THE WASHINGTON POST - Em fevereiro de 2020, poucos teriam previsto a onda de insatisfação que estava prestes a tomar conta dos escritórios americanos. Era comum se dizer que os Estados Unidos eram um país de workaholics – e parecia que gostávamos disso.
Nossas vidas profissionais tinham assumido as conotações de uma religião secular; elas eram uma forma importante de se encontrar sentido no mundo e uma parte crucial da nossa identidade. Estávamos “casados com o trabalho”, nas palavras da terapeuta e escritora Ilene Philipson. Mesmo aqueles empregos sob demanda precários e com baixa remuneração eram valorizados na “cultura da agitação”, como símbolos da liberdade de trabalhar segundo as próprias regras.
Corta para o segundo semestre de 2022. O número de pessoas pedindo demissão, embora menor do que em seu pico, permanece no nível mais alto desde a década de 1970. Os funcionários de escritório não querem abrir mão do trabalho remoto. Setores com remunerações baixas, como a indústria hoteleira, não conseguem encontrar pessoas suficientes dispostas a trabalhar pelos salários oferecidos. A organização sindical e as greves estão aumentando.
Uma miríade de comentaristas tentou dar um nome ao conjunto de tendências em curso: a grande renúncia. A grande renegociação. Desistência silenciosa. A grande reavaliação. Não é fácil definir um movimento que abrange enfermeiras em greve e strippers sindicalizadas, trabalhadores de armazéns da Amazon e banqueiros de Wall Street que trabalham de casa.
Mas o que está cada vez mais claro é que a decisão de março de 2020 de interromper parcialmente a economia americana destruiu a relação problemática e profundamente desigual dos americanos com o trabalho como nada em décadas. E mesmo que tenha existido um grande incômodo durante uma paralisação que destruiu as suposições de quase todos sobre como ganhamos a vida, também nos deparamos com uma oportunidade inesperada: reconstruir nossa relação com o trabalho.
Três categorias de trabalhadores
Para entender o que aconteceu, é útil dividir os 164 milhões de americanos que estavam trabalhando em fevereiro de 2020 em três categorias.
Havia milhões que pensavam não correr riscos com seus empregos estáveis, mas acabaram sendo demitidos ou afastados conforme os lockdowns da pandemia ocorriam. Também havia os funcionários de escritório que continuaram a trabalhar 40 ou mais horas por semana, porém agora de casa.
E os profissionais – empregados de supermercados, do setor de alimentação, de serviços públicos, assim como policiais, trabalhadores dos correios, professores e prestadores de serviços da saúde – cujo trabalho foi de repente apelidado de “essencial” e que sem eles a sociedade como a conhecemos deixaria de funcionar.
Todos esses grupos viram sua relação com os empregadores mudar drasticamente do nada. Ao mesmo tempo, os responsáveis por crianças – sobretudo as mulheres – experimentaram uma enorme sobrecarga de tarefas em casa, à medida que as escolas e as creches fechavam.
A partir deste ponto, os destinos dos três grupos divergiram. O primeiro, sem seus empregos, viu-se lutando por um salário e um senso de propósito – mas acabou dando um jeito nas contas de várias maneiras, desde com a ampliação do seguro-desemprego até o perdão das dívidas com empréstimos estudantis.
Aqueles do segundo, que antes costumavam passar mais tempo com a “família” do trabalho do que com as de verdade, passaram a trabalhar dentro das suas próprias casas. Com menos deslocamentos e interrupções irritantes no local de trabalho (embora muitas vezes com uma presença maior dos filhos), muitos descobriram que tinham tempo livre – para assar pão, brincar com animais de estimação adotados durante a pandemia ou dar conta de tarefas domésticas que só aumentavam.
Para o terceiro grupo – com uma parcela provavelmente maior de negros e latinos e menores salários –, restou o trabalho presencial. Alguns receberam aumentos temporários, que, em sua maioria, acabaram sendo revogados meses depois. Eles tinham mais chances de se expor ao coronavírus – e a estar entre os mais de um milhão de americanos que morreram de covid-19.
Tudo isso – os lockdowns, a doença, a mudança repentina na rotina doméstica e como ou se trabalhamos – resultou em um enorme abalo psicológico, levando muitos a se perguntar por que o trabalho é um motivo de preocupação tão grande em nossa psique.
“Foi uma oportunidade de verdade – uma oportunidade não desejada – de analisar a correria louca que muitos de nós acabamos considerando ser normal”, disse Kate Shindle, presidente da Actors’ Equity Association, que representa os trabalhadores do teatro, setor bastante abalado pela pandemia.
Então, quando a economia voltou a se recuperar de forma inesperada, os americanos estavam dispostos a mudar. Como muitos reconheceram, uma coisa era buscar sentido no trabalho, mas outra era ver nossas vidas subordinadas a ele – e para quê? Um salário que não valia a pena? Um trabalho que podia literalmente matá-lo?
“Talvez as proteções trabalhistas fracas tenham realmente impedido as pessoas de analisarem o papel do trabalho em suas vidas”, disse David Blustein, autor de The Importance of Work in an Age of Uncertainty (A importância do trabalho em uma era de incertezas, em tradução livre) e professor da Escola de Educação e Desenvolvimento Humano do Boston College. “Talvez a ética do trabalho americana fosse uma forma de sobrevivência.”
Como os trabalhadores se ajustaram
Os Estados Unidos têm um histórico longo de conflitos trabalhistas. Não nos deram facilmente a jornada de trabalho de oito horas, o salário mínimo e as leis que protegem a organização sindical. Isso veio depois de décadas de greves e de defesa dos direitos dos trabalhadores. Em conjunto, medidas como essas ajudaram a trazer prosperidade e segurança aos profissionais após a Segunda Guerra Mundial.
Mas, em poucas décadas, os interesses empresariais foram reafirmados. Quando o presidente Ronald Reagan demitiu os controladores de tráfego aéreo em greve em 1981, isso indicou uma profunda mudança no equilíbrio de poder. Com o aumento da desigualdade, as condições de trabalho pioraram. O número de homens com salários altos que dedicam mais de 50 horas por semana ao trabalho aumentou bastante; aqueles com diploma universitário passavam mais tempo no trabalho do que os profissionais sem o ensino médio.
Outros, principalmente aqueles com salários mais baixos, trabalhavam em esquemas de contrato temporário, o que tornava inviável planejar como cuidar dos filhos ou saber se haveria dinheiro para a creche. As proteções dos trabalhadores americanos ficam para trás das de outros países industrializados, com o salário mínimo americano, ajustado pela inflação, atingindo o pico quando os Bee Gees ainda estavam nas paradas de sucessos.
Hoje, ainda não existe uma legislação nacional que garanta um único dia de férias remunerado ou de licença médica. Uma pesquisa da Gallup de 2019 descobriu que, quando você mede tudo, desde salário até controle sobre o ambiente de trabalho, segurança e felicidade, apenas quatro em cada dez americanos empregados poderiam ser descritos como tendo um “bom emprego”.
E percebemos que queríamos um desses, mais do que qualquer um de nós poderia imaginar.
Várias vezes, quando as pessoas conversam com jornalistas, inclusive comigo, a respeito das motivações para as mudanças em suas vidas profissionais desde março de 2020, elas dizem que gostavam de receber salários melhores quando trocavam de empregador. Porém, mais do que isso, elas gostariam de ter um controle maior sobre suas condições de trabalho.
Peter Contreras, ao comparar seu emprego na gerência de uma loja de móveis com o seu atual no setor de vendas, mencionou a remuneração melhor, o deslocamento mais fácil – e um chefe que entende os ajustes necessários no horário de trabalho por conta de compromissos com os filhos. Colton Smith trabalhava em um banco de investimento em Nova York quando a pandemia começou.
“Você fica muito tempo sozinho no apartamento, vendo a família e os amigos pelo FaceTime”, ele disse ao falar da decisão de deixar o emprego no ano passado e cruzar o país de bicicleta. “E começa a lembrar do que é importante na vida.” Ele agora está em busca de um emprego no setor de realidade aumentada.
Lindsay Scola pediu demissão de seu emprego em uma agência de talentos de Los Angeles para dar consultoria a celebridades e empresas sobre investimentos com impacto social e ativismo. “Antes da pandemia, eu era apenas uma daquelas pessoas correndo o máximo que podia”, disse ela. Ser a própria chefe, disse, permitiu que ela “organizasse a vida de uma maneira que funcionasse melhor para mim”.
Outros decidiram manter seus empregos – mas lutam para torná-los melhores. A pandemia desencadeou algumas campanhas sindicais de grande destaque, com o surgimento de novas lideranças. Quando o gerente assistente de um armazém da Amazon, Christian Smalls, foi demitido depois de organizar uma paralisação dos funcionários para protestar contra a falta de proteções contra a covid-19, ele fundou um sindicato que ganhou a primeira votação de autorização bem-sucedida em um dos armazéns da empresa. (O fundador da Amazon, Jeff Bezos, é dono do Post.)
Embora alguns trabalhadores tenham reunido forças por conta de empregos que se tornaram insuportáveis durante a pandemia, outros se uniram devido aos salários que não receberam e às condições de trabalho abaixo do padrão. É o caso das strippers do bar Star Garden, em North Hollywood, que organizaram uma eleição de reconhecimento sindical – embora quase todas as cédulas agora estejam sendo contestadas pela administração. “Os clubes fecharam e fomos deixadas à nossa própria sorte para ganhar dinheiro e nos sustentar. Então, muitas dançarinas se uniram”, disse Velveeta – que pediu para usar seu nome artístico –, uma dançarina do bar. “Tudo isso surgiu mesmo por conta da pandemia.”
Onde os sindicatos já estavam presentes, eles pressionaram por melhores salários e condições de trabalho. Enfermeiros em Minnesota fizeram uma greve de três dias em setembro, pedindo não apenas um aumento salarial, mas também o fim das equipes reduzidas que, segundo eles, colocavam a vida dos pacientes em risco. E o acordo provisório que provavelmente levou a uma greve dos trabalhadores ferroviários do país se resumiu a alterar um sistema que penalizava os profissionais por tirar uma folga, mesmo em caso de emergências.
Embora esses esforços em grupo tenham recebido atenção, mais americanos ainda se revoltaram contra a cultura do trabalho individualmente. Basta lembrar do suposto fenômeno da desistência silenciosa. Mobilizando colegas pelo YouTube e pelo TikTok, a geração Z proclamou que faria seu trabalho apenas durante o expediente oficial e se negaria a aceitar tarefas extras para avançar na carreira. Alguns ficaram horrorizados, mas como outros observaram, essa “desistência” era o que se costumava chamar de “trabalhar em tempo integral”.
E os recém-chegados ao mundo do trabalho remoto? Conforme as empresas divulgam os planos de retorno ao escritório, elas têm se deparado com uma resistência expressiva por parte dos funcionários, que dizem estar mais felizes e produtivos trabalhando de casa. Cada vez mais, os chefões das empresas estão defendendo não cinco, mas três dias de trabalho presencial. Veja o caso da gigante das finanças BlackRock, onde a “postura rígida” do CEO Larry Fink para os funcionários é um esquema híbrido. Esta é uma vitória enorme para muitos trabalhadores de escritório – e quase ninguém poderia ter imaginado isso em fevereiro de 2020.
De olho no passado e no futuro
A nova ordem ainda enfrenta obstáculos. Um número crescente de empresas – inclusive a Meta – está demitindo funcionários, enquanto outras estão desacelerando as contratações e aumentando as expectativas de desempenho dos atuais empregados. Jerome H. Powell, presidente do Federal Reserve, disse que é possível que as taxas de juros continuem a aumentar, mas reconheceu que “muito provavelmente haverá alguma flexibilização das condições do mercado de trabalho”.
Os empregadores estão se sentindo claramente mais fortes. O Goldman Sachs insiste que todos os funcionários voltem a trabalhar presencialmente cinco dias por semana, sem exceções. Apesar de toda a atenção dada à nova organização sindical em locais como a rede Starbucks, a adesão no geral continua a diminuir.
Pessimistas lembrarão que isso não é novidade. A década de 1970 também viu surgir o ativismo sindical e o questionamento do significado do trabalho – foi a década que transformou o livro “De que cor é o seu paraquedas?: Guia prático para encontrar emprego e mudar de carreira” em um best-seller -, mas pouco tempo depois eles caíram por terra na década de 1980.
No entanto, há diferenças cruciais entre aquele momento e hoje. Uma maior presença do trabalho remoto, provavelmente em um formato híbrido, quase com certeza veio para ficar, diz Nick Bloom, professor de economia da Universidade Stanford, que estuda o tema há décadas. Os trabalhadores querem isso, os avanços tecnológicos continuam a facilitar o modelo e as empresas que o proíbem completamente têm chances de se encontrar em uma situação de desvantagem.
E embora as leis trabalhistas precisem ser atualizadas para a nossa nova realidade, desde proteções para funcionários remotos (sim, você deve ser pago pelo e-mail que enviou depois do jantar!) a mudanças há muito desejadas para fortalecer a organização sindical, os estados estão começando a entrar em ação. A Califórnia, por exemplo, aprovou recentemente uma legislação para criar um conselho que rege as condições de trabalho e remuneração dos trabalhadores de fast-food.
Talvez mais importante ainda, as tendências demográficas favorecem as pessoas no mercado de trabalho hoje. Em 1990, cerca de 20% delas tinham mais de 50 anos. Agora, um em cada três trabalhadores se enquadra nesse grupo.
Um relatório recente publicado no site do Escritório Nacional de Pesquisa Econômica dos EUA (NBER, na sigla em inglês) descobriu que uma grande porcentagem dos trabalhadores que saíram do mercado de trabalho durante a pandemia eram baby boomers – com algumas aposentadorias motivadas pela pandemia. Os principais beneficiários? Profissionais mais jovens, que agora têm menos dificuldade para serem promovidos.
Os últimos dois anos e meio provocaram um imenso alvoroço e ainda vamos passar por dificuldades para processar as mudanças resultantes deles. Mas é inegável que algumas dessas mudanças eram necessárias há muito tempo. É altamente improvável que os trabalhadores esqueçam o que aprendemos: ou seja, que os nossos empregos são muito mais flexíveis do que pensávamos. E depois de décadas de subserviência ao trabalho, os americanos finalmente deram passos significativos para deixá-lo em uma posição adequada em nossas vidas. Agora, nossa missão é mantê-lo neste lugar. /TRADUÇÃO DE ROMINA CÁCIA
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