Tornou-se uma rotina comum: a creche da filha está fechada, então Hannah Watland fica em casa sem poder sair para trabalhar. Enquanto isso, as contas se acumulam. Ela deve US$ 500 de aluguel e US$ 600 de mensalidade da creche, esteja ela funcionando ou não. O saldo de sua conta bancária é inferior a US$ 20. “Mal está dando para comprar o básico”, disse Hannah, que ganha US$ 14 por hora como vendedora em Rapid City, Dakota do Sul. “Todos os dias que não trabalhamos é muito dinheiro que deixa de entrar.”
A última onda de casos de covid-19 afetou até mesmo os planos mais elaborados dos estabelecimentos que tomam conta de crianças. Mas os pais com menores salários têm sido atingidos desproporcionalmente e de forma dupla nas últimas semanas – perdendo tanto o acesso aos serviços de cuidado dos filhos, como a renda a taxas muito mais elevadas que aqueles com salários maiores, de acordo com a análise do Washington Post dos dados coletados por uma recente pesquisa.
O fechamento de creches e a interrupção de outros serviços de cuidado infantil aumentaram de forma acentuada de dezembro a janeiro, conforme os casos da variante Ômicron dispararam por todo os Estados Unidos, mas eles foram mais comuns para as famílias cujas rendas eram inferiores a US$ 25 mil por ano, mostram os dados da pesquisa Household Pulse Survey, realizada pelo governo americano para entender como a vida das pessoas foi impactada pela pandemia.
Nas primeiras duas semanas de janeiro, 30% das famílias com crianças menores de 11 anos relataram a interrupção de serviços de cuidado infantil nas últimas quatro semanas, ante 22% em dezembro – à medida que as crianças adoeciam ou ficavam isoladas após o contato com pessoas infectadas, ou os estabelecimentos fechavam devido aos surtos ou falta de funcionários.
Quando as creches fechavam, as famílias de baixa renda eram mais propensas a recorrer a licenças de trabalho não remuneradas ou pedir demissão de seus empregos. Ao contrário das famílias com rendas mais elevadas, que costumam se virar com folgas remuneradas ou licenças médicas, cuidando de seus filhos enquanto trabalham ou diminuindo o número de horas do expediente. A probabilidade de sofrer uma redução de salário era muito maior para as famílias com renda de até US$ 50 mil por ano do que para aquelas que ganham US$ 100 mil ou mais por ano.
Além disso, apenas um terço dos trabalhadores com os salários mais baixos dos EUA teve acesso a licença médica remunerada desde março de 2021, em comparação com 95% daqueles que recebem os salários mais altos, de acordo com a Secretaria de Estatísticas Trabalhistas dos EUA.
Mia Rodriguez, que recentemente começou a trabalhar em um emprego que lhe paga US$ 10 por hora, na mesma creche que sua filha frequenta em Wichita, não tem direito a licença médica. Então, quando sua filha de um ano foi diagnosticada com covid-19 em dezembro, ela teve que se afastar do trabalho durante uma semana, não recebeu nenhuma remuneração e continuou tendo que pagar o estabelecimento. A jovem de 25 anos teve que solicitar um empréstimo de curto prazo no valor de US$ 200 para cobrir os custos da creche da filha naquela semana. Ela também passou por dificuldades para comprar fraldas e leite para a bebê.
“Foi, tipo, caramba, queria não ter que me endividar mais, porém o que me restava fazer?”, disse Mia, que pediu para ser identificada pelo nome de solteira por temer consequências negativas no trabalho. “É muito difícil quando você não está recebendo nada, mas mesmo assim precisa pagar as contas.”
As discrepâncias nas interrupções dos serviços de cuidado infantil são outro exemplo de como a recessão provocada pela pandemia ampliou a desigualdade em todo o país. Os trabalhadores com menores salários, assim como muitas vezes os do setor de serviços, perderam mais empregos e foram mais expostos ao vírus enquanto trabalhavam. Eles também enfrentam de forma mais grave os problemas da alta inflação, segundo a pesquisa.
As disparidades na forma como as famílias lidam com a interrupção dos serviços de cuidado infantil ressaltam as desiguais salvaguardas de emprego nos EUA, disse Betsey Stevenson, professora de economia da Universidade de Michigan e ex-consultora de economia de Obama na Casa Branca. Os trabalhadores mais bem pagos do país também são os mais propensos a receber outros benefícios, como licença médica, férias e seguro saúde, disse ela. E se precisarem pedir dinheiro emprestado, os americanos mais ricos costumam conseguir isso com condições mais favoráveis.
“A questão não é apenas a compensação”, disse Betsey. “Trata-se também de oferecermos mais estabilidade e recursos para as pessoas com maior poder econômico. É muito mais difícil resolver as coisas quando você tem um salário baixo, quase nada guardado ou acesso a crédito de baixo custo. Ter que tirar qualquer licença não remunerada pode impor grandes dificuldades.”
Em entrevistas com aproximadamente duas dezenas de pais com salário variável, que não têm direito a licença remunerada ou usaram todas as disponíveis, todos disseram ter enfrentado interrupções significativas nos serviços de cuidado infantil relacionadas à covid-19 desde dezembro. Muitos afirmaram ter ficado sem renda durante várias semanas e, em alguns casos, precisado pedir demissão para cuidar dos filhos. Outros relataram estar adiando as buscas de emprego ou se tornado autônomos devido às incertezas em relação aos cuidados dos filhos.
Para pagar as contas, os pais em empregos com salários baixos disseram estar dependendo mais dos cartões de crédito, alugando quartos em suas casas ou pegando trabalhos extras, como bartender ou entregador de restaurante, à noite e nos fins de semana.
Hannah começou a vender seus pertences – entre eles um colar de diamantes que ganhou na formatura do ensino médio, um laptop e uma jaqueta da marca Puma – no eBay. Nem Hannah, nem seu noivo, que trabalha no setor de serviços de alimentação, tem direito a licença remunerada, ou seja, quando não trabalham, nenhum dinheiro entra. Duas semanas atrás, toda a família foi diagnosticada com covid-19 no mesmo dia em que descobriram que a água e o gás seriam cortados por falta de pagamento. “Às vezes preciso pedir ajuda aos meus pais, mas eles também estão sem dinheiro”, disse a jovem de 24 anos.
As interrupções dos serviços de cuidado infantil durante a pandemia impactaram de forma mais forte aqueles que não podiam contar com recursos próprios ou da família. Estudos mostram que a falta desses serviços tende a prejudicar mais as mães, sobretudo se os filhos tiverem menos de 6 anos. No primeiro ano da pandemia, as mães que trabalhavam estavam mais propensas a reduzir a jornada de trabalho ou pedir demissão devido às interrupções dos serviços de cuidado dos filhos do que os pais, de acordo com uma pesquisa do JAMA Health Forum, site que reúne publicações acadêmicas.
Pais sem educação superior – que tendem a ter menos opções de trabalho no regime home-office ou meios para encontrar outras alternativas de cuidado para os filhos – também estavam mais propensos a serem afetados pelas interrupções dos serviços de cuidado infantil, mostram estudos. Aqueles com menor grau de instrução perderam cerca de duas horas de trabalho por semana durante o último ano letivo, enquanto os pais com maior grau de instrução apresentaram impactos insignificantes, de acordo com pesquisadores da Universidade do Estado de Washington.
“Trata-se de um assunto conhecido, pois a pandemia intensificou as desigualdades preexistentes”, disse Nancy Folbre, economista e professora aposentada da Universidade de Massachusetts Amherst, onde sua pesquisa teve como foco gênero e o trabalho de cuidar. “Estamos presos em um problema que está se amplificando.”
O governo Biden apontou os serviços de cuidado infantil acessíveis como uma de suas maiores prioridades. O plano de resgate econômico dos EUA de 2021 contou com US$ 39 bilhões para custear os serviços de cuidado infantil, inclusive ajuda financeira para seus funcionários e subsídios para ajudar famílias de baixa renda a pagar por creches. O plano de medidas sociais conhecido como Build Back Better de Biden, que está parado no Senado, também inclui medidas como pré-escola gratuita para todas as crianças de 3 e 4 anos.
Kevin Flanagan, de Seekonk, Massachusetts, perdeu o emprego que lhe pagava US$ 50 mil por ano em uma concessionária de carros no início da pandemia. Dois anos depois, ele teve uma redução de salário considerável e passou a trabalhar como entregador autônomo de produtos de saúde para poder dar conta dos aparentes intermináveis fechamentos de creches e escolas de seus filhos de 2 e 7 anos.
A creche da filha, que custa US$ 342 por semana, fechou três vezes desde dezembro, por pelo menos uma semana cada vez, disse ele.Algumas semanas atrás, ele recebeu uma ligação quando estava começando suas entregas no período da manhã. Um professor tinha sido diagnosticado com covid-19, o que fez ter de ir buscar a filha dentro de uma hora.
“É como levar um soco no estômago todas as vezes”, disse Flanagan, 42 anos. “O que não desejo escutar é 'Kevin, não podemos contar com você, por isso vamos ter que demiti-lo’. Isso faz com que eu tenha a sensação de que não posso procurar um emprego tão cedo.”
Um número recorde de americanos ficou sem trabalhar em janeiro por estar com covid-19 ou cuidando de alguém infectado, segundo dados do censo. Além dessas ausências de curto prazo, os economistas temem que tais transtornos possam levar a mais demissões e redução da taxa de participação na força de trabalho.
Até agora, os problemas enfrentados por aqueles que cuidam de outras pessoas foram responsáveis por cerca de um terço da diminuição da participação na força de trabalho durante a pandemia, com impactos imensos nos pais com filhos em idade escolar, de acordo com um relatório de novembro da diretoria do Federal Reserve.
“Quando trabalhadores com salários mais baixos deixam de ir trabalhar muitas vezes, a grande preocupação não é apenas que isso esteja criando dificuldades pessoais para eles, mas que isso talvez os faça serem desligados do trabalho”, disse Betsey, da Universidade de Michigan. “Precisamos trazer todos de volta à força de trabalho para nos recuperarmos completamente. Queremos manter as pessoas trabalhando.”
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Depois de ser afastado de seu emprego em um armazém no início da pandemia, Carlos Rivera levou meses para encontrar outro trabalho e uma creche para a filha. O pai solo conseguiu ambos no final de dezembro – mas a filha adoeceu. Entre novos casos de doenças e o fechamento da creche por conta da covid-19, ele faltou tanto ao trabalho, que na semana passada foi demitido do trabalho que lhe pagava US$ 16 por hora em um armazém de produtos doces.
Agora ele está outra vez procurando emprego, no entanto, a maioria dos armazéns exige turnos de 10 ou 12 horas, tornando o trabalho incompatível com os cuidados da filha. A eletricidade de Rivera foi cortada recentemente e ele deve US$ 8 mil de aluguel atrasado do apartamento no condado de Berks, na Pensilvânia. “Sou pai solo, não tenho pais, esposa ou namorada”, disse o homem de 33 anos. “Somos apenas eu, minha filha e a creche.”
Embora a pandemia tenha levado muitos empregadores de profissionais de escritório a oferecer horários mais flexíveis ou opções alternativas de cuidado infantil, especialistas dizem que os empregadores daqueles com salários mais baixos têm sido mais lentos em apresentar propostas. Em Emporia, Kansas, Paul Brosemer diz que às vezes não tem escolha a não ser levar seus filhos, de 3 e 8 anos, para o trabalho em uma empresa de agrimensura. Ele já usou todas as folgas remuneradas que tinha direito e agora está tirando licenças não remuneradas sempre que os serviços de cuidado infantil são paralisados.
O lugar frequentado pelos filhos cobra US$ 500 por mês, independentemente de as crianças poderem frequentá-lo ou não. Para arcar com as despesas, Brosemer faz bicos como bartender ou em armazéns depois que a esposa chega em casa do trabalho em uma concessionária de carros.
“Há semanas inteiras em que não recebemos qualquer pagamento”, disse o homem de 36 anos. “Estou estressado e minha conta bancária já não é a mesma de um ano atrás por causa de todas essas quarentenas. Dá vontade de gritar todos os dias.” /TRADUÇÃO DE ROMINA CÁCIA
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