Em 2019, a designer de produto Antonella Vanoni, agora com 27 anos, alcançou um dos seus principais objetivos da carreira: ocupar um cargo de alta gestão na área de marketing. Mas a meta profissional virou um pesadelo. No início de 2023, o estresse gerado pela nova função culminou em um diagnóstico de burnout. A jovem decidiu pedir demissão e mudar o status corporativo em busca de qualidade de vida. Embora seja particular, a história de Antonella não é um caso isolado.
A busca por qualidade de vida e bem-estar tem levado cada vez mais profissionais a deixarem seus empregos, especialmente os jovens em posição de liderança. Um estudo global realizado pela consultoria Mckinsey revelou que 31% de jovens entre 18 e 34 anos podem abandonar seus cargos, já profissionais com mais de 35 anos representam 14%.
No Brasil, 3 mil pessoas participaram da pesquisa, divulgada no final de 2022. Os motivos para desistir de altos cargos envolvem fatores como ausência de oportunidades de desenvolvimento, insegurança psicológica, inflexibilidade e falta de propósito.
O período pós-pandêmico se revelou um terreno fértil para provocar pessoas que podem escolher se manter - ou não - em determinado emprego, explica a professora de liderança convidada da Fundação Dom Cabral, Livia Mandelli.
Chega de se sacrificar para ter um cargo de chefia
Neste movimento de renúncia, as pessoas começaram a repensar seus padrões de sucesso e a priorizar um estilo de vida mais equilibrado.
Estes trabalhadores com poder de decisão não estão dispostos a vestir a camisa da empresa ou suportar culturas tóxicas por causa de um cargo de liderança, diz Mandelli. “Como algumas pessoas têm pensado em qualidade de vida, estão desistindo porque querem vida em abundância. Por exemplo, ninguém mais quer trabalhar para um líder tóxico, que não tenha vínculo afetivo organizacional.”
Não é ficar sem fazer nada, é achar um propósito na vida
No entanto, a professora pondera que é preciso compreender o que é, de fato, o conceito de bem-estar para cada indivíduo. “Não é ficar no parque o dia inteiro olhando para os pássaros. Você tem uma questão interna das pessoas entenderem o porquê estão se levantando da cama todos os dias e se vale a pena fazer o que estão fazendo.”
Na rotina de Antonella, aos poucos, ela percebia a criatividade indo para o ralo, mais indisposição e um tempo cada vez mais curto para a vida pessoal. “Estava tão estressada que não conseguia dormir direito”, relembra.
O problema, segundo a criadora de conteúdo, não foi exatamente o trabalho em si, mas as experiências em empresas com chefias despreparadas. “Um líder influencia muito na vida das pessoas. No sentido profissional, um feedback mal estruturado pode destruir a sua autoestima profissional e foi o que aconteceu comigo.”
Não via os amigos e estava sempre cansada
Enquanto gerenciava uma equipe de seis pessoas em uma empresa de varejo em São Paulo, precisava lidar com indícios de labirintite que, na verdade, se revelaram um diagnóstico de burnout. Ela não tinha nenhuma reserva financeira e temia pelo desemprego, mesmo assim decidiu largar a empresa. “Estava e estou bem preparada [psicologicamente] para ganhar menos”, diz.
“A troco de que estava tendo um cargo de gerente?”, questiona. “Não conseguia ver os meus amigos, estava sempre cansada, tinha uma fadiga bizarra, crise de ansiedade e depressão.”
Agora, poucos meses após o pedido de demissão, Antonella se divide como consultora estratégica de marketing para pequenos negócios e criadora de conteúdo nas redes sociais. Sua conta no instagram soma quase 30 mil seguidores. Por lá, ela comenta sobre moda, comportamento, comunicação, carreira e trabalho.
Um dos conteúdos publicados por ela ilustra o momento em que celebra um novo contrato. Veja o vídeo abaixo:
A mudança trouxe uma nova percepção sobre a importância do trabalho para Antonella. “Não é sobre aumento salarial ou sobre ganhar bônus. É sobre conseguir um cliente legal, ter o valor do meu trabalho e um feedback legal de alguém que está trabalhando. É sobre ver que estão indicando o meu trabalho espontaneamente”, resume.
Ambiente corporativo era desagradável
Mesmo sendo minoria neste movimento de renúncia, profissionais de outras gerações também têm considerado reavaliar o modelo de trabalho. É o caso da analista de recursos humanos Ana Lúcia Marinho, 55. Ela revela que a primeira vez em que enxergou o trabalho pela ótica da qualidade de vida foi após a pandemia, em 2022.
Na época, a analista trabalhava em uma rede de farmácias no Rio de Janeiro. Mesmo gostando do que fazia, o ambiente corporativo era desagradável, revela Lúcia. Era muita cobrança e pouca transparência. “Isso me acendeu um alerta. Eu não precisava de uma empresa que me fazia mal emocionalmente.”
Com episódios de crise de ansiedade, ela resolveu dar entrada na aposentadoria já que tinha completado o tempo de contribuição, um total de 32 anos. Para ficar com o teto previsto pelo INSS, Lúcia precisaria trabalhar por mais cinco anos, o que não era uma opção naquele momento. Ana Lúcia seguiu com o pedido e teve o processo aprovado neste ano.
Após dois meses em casa sentiu falta da rotina de trabalho e optou por fazer algo novo. Desta vez, não necessariamente por dinheiro, mas por propósito. Há pouco menos de um mês conseguiu ser contratada na área de departamento pessoal de uma empresa de construção civil em uma posição que não exige tantas atribuições se comparado ao emprego anterior. No atual cargo, Lúcia tem salário 50% inferior ao antigo.
Administrador agora tem tempo para tocar tamborim
O administrador Emilio Martos, 58, também formado em direito, ocupou posições de liderança nas áreas de administração, finanças e gestão de pessoas em empresas de São Paulo, por 22 anos. Desde sempre, ele se preocupava em ter equilíbrio na vida profissional e pessoal. No entanto, a responsabilidade do cargo muitas vezes não permitia. “Eu acordava em São Paulo, almoçava em Curitiba e dormia em Belém”, relembra.
Assim como Antonella e Lúcia, ele estava satisfeito com a profissão, mas a rotina corrida não trazia apenas uma renda confortável e um status corporativo, mas vinha acompanhada de abdicações. Conviver com a família com frequência e trabalhar de outra cidade era missão quase impossível.
“Em cargos executivos, é preciso saber a hora de parar”, afirma Emilio. Em 2017, aos 52 anos, ele fez uma primeira tentativa para migrar de carreira. O teste foi interrompido por falta de planejamento.
Em 2021, em plena pandemia, fez um segunda investida e deu certo. Ele largou o emprego para se aventurar no empreendedorismo, assumindo o risco de ganhar menos, não sem antes ter um preparo financeiro e um estudo de mercado.
Assim, trocou a rigidez da vida no escritório por mais tempo de qualidade em atividades variadas. Agora, vai à academia em horários em que antes não era possível, aproveita a família e tem a chance até de praticar novos hobbies - de tocar repique e tamborim a participar da bateria de um bloco carnavalesco em São Paulo.
Nada disso significa que desafios profissionais ficaram no passado. A diferença é que o trabalho já não ocupa posição central na sua lista de prioridades. “Antes realizava para os outros, agora estou realizando os meus sonhos.”
Hoje, ele se dedica ao voluntariado em três instituições, no próprio negócio - uma consultoria e corretora de seguros especializada em gestão de benefícios -, e em outras parcerias com pequenas e médias empresas.
Líderes estão pressionados e também causam ansiedade na equipe
Essa nova mentalidade de buscar desafios em busca de qualidade de vida também vem sendo acelerada pelos modelos de cultura organizacional e liderança calcados no imediatismo. O impacto reflete na saúde mental do colaborador, afirma a diretora do Instituto Feliciência Carla Furtado. “Os líderes estão sob tamanha pressão e nível de instabilidade, que essa insegurança escala no comportamento deles juntos às equipes e vira uma grande ansiedade coletiva.”
Segundo Furtado, chefias que vivenciam um ambiente de cobrança permanente estão mais propensas a terem comportamentos inadequados, como comunicação mais dura e feedback desqualificado. Isso em grande quantidade gera efeitos negativos.
A solução, diz a pesquisadora, está na forma como as organizações pensam e estruturam a cultura corporativa. “Esgotar as pessoas significa impedir a sustentabilidade do negócio”, sugere.
Empresas vão precisar de um novo estilo de líder
Já para a professora de liderança Livia Mandelli, a empresa deve se responsabilizar em obter resultados extraindo o melhor das pessoas. “Quanto mais as pessoas acreditam que vale a pena trabalhar para aquela liderança, mais se engaja em permanecer ali.”
Mandelli projeta que um novo modelo de liderança irá surgir e que as organizações devem enfrentar o desafio de garantir qualidade de vida dentro do ambiente de trabalho sem abdicar dos resultados. “A empresa precisa de resultado. Mas será que o resultado combina com o que os trabalhadores entendem por bem-estar?”
Mas deixar o emprego em busca de qualidade de vida não é uma realidade para todos. Mandelli afirma que o poder de decisão dos trabalhadores ainda é restrito. “Muitas pessoas trabalham para sobreviver. Então [essa população], infelizmente, precisa ganhar dinheiro fazendo o que for, com o tipo de toxicidade que existe, mesmo colocando toda a saúde mental em risco.”
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