Nômades digitais enfrentam perrengues em nome da flexibilidade; conheça 7 casos

Para brasileiros que optaram por morar longe do trabalho na pandemia, lidar com questões burocráticas é desafio; trabalho flexível ganha preferência nas vagas, mostra pesquisa

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Foto do author Juliana Pio

O nomadismo digital ganhou força com a pandemia da covid-19, impulsionado pelo home office, e vem conquistando brasileiros ao pôr fim às limitações geográficas e permitir viajar, inclusive pelo mundo, enquanto se trabalha. O que para muitos pode ser o modelo de vida ideal, com oportunidades de emprego, flexibilidade de horários e novas experiências, para além da visão romantizada ele exige planejamento, disciplina e autoconhecimento para lidar com os imprevistos do dia a dia, que não raro surpreendem até viajantes mais maduros. 

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Pesquisa do LinkedIn registrou um aumento de 83% em anúncios de vagas mencionando flexibilidade desde 2019, além de um crescimento de 343% nas referências ao termo em publicações na rede. Conforme a 10ª edição do estudo “Tendências Globais de Talentos 2022: A reinvenção da Cultura Corporativa”, publicado em fevereiro, os funcionários querem flexibilidade para trabalhar onde, quando e como preferirem, e estão mais do que dispostos a deixarem as empresas que não proporcionarem isso.

Outro mapeamento da Revelo, startup de recrutamento e seleção que conta com 1,5 milhão de candidatos cadastrados em sua base, mostra que praticamente não existem mais buscas por vagas presenciais. Em um dos estudos recentes, 78% dos profissionais disseram considerar trocar de emprego caso não haja flexibilidade em permanecer trabalhando de casa.

“A maioria dos candidatos está procurando trabalho remoto. Algumas das razões apontadas por eles são: não perder tempo no trânsito, poder trabalhar em cidades distantes, incômodo com as interrupções que acontecem no escritório e horários muito inflexíveis do modelo presencial”, diz Lucas Mendes, cofundador da Revelo.

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Camila Berteli Macedo, gerente de recursos humanos da Nexa Resources, se tornou nômade digital durante a pandemia e já passou por 12 locais fora do País, comoAuvers-sur-Oise, na França. Foto: Rodolfo Oliveira

A tendência, que já era comum no setor de tecnologia, durante a pandemia se tornou uma realidade entre empresas de diversos segmentos e áreas de atuação, inclusive administrativas, motivando mais pessoas a adotarem esse estilo de vida. 

Segundo Diana Quintas, sócia no Brasil da empresa de migração Fragomen e vice-presidente da Abemmi (Associação Brasileira dos Especialistas em Migração e Mobilidade Internacional), hoje há cerca de 35 milhões de nômades digitais no mundo, e esse número deve chegar a 1 bilhão até 2035. 

Se antes eram pessoas que não tinham raízes no trabalho, agora o grupo é diverso, formado por profissionais de diferentes cargos, setores e níveis, que trabalham de forma remota enquanto viajam em busca de uma melhor qualidade de vida e novas experiências, mas que também estão passíveis de sofrer perrengues, como todo profissional.

A paulistana Camila Bertelli Macedo, de 33 anos, sempre atuou em regime de carteira assinada em escritório presencial e, há quatro meses, decidiu se tornar nômade digital. “É a primeira vez que estou experimentando o nomadismo. Entreguei meu apartamento em São Paulo em outubro de 2021. Já passei por 12 cidades. Hoje, estou em Luxemburgo, depois vou para Itália e, em seguida, Inglaterra, para fazer um curso em Oxford”, conta ela, que é gerente de recursos humanos da Nexa Resources e atuou na implementação do teletrabalho e do trabalho híbrido na empresa. 

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“Entendemos que o teletrabalho é uma escolha, caso a função permita, e, no caso da Nexa, abarca a maioria das áreas administrativas. O foco agora está na colaboração. Alinhei com a liderança o meu desejo e fechamos combinado por seis meses”, explica a gerente.

Fuso horário e reagendamento de compromissos

Embora esteja satisfeita com a escolha, Camila conta que, no começo, precisou adaptar sua rotina à nova realidade, seja em relação ao fuso horário para se comunicar com a empresa ou para realizar as tarefas pessoais. “Foi bem desafiador. Dormia menos e ficava ansiosa ao reagendar compromissos. Achava que precisava estar 100% disponível e trabalhar por muitas horas. Precisei rever todas as agendas, fazer acordos e dar mais autonomia ao meu time. Cheguei a perder uma reunião porque dormi”, lembra.

Outro desafio foi se desapegar do sentimento de pertencimento, por estar distante do local físico da empresa, amigos e familiares. “Perdi encontros. Lidar com o medo de que você está perdendo ou acha que vai perder a relação com as pessoas é superdifícil”, destaca. Fora as questões relacionadas à vivência em outro país. “Morei em uma casa em que o aquecedor não funcionava. Agora, aqui está fazendo dois graus”. 

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Para se sustentar em outro continente, a gerente de RH converteu seu salário para a moeda local. “O custo de vida em São Paulo é tão alto, que, com menos dinheiro aqui, tenho uma vida muito semelhante. Vou ajustando o orçamento conforme o mês. Abri uma conta internacional para facilitar a movimentação bancária e entrada nos países. Quando termina o tempo de visto de um local, mudo para outro.”

Burocracia e legislação dificultam nomadismo

Pesquisa da Robert Half publicada em janeiro mostra que o modelo de trabalho híbrido já é a preferência de 48% das empresas em 2022. De acordo com a empresa de recrutamento, a necessidade de distanciamento social nos últimos anos acelerou a inovação e a tendência de novos modelos de trabalho, abrindo oportunidades para os nômades digitais. Contudo, lidar com questões burocráticas e legislativas de outros países, principalmente daqueles em que há pouco incentivo para esse perfil profissional, é um problema com que muitos só se deparam depois de cruzar a fronteira. 

Foi o que observou a jornalista e escritora Lídia Zuin, de 31 anos, que se mudou para Berlim, na Alemanha, em dezembro de 2021. “Sempre trabalhei com meu CNPJ, inclusive atendendo empresas estrangeiras. Mas, quando entra dinheiro de fora há questões mais complexas, principalmente quando é necessário emitir nota fiscal. Cada país tem as suas próprias regras fiscais e de imposto”, explica. 

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Segundo ela, além da dificuldade para se alugar apartamento e a falta de sistema de saúde público gratuito na Alemanha, há uma série de documentações necessárias para poder trabalhar. “A conversão da moeda nem sempre vale a pena. Além dos tributos gerados pela minha empresa, tenho que pagar imposto por estar recebendo esse dinheiro em outro país. Ou seja, não sobra muito.”

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Na experiência da jornalista, algumas ferramentas podem ajudar na gestão do trabalho e na vida nômade, caso do aplicativo Nomad, além de bancos digitais com taxas menores e incentivos fiscais e de vistos ofertados por cerca de 24 países, como Estônia, Croácia e Costa Rica. Todavia, ela destaca que a vida de freelancer na Europa não é fácil. 

“Dependendo do local, pode-se ficar até três meses e você não é considerado cidadão fiscal. Mas, depois desse tempo, é preciso pagar impostos. Para ficar dentro da legalidade é complicado e é necessária a ajuda de especialistas que entendem de taxas e impostos internacionais. Não sei o quanto vale a pena investir nisso para ser nômade digital. Faz mais sentido respeitar a tolerância do visto”, acredita.

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26 países e um livro no currículo

Essa foi a aposta do escritor e educador Matheus de Souza, de 32 anos, que já rodou 26 países. Ele conta sua experiência e dá dicas para viver e trabalhar em qualquer lugar no livro Nômade Digital, da editora Autêntica Business (2019), que, inclusive, concorreu ao Prêmio Jabuti como finalista na categoria Escrita Criativa, em 2020.

“Tenho empresa no Brasil, com CNPJ, e pago todos os impostos. Embora existam vistos específicos para nômades digitais, opto pelo de turista, por não trabalhar para empresas estrangeiras e não querer me fixar em nenhum local. Respeito o tempo de permanência de cada país. No México, por exemplo, são seis meses.”

O escritor e educador Matheus de Souza, autor do livro Nômade Digital, da editora Autêntica Business (2019), que concorreu ao Prêmio Jabuti, em 2020. Foto: Pedro Antino

O escritor explica que uma das maiores dificuldades desde que mudou seu estilo de vida é comprovar residência, quando necessário. “É um horror preencher qualquer formulário. Fui abrir uma conta digital no Brasil e tive que pedir o endereço da minha mãe. Esse é o grande pesadelo do nômades”, destaca. 

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Durante suas viagens, Matheus conta que já passou por muitas situações inusitadas. Certa vez, ficou preso por 5h em um elevador na Sérvia, sem falar nada do idioma. “Também já tentaram me aplicar muitos golpes, como receber notas rasgadas ou troco errado. Cheguei a perder a carteira no raio-x do aeroporto de Portugal. Fiquei duas semanas vivendo só com cartão do Brasil, pagando altas taxas. Hoje, não levo todos os cartões juntos”, lembra ele, que ainda sugere atenção especial em viagens entre países com tensão política. 

“Quando a Rússia cortou relações diplomáticas com a Geórgia, meu voo foi suspenso e não tive reembolso. Gastei mais dinheiro e precisei mudar todo o meu planejamento. É o tipo de coisa que a gente só pensa depois que acontece”, reflete. 

Organização e planejamento para não cair em ciladas

Natural de Belém, a psicanalista, psicóloga e pedagoga, Arianne Araújo, de 41 anos, fez a sua primeira viagem internacional quando decidiu se tornar nômade digital. Para trabalhar remotamente, ela buscou plataformas e orientações via Conselho Federal de Psicologia (CFP) e teve seu currículo aprovado para iniciar atendimentos online. 

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“Quando cheguei à França foi uma loucura, por causa do fuso horário diferente do Brasil. Mas consegui me adaptar. É preciso repensar a nossa metodologia de trabalho. É muito bom ter essa autonomia, mas o mundo digital não é para quem não tem disciplina, perseverança, constância e organização”, salienta a psicanalista. 

A psicanalista Arianne Araujo, natural de Belem, fez a sua primeira viagem internacional quando se tornou nômade digital. Foto: Arquivo Pessoal

Atualmente morando em São Paulo, Arianne compartilha suas experiências nas redes sociais. “Vejo que tem muito amadorismo nesse meio. As pessoas querem as facilidades do digital, mas esquecem que é uma outra forma de trabalho. É preciso seguir uma agenda, cumprir horários e ter planos alternativos para imprevistos. Não estou de férias.”

Outro desafio comum entre os nômades digitais é o acesso à internet, uma das preocupações de Ana Carolina Medrado, de 24 anos, natural de Eldorado, no sul do Mato Grosso. “Já aconteceu de chegar em um local, para ficar em hotel, e a rede não funcionar”, conta a jovem, que viaja pelo Brasil enquanto trabalha como product design para uma empresa americana. 

A dica de Ana Carolina é não depender somente de uma rede de internet e buscar locais seguros, para evitar o risco de roubo dos equipamentos de trabalho e, inclusive, de dados sigilosos no que diz respeito à Lei Geral de Proteção de Dados (LGPD). “Tem que ter um planejamento e uma rede extra de 4G, por exemplo. Também evito me locomover em grades de horários em que tenho compromissos importantes. Já tive que fazer reuniões de videochamada em aeroportos e no Uber diante de imprevistos.”

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A falta de planejamento também foi motivo de dor de cabeça para Thiago Mota e sua esposa, sócios na Novo Expediente, consultoria de lideranças. Ao chegarem de madrugada no aeroporto de Nova Deli, capital da Índia, sofreram um sequestro relâmpago ao contratar um táxi local. Os golpistas inventaram um cenário de greve na cidade para obrigá-los a contratar um serviço mais caro de transporte para outro local.

Falta de planejamento já foi motivo de dor de cabeça para Thiago Mota e sua esposa, sócios na Novo Expediente. Foto: Arquivo Pessoal

“Minha esposa recebeu uma mensagem do hotel informando sobre o golpe e, depois de um tempo, conseguimos convencê-los a nos levar de volta. Fomos despreparados e caímos numa armadilha própria. Pensamos que por sermos superviajantes, estava tudo certo, mas a pesquisa é fundamental para se ter uma boa experiência, principalmente de trabalho, e não cair em armadilhas.”

Viajar é bom, mas nem sempre

Foi em busca de mais qualidade de vida e contato com a natureza que a paulistana Mariana Selingarti, de 37 anos, decidiu se aventurar no mundo dos nômades digitais. Agente de viagens e professora de yoga, atualmente mora no Vale do Capão, na Chapada Diamantina (BA). “Estou passando por um momento de crise em relação ao nomadismo. É um estilo de vida que está muito bem estabelecido em mim, mas venho sentindo a necessidade de estar um pouco mais enraizada”, afirma.

No início da sua experiência como nômade, costumava ficar hospedada em hostels, mas, depois que se tornou professora de yoga, precisou de lugares mais espaçosos e silenciosos para trabalhar, o que aumentou seu custo. “As pessoas faziam barulho e o Airbnb deixou de ser vantajoso financeiramente. Era preciso chegar no lugar antes, avaliar, conhecer as pessoas e fazer contatos para alugar uma casa ou quarto a um preço mais justo.”

Mariana Selingarti teve que aprender na marra a gerenciar financeiramente seu negócio juntamente com a vida de nômade digital. Foto: Thiago Rodrigues

A cada dois meses, Mariana se mudava de cidade, o que gerou certo desgaste. “Tem uma hora que cansa ficar o tempo todo tomando decisões, como se locomover, para onde vai, onde ficar hospedada etc.”, explica ela, que, depois de passar por 20 países e mais de 100 cidades, sentiu necessidade de aumentar o tempo de estadia para gerar mais conexões com os lugares e as pessoas. 

“A maior dificuldade foi descobrir como ser empreendedora enquanto viajava. Não fiz reservas financeiras. Cheguei a ficar com apenas US$ 70 na conta e, quando fui sacar o dinheiro no Nepal, a máquina estragou. Tive que pedir dinheiro emprestado. Aprendi na marra a ter uma estrutura de empresa”, conta a agente de viagens.

Atenção às competências comportamentais

Com a consolidação do anywhere office (escritório em qualquer lugar), o nomadismo digital, que já era tendência entre autônomos, está se expandindo como realidade para outros tipos de profissionais. O perfil, atualmente, inclui pessoas com altos cargos, como CEOs. Cerca de 40% ganham mais de R$34 mil por mês e chegam a gastar USD 787 bilhões anualmente, segundo Relatório da Fragomen de Tendências Migratórias Globais em 2022.

“Os nômades digitais pós-pandemia não são apenas aquelas pessoas dispostas a se mudarem de país para começar tudo do zero, muitos fazem home-office de qualquer lugar do mundo, mantendo o mesmo vínculo empregatício”, analisa Diana Quintas, sócia no Brasil da empresa de migração Fragomen e vice-presidente da Abemmi.

De acordo com Leonardo Berto, gerente da Robert Half, esse é um tipo de perfil profissional que o mercado irá ver com mais frequência nos próximos anos. Contudo, interessados em aderir ao novo estilo de vida mais flexível precisam se atentar aos seguinte requisitos, segundo o especialista:

  1. Para se tornar um profissional nômade é preciso encontrar uma vaga que realmente permita isso. Além disso, entender entregas, estrutura, condições de trabalho e intercorrências que possam surgir. 
  2. Preencher os requisitos técnicos, mas ter uma infraestrutura com acesso a internet para não prejudicar a performance profissional ou até mesmo a participação em processos seletivos. 
  3. Entender quais são as competências comportamentais que o trabalho remoto exige e que são diferentes do modelo presencial. Ou seja, planejar entregas, lidar com indicadores e ter senso de organização. Vão surgir problemas, por isso a capacidade de ser autogerenciável é uma característica bastante procurada para esse tipo de posição. 

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