Grande debandada no Brasil afunila em profissionais mais qualificados e escolarizados

Movimento de demissões nos EUA, impulsionado pela base da pirâmide, tem reflexo no Brasil com contornos privilegiados; pesquisa aponta que 85% dos recrutadores têm dificuldade para achar candidatos

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Por Marina Dayrell

Em 2021, os Estados Unidos bateram recorde de profissionais pedindo demissão - em novembro, foram 4,5 milhões, cerca de 3% da força de trabalho do país. O fenômeno, que se intensificou na pandemia, ganhou a alcunha de grande renúncia (ou grande debandada e grande migração). Movimentos parecidos foram observados em outros países, como Reino Unido e China, mas e no Brasil?

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Não há um consenso entre especialistas se o Brasil pode reproduzir as mesmas características da grande debandada. Brasil e Estados Unidos já tiveram índices de desemprego parecidos: em abril de 2020, por exemplo, a taxa estava acima dos 14% nos EUA, enquanto no Brasil atualmente está em 11,6%, segundo o IBGE.

No entanto, as semelhanças param por aí. No País norte-americano, a maior parte da grande renúncia foi provocada por profissionais que ocupam a base da pirâmide. Por vários motivos intensificados na pandemia, incluindo a insatisfação com o empregador e a preocupação com a saúde mental, eles deixaram seus empregos. 

O movimento ganhou até uma hashtag no TikTok, #Quitmyjob (larguei o meu emprego, em inglês), onde funcionários filmam o momento em que pedem demissão – em sua maioria, jovens. Empresas como Amazon e McDonald’s, por exemplo, têm tido dificuldades para encontrar funcionários nos EUA e oferecem até dinheiro para quem for à entrevista e iPhone grátis para contratados. Hoje, a taxa de desemprego nos EUA caiu para 4%. 

Tania Casado, professora da USP e diretora do Escritório de Carreiras da USP (Ecar/USP). Foto: Werther Santana/Estadão

No Brasil, o mercado de trabalho começou a absorver talentos novamente, possivelmente para vagas que foram desocupadas com as demissões do início do isolamento.

“Em 2020, tivemos 15 milhões de admissões e 15,8 milhões de desligamentos. Em 2021, até novembro, foram 19 milhões de admissões e 16,1 milhões de desligamentos. Ambas as variáveis do ano passado são maiores do que o momento crítico da pandemia, então é um sinal de dança das cadeiras. As pessoas estão sendo realocadas porque o mercado de trabalho sofreu um grande choque”, explica Marcelo Neri, diretor do FGV Social, da Fundação Getúlio Vargas.

No entanto, por aqui, a movimentação de demissões tem ocorrido, segundo os especialistas, entre os profissionais mais qualificados, ou seja, aqueles que têm ensino superior completo e que estão trocando de empresa. Desde os primeiros dias de 2022, postagens anunciando mudanças de emprego surgiram aos montes no LinkedIn.

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Profissionais mais qualificados

A taxa de desemprego dessa população foi de 6,3% no terceiro trimestre de 2021, segundo o IBGE. Números próximos a 5% são indicativos de pleno emprego, de acordo com especialistas. Mas, uma vez que apenas 17% dos brasileiros acima de 25 anos possuem o ensino superior completo, não há gente suficiente para que uma movimentação de demissões se equipare a um fenômeno como a grande debandada. Essa movimentação, em um País tão desigual como o Brasil, acaba ficando nas mãos de quem é privilegiado social e economicamente.

“Temos muitas questões culturais, tecnológicas, sociais, políticas e econômicas. Há desníveis muito grandes entre Brasil e EUA. Aqui, as pessoas estão buscando emprego. Claro que os profissionais altamente qualificados vão sempre ser procurados e sempre vão procurar novas oportunidades. Elas vão procurar uma vaga melhor, mas primeiro elas vão ver se há essa vaga melhor, antes de pedir demissão”, explica Tania Casado, professora da USP e diretora do Escritório de Carreiras da USP (Ecar/USP).

Para Lucas Nogueira, diretor associado da Robert Half, a flexibilidade passou a ser um dos requisitos dos profissionais durante a pandemia. Foto: Cássio Narciso

De acordo com a consultoria Robert Half, 51% das demissões de profissionais qualificados no terceiro semestre de 2021 ocorreram a pedido dos colaboradores. O índice foi obtido a partir dos microdados do novo Cadastro Geral de Empregados e Desempregados (Caged), que passaram por uma análise com metodologia própria da consultoria. 

No entanto, para o professor da FGV Marcelo Neri, medir a autodemissão ainda é um desafio no Brasil, já que é comum as empresas fazerem acordos com os funcionários durante o desligamento. 

A busca pelo novo emprego

O mundo não é o mesmo na pandemia nem será quando ela acabar. Nos dois últimos anos, muitas coisas mudaram, entre elas a forma que os profissionais encaram o mercado de trabalho, refletem os entrevistados.

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“As pessoas que têm condição, porque não são todas elas e nem são todos os postos de trabalho que vão poder fazer essa transição (apenas 11% dos trabalhadores ficaram em home office na pandemia), já estão dando mais valor para coisas como o modelo híbrido. Então, é claro que essas pessoas vão tentar refazer seu planejamento da jornada de trabalho”, diz Tania.

Uma outra parte da pesquisa feita pela Robert Half com 1.161 profissionais constatou que 49% dos qualificados que estão empregados pretendem buscar um novo emprego neste ano. Entre eles, 61% querem mudar de empresa, mas continuar na mesma área e outros 39% planejam mudar de área de atuação.

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A maior motivação entre os dois grupos de profissionais é a remuneração. Outras razões incluem o desejo de inovar ou aprender algo novo (19%), a busca por realização pessoal (17%) e a expectativa de uma melhor qualidade de vida (12%).

“Antes as empresas eram mais preocupadas em recrutar e oferecer bons salários, que, claro, é um baita motivo para os funcionários ficarem. Mas, com a pandemia, as pessoas passaram a olhar para outras coisas, como a flexibilidade – lembrando que ser só remoto ou só presencial não é flexível”, explica Lucas Nogueira, diretor associado da Robert Half.

“Se o empregado qualificado começa a observar que a empresa não oferece flexibilidade nem um modelo novo de trabalho, que o chefe não se atenta a novos modelos de gestão, essa pessoa vai sair, porque agora as possibilidades são maiores. Demitimos muita gente no começo da pandemia e agora estamos contratando mão de obra qualificada, sem mais limites de geografia, então a guerra de talentos ficou mais forte”, completa.

Ele aponta que as áreas onde há mais debandadas e consequente briga por talentos são: tecnologia (tanto atendimento quanto desenvolvimento), logística (desde manutenção e operação de novos equipamentos, como drones, à cadeia logística de compras online) e a área técnica do agronegócio (melhora de produtividade e distribuição de alimentos).

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Na última semana, Felipe M., de 38 anos, pediu demissão da empresa em que trabalhava havia cinco anos. Com um cargo na área comercial, ele tinha, em suas palavras, “o emprego dos sonhos”: home office desde sempre, carro para se locomover e liberdade para escolher os dias e horários em que trabalharia. Solteiro e sem filhos, a demissão veio após uma crise de burnout e como um resgate de uma vontade antiga de sair do corporativo e se mudar para uma cidade do interior.

“Na pandemia, ficou tudo tão corrido no mundo corporativo, o trabalho e a pressão aumentaram. Eu cheguei a ficar de atestado médico, porque estou passando pelo burnout. Você não sabe o que fazer, fica sem reagir, a vida dá uma estagnada e você não consegue ir para frente nem para trás. Eu sempre quis morar no interior e comecei a ver que o trabalho que eu estava fazendo não estava trazendo nenhum bem para as pessoas”, conta.

Segundo Felipe, a empresa se surpreendeu com o seu pedido de demissão, mas compreendeu e fizeram um acordo para que ele fosse mandado embora. 

“Mesmo não tendo filhos, tomar uma decisão dessa é muito difícil. Mas quando você pede para sair você tira um peso nas costas, dá uma sensação muito boa. Eu espero nunca mais voltar para o corporativo”, diz.

Ainda cumprindo aviso prévio, por enquanto ele pretende se sustentar com o dinheiro que juntou, o acerto da empresa e a receita que vem de um food truck que já tinha há algum tempo no interior, além de aprender novas habilidades. Nesta semana, começou a ter aulas de marcenaria. 

“Como eu já venho pensando nisso há muito tempo, eu já vinha me programando, mas, do ponto de vista financeiro, eu gostaria de estar mais bem preparado. Para isso, eu teria que trabalhar mais um ano nesse emprego. Mas, se eu ficasse pensando nisso, eu ia adiar para sempre”, diz.

Dificuldade para encontrar profissionais

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Se já faltava mão-de-obra qualificada e agora esses profissionais estão ficando mais exigentes aos olhos do mercado de trabalho, fica mais difícil recrutar. Uma pesquisa feita pela Heach Recursos Humanos, com 120 recrutadores do Brasil, em 2021, apontou que 85% deles dizem estar passando pelo pior momento profissional de suas carreiras, já que não conseguem encontrar candidatos.

“Em cada 20 candidatos convocados para um processo seletivo, dois ou três aparecem. Um número absurdo. As pessoas acabam desistindo antes mesmo de começar ou pouco depois que começam o processo. Em qualquer segmento isso vem acontecendo, até mesmo em grandes empresas que oferecem bons salários e pacotes de benefícios”, conta Mary Mendonça, líder de relacionamento da Heach.

Para atrair mais interessados nas vagas, 78% dos recrutadores disseram ter que reduzir os pré-requisitos constantemente. As expectativas dos candidatos, segundo quem recruta, têm girado em torno de flexibilidade no trabalho (44%), salários mais altos (26%), pacotes de benefícios (13%), plano de evolução de carreira (13%) e investimentos em formação (4%).

“Se as empresas não se adaptarem a essa realidade, elas simplesmente vão ter um nível de turnover elevado, o que implica em custo e em não manter a capacidade intelectual na própria empresa. A empresa vai ter que pensar em soluções para manter cada um de seus públicos no cargo”, diz Mary. 

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