Profissionais com menor autonomia, baixa escolaridade e salários mais baixos devem ser os principais a retornar ao trabalho presencial ao longo de 2025. Já o modelo híbrido tende a se consolidar, principalmente entre profissionais com rendimentos mais altos e que atuam em organizações estruturadas. As projeções são de Sylvia Hartmann, pesquisadora de modelos de trabalho flexível e CEO da Remota, startup especializada em consolidar práticas de trabalho remoto e híbrido.
Segundo Hartmann, esse cenário evidencia “a disparidade social no Brasil” e não resolve os desafios enfrentados pelas organizações. Ela acrescenta que problemas reais enfrentados pelas empresas, como estratégias, fortalecimento da cultura, inovação e conexão no ambiente de trabalho não serão resolvidos com “o retorno compulsório” ao escritório.
Segundo ela, acreditar que trazer os trabalhadores da base da pirâmide de volta aos escritórios vai aumentar a produtividade e o engajamento é um “grande equívoco”.
Para 2025, a tendência deve permanecer semelhante: empresas inovadoras terão maior facilidade em adotar o remoto, enquanto organizações mais tradicionais continuarão resistentes à mudança.
É um grande desafio estimular pertencimento em times a distância. Mas manter todo mundo no escritório enfiado em reuniões virtuais também não cria conexão.
Sylvia Hartmann, pesquisadora de modelos de trabalho flexível e CEO da Remota, startup especializada em consolidar práticas de trabalho remoto e híbrido.
Confira trechos da entrevista:
Qual deve ser o cenário do home office no Brasil em 2025?
Diante das notícias sobre a redução de oferta, o número de vagas remotas caiu. Por outro lado, o número de vagas híbridas se manteve. Isso me fez pensar: “Poxa, é uma boa notícia! Estamos vendo o modelo híbrido se consolidar.”
No entanto, notícias recentes mostram que esses números podem estar diminuindo. Por exemplo, a Amazon anunciou que vai adotar cinco dias presenciais. Quando analisamos esse cenário, a primeira impressão é que há uma forte tendência de retorno ao presencial e uma redução do home office, tanto no modelo integral quanto no híbrido.
Participo de um grupo de pesquisa da FEA/USP e FIA, e recentemente realizamos a 3ª edição da pesquisa sobre trabalho em home office e híbrido (estudo realizado pelo grupo de pesquisa Gestão Estratégica e Internacional de Pessoas do Programa de Pós-Graduação em Administração da FEA/USP e FIA, em parceria com a Sobratt).
Foram quase mil participantes. Muitos trabalham de forma 100% remota ou híbrida, com dois ou três dias de home office. 74% deles disseram que seus empregadores possuem uma política formal para os modelos de trabalho. Esses dados mostram que, embora o home office integral tenha perdido força desde a pandemia, o modelo híbrido veio para ficar.
Com base na pesquisa da FEA/USP e na sua análise de mercado, qual é o perfil dos profissionais mais propensos a retornar ao trabalho presencial em 2025?
Pelo menos para uma parcela da população, o modelo híbrido veio para ficar. Estamos falando de uma base de profissionais com alta escolaridade, maior autonomia e salários variando de R$ 10 mil a R$ 12 mil, de acordo com a pesquisa.
Por outro lado, quando olhamos para a base da pirâmide, considerando salários e escolaridade mais baixos, percebo, com base na minha experiência de apoio a empresas, que existe uma tendência mais forte ao retorno presencial.
Está sendo criada uma lógica: as empresas que adotam o modelo remoto ou híbrido são bem estruturadas, com políticas claras, contam com profissionais mais capacitados e com maior autonomia. Esses profissionais geralmente têm maior satisfação, desempenho e produtividade. Mas essa abordagem acaba ampliando a disparidade social no Brasil.
É péssimo notar que as pessoas da base da pirâmide, que já enfrentam longos deslocamentos no transporte público, sejam as mais propensas a retornar ao presencial. Achar que trazer essas pessoas de volta aos escritórios vai aumentar a produtividade e o engajamento, sendo que o preço é um alto deslocamento, é um grande equívoco.
Sylvia Hartmann, CEO da Remota e pesquisadora sobre trabalho flexível
Nas empresas brasileiras, o que tem pesado mais na decisão de escolher o modelo de trabalho híbrido, 100% remoto ou presencial?
Existem alguns fatores importantes. Vamos dar um passo para trás. Antes da pandemia, todas as pesquisas sobre teletrabalho, home office e trabalho remoto eram baseadas principalmente em percepções: “Como você acha que seria?”. Eram hipóteses e possíveis resultados.
Depois veio o home office compulsório, provocado pela pandemia. As empresas migraram sem muita preparação. Agora temos a oportunidade de planejar melhor o trabalho remoto.
Para que o modelo seja bem-sucedido, é essencial que as práticas de trabalho sejam adequadas. Isso envolve a disponibilidade de tecnologias robustas, processos bem definidos e lideranças preparadas. Mas essa nem sempre é a realidade das organizações.
Sylvia Hartmann
Inicialmente, pensei que isso fosse um problema típico do Brasil, mas percebi que é uma questão global. O Brasil enfrenta desafios específicos, como alta carga tributária, burocracia e desenvolvimento tecnológico limitado, que tornam o trabalho mais moroso.
Também temos a questão do comportamento dos profissionais. Alguns, longe dos mecanismos de controle do escritório, acabam não agindo de forma ética. Outros, mesmo sendo éticos, enfrentam dificuldades de autogestão, algo que, culturalmente, não é tão incentivado.
Sylvia Hartmann
Somos acostumados a seguir uma rotina conduzida por terceiros, desde a infância, com alguém nos acordando, nos alimentando e cobrando horários. Grande parte da população tem dificuldade de autogestão. Além disso, há pessoas que não possuem condições adequadas em casa para trabalhar remotamente.
Esses são os fatores determinantes: adaptações nas empresas, perfil dos profissionais e cultura organizacional. As empresas mais inovadoras tendem a adotar com mais facilidade o modelo remoto, enquanto as mais tradicionais resistem.
Existem outros fatores?
A cultura do imediatismo. Tudo é para ontem, urgente, isso dificulta o planejamento para implementar o modelo remoto. Há também o mimetismo: “Se a Amazon voltou, nós também devemos voltar.”
Isso é um erro, já que a flexibilidade é um diferencial competitivo importante, principalmente para empresas menores que não podem competir com as grandes em termos de salários e benefícios.
Estamos pulando os problemas reais, que é criar estratégias, adotar práticas que fortaleçam a cultura, inovação e conexão no ambiente de trabalho para ter o retorno compulsório ao escritório como resposta.
Sylvia Hartmann
O trabalho remoto, se bem planejado, pode ser uma solução viável para problemas de conexão, pertencimento e resultados. Mas pular o planejamento e forçar o retorno ao presencial não resolve esses problemas e pode até piorar, com perda de talentos, etc.
Quais setores estão mais resistentes e quais os mais abertos à adoção de modelos remotos em 2025?
A área de tecnologia é um setor mais propenso ao trabalho remoto. Saindo desse setor, acredito que outros fatores são mais determinantes, como a cultura organizacional e o tamanho da empresa.
Em organizações maiores, promover uma mudança dessa magnitude é mais difícil. Para empresas menores, é mais fácil implementar modelos, realizar testes e manter uma boa governança.
Em termos de setores, indústrias de manufatura e outras atividades que não podem ser realizadas remotamente, obviamente continuarão presenciais.
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Já as equipes corporativas dependem muito da cultura organizacional. Quando há necessidade de estar na operação, o modelo híbrido funciona bem. Por exemplo, o funcionário pode passar dois dias por semana na fábrica acompanhando como as coisas acontecem, e os outros três dias realizando atividades administrativas em casa.
Vejo que o fator determinante não é o setor em si, mas a cultura organizacional, a mentalidade dos líderes e a disposição para mudanças e inovações, além do investimento - de tempo e dinheiro - em processos que viabilizem novos modelos de trabalho.
Você citou que a cultura organizacional é um fator determinante para a adoção do modelo híbrido ou remoto em algumas empresas. Pode explicar o que seria na prática a cultura organizacional?
A cultura organizacional começa em aspectos mais visíveis, como o uniforme, o escritório e até as cores das paredes. Um escritório mais luxuoso ou mais despojado, por exemplo, reflete algo da cultura, mas de maneira superficial. Para mim, o ambiente físico entra nessa camada mais externa.
Depois, temos os valores declarados, é tudo aquilo que efetivamente acontece na prática. É como as decisões são tomadas e as dinâmicas funcionam: em uma empresa, mulheres não são promovidas. Em outra organização, as promoções acontecem independentemente de raça, gênero ou qualquer outro fator.
Em uma corporação, pode ser que ninguém se sinta à vontade para falar em reuniões, deixando apenas os líderes falarem. Em outra, qualquer pessoa pode ligar diretamente para o presidente e obter uma resposta. Esse tipo de comportamento, que geralmente vem da liderança, é o que considero a essência da cultura organizacional.
Sylvia Hartmann
Essa cultura pode ser transmitida de várias formas: cada e-mail enviado, cada decisão tomada, cada pessoa promovida, cada escolha sobre ética ou tratamento de clientes. Tudo isso reflete e reforça a cultura da organização.
Por outro lado, temos questões como engajamento e pertencimento, que são diferentes da cultura organizacional. Sentir-se parte de algo, “vestir a camisa”, é algo mais subjetivo. É um grande desafio estimular esse pertencimento em times a distância. Mas manter todo mundo no escritório enfiado em reuniões virtuais também não cria conexão.
De que forma o home office e o modelo presencial impactam a rotina da cidade de São Paulo?
Em São Paulo, o trânsito piorou muito. Além disso, as condições do transporte público, como ônibus, trens e metrôs, são insalubres. Não consigo imaginar como isso pode contribuir para a produtividade de alguém.
Nos EUA, a pandemia levou muitos profissionais a se dispersarem para outros estados, trabalhando remotamente. No Brasil, a realidade é bem diferente. Aqui, temos características históricas de concentração de poder e emprego, então muitas pessoas não têm alternativas.
Durante a pandemia, muitas empresas devolveram escritórios, acreditando que ficariam remotas. Contrataram pessoas de outros estados. Sem planejamento em tecnologia, processos e treinamentos, o modelo não funcionou. Agora, há uma pressão para retornar aos escritórios, mas muitos espaços não estão preparados.
Sylvia Hartmann
Hoje os escritórios são frequentemente ambientes caóticos, com pessoas realizando reuniões virtuais no mesmo espaço, sem condições de concentração ou confidencialidade. Mas algumas empresas estão investindo em espaços colaborativos, com inovação e interação.
Um movimento interessante, mais forte no exterior, mas já visível no Brasil, é a hospitalidade organizacional. Basicamente criar ambientes e serviços que facilitem a vida dos funcionários, tanto no presencial quanto no remoto. Bancos, salões de beleza, supermercados, creches, academias, espaços pet-friendly e apoio à saúde.
Isso ajuda muito a diminuir o peso do deslocamento e as horas que as pessoas passam fora de casa. A que horas elas fazem o supermercado? A que horas cozinham?
No Brasil, posso citar Nubank, Motorola Solutions e Logitech, que estão liderando essa tendência. Essas iniciativas mostram que o escritório não é resposta para tudo.
Um estudo da Robert Half mostrou que 71% dos recrutadores de empresas avaliam que a flexibilidade é determinante para a atração e retenção de talentos. Esse aspecto deve influenciar o modelo de trabalho no Brasil nos próximos anos?
No Brasil, tenho a impressão de que ainda não compreendemos de forma concreta que, quanto maior o nível de satisfação e de autonomia dos profissionais, maior a produtividade. Claro que as pessoas precisam ser bem treinadas, desenvolvidas e ter responsabilidade.
Não é apenas culpa do empresário, é responsabilidade compartilhada entre três atores: o profissional, o líder e o setor de recursos humanos.
Sylvia Hartmann
Recursos humanos é fundamental nessa equação de trabalho remoto, home office ou híbrido. Mas ainda temos uma distância muito grande entre as partes, e isso reflete na postura: “Não quer trabalhar? Então pode sair.” Ou: “Se quiser ficar, precisa estar presencialmente quatro dias por semana.”
Essa rigidez vai contra a necessidade de flexibilidade dos profissionais e, como consequência, estamos vendo um êxodo de mulheres do mercado formal. Muitas mulheres, que acumulam funções de trabalho e cuidado com a casa, optam por empreender, não porque desejam, mas porque precisam.
Sylvia Hartmann
Esse cenário reflete um atrito significativo entre a necessidade de flexibilidade dos profissionais e a resistência das empresas. A mídia também contribui ao destacar os retornos ao escritório, enquanto pouco se fala sobre empresas que estão implementando boas práticas de trabalho remoto ou híbrido.
Há casos de sucesso que precisam ser divulgados. É importante mostrar aos profissionais que existem empresas boas, estáveis, que oferecem oportunidades de crescimento e a flexibilidade que muitos buscam, seja de horário ou de local de trabalho.
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