Em novembro de 2020, o jornalista Maurício Pestana lançava a primeira edição de seu livro A Empresa Antirracista: Como CEOs e Altas Lideranças Estão Agindo Para Incluir Negros e Negras nas Grandes Organizações, mas dez dias depois precisou suspender a distribuição dos exemplares. Na véspera do dia da consciência negra, João Alberto Silveira Freitas foi espancado e morto por um segurança e um policial dentro de uma unidade do Carrefour em Porto Alegre. A empresa era, até então, uma das maiores referências no campo da diversidade e inclusão e um dos entrevistados do livro era justamente Noël Prioux, CEO do Carrefour Brasil.
Cem dias depois, uma nova entrevista foi feita para integrar a segunda edição, lançada no fim do primeiro semestre deste ano, pela Editora Agir. Entre os entrevistados estão nomes como Luiza Helena Trajano, presidente do conselho administrativo da Magazine Luiza, Rachel Maia, ex-CEO da Lacoste Brasil e Theo van der Loo, CEO da NatuScience.
Aos 57 anos, e com 40 de estudo sobre o tema, Pestana diz que muita coisa mudou de um ano e meio para cá, quando ele começou a escrever o livro, e que casos como o de João Alberto e de George Floyd (homem negro assassinado por um policial branco nos Estados Unidos em 2020) impulsionaram as mudanças.
“O caso do Carrefour acendeu e acelerou muitas empresas a começarem a ter o tratamento redobrado, porque elas sabem que poderia ter acontecido em qualquer outro lugar. Aquilo ali foi traumático porque foi filmado, um dia antes da consciência negra, mas infelizmente o racismo estrutural permite que isso aconteça”, diz.
A reportagem conversou com Maurício Pestana sobre o cenário da inclusão racial no mundo empresarial brasileiro e o que ainda precisa ser feito para a verdadeira inclusão. A seguir, os principais trechos da conversa.
Ao longo de todos esses anos em que você acompanha o tema da inclusão racial no mercado de trabalho, qual o diagnóstico que você faz em relação às empresas?
O Brasil parou para atentar sobre a questão racial no mercado de trabalho há pouquíssimo tempo. A nossa experiência é muito recente perto da experiência de outros países. Não é à toa que, quando eu fiz o primeiro Fórum de Diversidade em São Paulo, há 7 anos, eu fui pioneiro em chamar a atenção. Naquele encontro, 90% das 230 empresas eram multinacionais e apenas 10% brasileiras. Das brasileiras, só uma tinha experiência presente na área da diversidade, que era a Camisaria Colombo, que havia começado isso havia muitos anos, no final do século passado. Fizeram um acordo coletivo com o sindicato dos comerciários e nele instituíram ações afirmativas para colocar negros e negras em seus cargos de comando.
Os Estados Unidos, e até mesmo a Europa, já tinham alguma experiencia com a inclusão, com a questão dos imigrantes, a luta pelos direitos civis e a inserção dos negros. Mas quando você chega ao maior país negro fora da África, a experiencia é zero. A grande vantagem que tivemos no fórum é a mesma desse livro, a de fazer com que as empresas conversem entre si para trocarem experiências. As multinacionais, nos últimos anos, têm andado a passos acelerados e com empresas brasileiras, como Magazine Luiza e Itaú, houve um despertar grande que surgiu nesses intercâmbios, a ideia de que é necessário fazer alguma coisa.
Em muitos pontos do livro, os entrevistados - que muitas vezes são de outros países - contam terem ficado surpresos com o racismo quando chegaram ao Brasil. Por que você acha que isso acontece?
O Brasil negou o racismo durante séculos de uma forma feroz. Aqui, se praticou a teoria de que, se você estudasse, se formasse, você teria uma oportunidade de superar. Uma balela. Tudo bem que é óbvio que também faz parte do racismo a dificuldade do estudo, do racismo estrutural mesmo após a abolição. Mas isso não significa que você já não tenha esse bom profissional por aqui, mesmo em quantidade pequena.
O grande problema é que a evolução do mercado de trabalho criou uma hierarquia que exclui das mais diversas formas. Tem uma régua para medir que, em cargos de direção, precisa dominar não sei quantas línguas e não sei mais o que, coisas que não são acessíveis à comunidade negra no geral. Isso cria barreiras. Tem o "quem indica (QI)" também, no qual a pessoa vai indicar alguém que estudou com ele na universidade X. E aí o racismo vai se adequando e se reconstituindo.
A partir do momento em que as empresas começam a ter esses entraves, elas podem querer vencer essas barreiras. A ironia é que foram as empresas multinacionais que começaram a fazer isso de abrir mão do inglês, porque a diversidade entre os funcionários é mais importante. A partir do momento que se começa a pensar nessa lógica, você começa a melhorar o mercado de trabalho.
O Brasil é um País sui generis, que não dá para se compreender muito. É como se aqui a gente vivesse em um outro planeta, porque somos um país que se autodeclara 56% negro - e ainda tem o problema do racismo estrutural, das dificuldades de ser negro, que fazem com que muitas pessoas se declarem de outra cor. Porém, quando você olha para qualquer setor estratégico de poder no Brasil, você encontra a minoria branca na totalidade desses cargos.
Você olha para o governo federal e faltam ministros negros, a mesma coisa com a Suprema Corte, faltam juízes negros - embora ela tenha dado uma contribuição favorável às causas raciais. Aí você vai baixando para os Estados, são raros os que têm secretários negros em cargo de decisão. As prefeituras não ficam muito atrás. A Prefeitura de São Paulo, depois de 500 anos, tem uma secretária de Cultura negra. Então, você olha para as empresas, conselhos, CEOs, não tem pessoas negras. Tem a Rachel Maia e mais um ou outro.
O que mais dói, o que é mais traumático é a normalização disso, como se fosse normal. Não é normal em nenhum lugar do mundo, não é normal nos Estados Unidos, onde a população negra é 10%, não é normal na África do Sul, onde a população é majoritariamente negra. A Inglaterra, por exemplo, é um país branco e ela tem um número maior de embaixadores negros do que o Brasil. Mesmo antes de Jair Bolsonaro ser presidente, já era uma vergonha quando um presidente do Brasil aparecia na África com a comitiva toda de brancos. Somos um País majoritariamente negro. É surreal, é mais do que vergonhoso.
Têm surgido iniciativas de programas trainee e estágio exclusivamente para profissionais negros. São pessoas que daqui a cinco, dez anos podem estar em cargos de liderança. Mas o que a gente vê pelos dados é que também há uma urgência já atrasada de que esses profissionais cheguem aos cargos de liderança hoje. O que você tem visto sendo feito nesse sentido?
As empresas estão utilizando aceleradores de processo, primeiro porque têm metas a atingir. Essa questão da inclusão mais estrutural é uma pressão, uma cobrança, que não vem só do Brasil, vem de fora, há uma corrida para se acelerar esse processo. A realidade daqui a cinco ou dez anos não vai ser a mesma de hoje, mas existe um processo que precisa ser feito. Não dá para você pegar um jovem e transformá-lo em um mês. Pelo menos hoje temos uma perspectiva de que a médio e longo prazos a realidade vai mudar.
Eu não acredito em curto prazo, porque tem o processo de que não é todo mundo que está bem intencionado nessa mudança. Eu ainda encontro executivos que acham que o caminho é a meritocracia. Mas você tem que olhar que grande parte da população sequer tem a possibilidade do mérito. Eu não acredito em milagres, eu acredito no que eu vejo.
As empresas que eu selecionei (para o livro) são as que eu acredito que estão dispostas a erguer as mangas e fazer algo. Existem empresas em que o departamento de diversidade está mais ligado ao marketing do que ao recursos humanos, essas não estão no caminho certo. O caminho certo é a alta liderança, o CEO e o RH juntos decididos a mudar o quadro da empresa.
- Quer debater assuntos de Carreira e Empreendedorismo? Entre para o nosso grupo no Telegram pelo link ou digite @gruposuacarreira na barra de pesquisa do aplicativo
O que vemos bastante - e o exemplo do Carrefour ilustra isso - é que, mesmo as empresas que teoricamente estão avançadas nas políticas de diversidade e inclusão, há pontos que parecem não avançar. Como você vê essa questão?
No caso específico do Carrefour, o livro foi profético, lançamos o livro dez dias antes do episódio (quando João Alberto Silveira Freitas, um homem negro, foi espancado e morto por um segurança e um policial num Carrefour de Porto Alegre), depois até retiramos das vendas, porque a empresa era exemplo.
Então, refizemos a entrevista 100 dias depois, porque houve mudanças estruturais na empresa. Na introdução do livro, eu falo que existem duas desgraças que perseguem o povo preto neste País desde a escravidão, e uma terceira surge depois da escravidão. Temos um problema muito sério no mercado de trabalho, com os meios de comunicação e a questão da violência por parte das forças de segurança. A gente é reprimido de todo jeito.
O que acontece entre esses três pontos é que um alimenta o outro. Você tem um mercado de trabalho que te exclui, que não te dá condições de ter um trabalho digno. Então, você nunca vai ter boas condições de educação, de saúde, habitação para essa população, porque ela ganha mal. O mercado de trabalho ajuda nesse racismo estrutural.
Então, você tem uma força de segurança - polícia ou setores privados - que discriminam a população que ganha menos e têm problemas sociais. E, por fim, você tem os meios de comunicação que vendem isso de que o negro está nas enchentes, debaixo dos viadutos. Isso talvez explique um pouco do que é o racismo estrutural, o que aconteceu em Porto Alegre é isso. Se fosse uma pessoa branca, provavelmente seria um outro tratamento.
O caso do Carrefour acendeu e acelerou muitas empresas a começarem a ter o tratamento redobrado porque elas sabem que poderia ter acontecido em qualquer outro lugar. Aquilo ali foi traumático porque foi filmado, um dia antes da consciência negra, mas infelizmente o racismo estrutural permite que isso aconteça. Eu acredito muito que isso muda quando você começa a mudar o mercado de trabalho, a dar salário digno, ter negros em liderança, criando uma classe que vai poder ter filhos estudando em boas escolas, tendo oportunidades que negros e negras nunca tiveram nesse País. Senão você não muda, você vai enxugar gelo. Eu acredito muito que a discriminação é racial e social, o negro é discriminado porque é negro e porque é pobre.
O que mudou entre as duas edições do livro?
Muita coisa. A gente fez outra edição por causa do caso Carrefour. Hoje, efetivamente, você tem um grande número de empresas, sejam elas brasileiras, multinacionais, médias - antes eram só as grandes. Hoje esse tema está na pauta do dia e há um ano e meio não estava. Um fato marcante para elas tomarem essa decisão foi o ocorrido com o George Floyd, isso impulsionou o movimento.
Eu, que estudo o tema há 40 anos, sou muito otimista. A gente passou mais de 20 anos pregando no deserto para poucas empresas e, de uns dois ou três anos para cá, houve uma mudança maior que se acelerou nos últimos anos.
Eu sempre começo as consultorias que eu faço falando que existem três motivos para as pessoas investirem na diversidade, principalmente na inclusão racial. A primeira é o motivo mais amplo de que, como o aquecimento global, você vai melhorar o planeta, a distribuição de renda, vai ajudar a criar um mundo e um País mais justo. O segundo é o que eu acho que as empresas estão mais atentas que a diversidade dá lucro, embora elas tenham descoberto isso tardiamente.
No século 20 todo mundo produzia para uma minoria, que era para uma classe rica e branca. Era essa a gente que aparecia nas propagandas, parecia que negros e negras não consumiam cerveja nem papel higiênico nem absorvente, você não aparecia nas publicidades. As empresas aos poucos descobriram que outras pessoas consumiam os seus produtos e os consumidores começaram a ficar mais atentos a isso.
O terceiro ponto é o mais dramático. É engraçado porque eu falo isso há alguns anos: não queira que a sua empresa caia numa armadilha de ser colocada, principalmente num tempo de redes sociais, como uma empresa racista, porque o que você vai gastar para limpar a barra da sua empresa vai te dar um prejuízo muito maior do que trabalhar com a diversidade e o respeito de todo mundo. As empresas estão muito ligadas com o segundo e o terceiro ponto, poucas com o primeiro.
Eu diria que tem um quarto ponto: as empresas terão que pensar na governança, no ambiente, nas relações sociais e raciais a partir de uma quarta pressão, como a da Nasdaq de exigir diversidade no conselho das empresas listadas na bolsa. Eu acredito que elas o façam por esses quatro motivos, porque sabem que, no futuro, se elas não tiverem um modo cada vez mais diverso e globalizado, com pessoas cada vez mais diversas, estarão fadadas a sumirem.
A EMPRESA ANTIRRACISTA
Autor: Maurício Pestana
Editora: Agir (267 págs.)
Impresso: R$ 33; e-book: R$ 29
Os comentários são exclusivos para assinantes do Estadão.