhos que você não tinha enxergado antes. Seja humilde, a humildade também mostra outros caminhos.
Essa caixa de ferramentas de habilidades ou de características femininas é super importante e não devemos descartá-las. Insira a sua caixa de ferramentas na jornada.
Os comentários são exclusivos para assinantes do Estadão.