Térmica em Goiás recebe receita milionária sem gerar energia há cinco anos

De janeiro de 2013 a setembro de 2021, a usina recebeu R$ 109,3 milhões – sendo que só entregou energia em cerca de metade desse período.

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Foto do author Marlla Sabino

BRASÍLIA - Num momento em que consumidores de energia elétrica vêm sendo penalizados por medidas com custos bilionários, o caso de uma usina termelétrica em Anápolis, Goiás, chama atenção por simbolizar as distorções do setor. A termelétrica Daia, que pertence à empresa Usina Termelétrica de Anápolis Sociedade Anônima, deve ter o contrato encerrado neste mês, tendo sido paga mensalmente pelos consumidores mesmo sem gerar eletricidade há quase cinco anos e acumular mais de R$ 80 milhões em multas.

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O direito de a empresa manter os contratos e, portanto, receber a receita fixa, foi garantido na Justiça por meio de liminares de 2017 e 2020. Em tese, seriam decisões provisórias, mas o caso nunca teve o mérito julgado, e tudo indica que os contratos serão finalizados sem que tenha havido uma decisão definitiva.

Movida a diesel, a usina foi uma das vencedoras do primeiro leilão de energia nova de 2005. À época, o empreendimento já estava pronto e havia sido contratado anteriormente para três anos; mas, pelo pouco uso dos equipamentos, foi autorizada a participar da competição. Por meio do novo contrato, a empresa se comprometeu a entregar energia por 15 anos, no período entre janeiro de 2008 e dezembro de 2022, mas desde outubro de 2017 a empresa não apresenta geração de energia.

Usina termelétrica Luís Carlos Prestes, da Petrobras, em Três Lagoas (MS). Foto: Agência Petrobras  Foto:

A reportagem apurou que, nos dois últimos anos, o Operador Nacional do Sistema Elétrico (ONS) deu ordem para o funcionamento da usina em ao menos cinco meses, mas não houve qualquer resposta sobre os pedidos. Na internet, há poucas informações sobre o empreendimento. No site oficial, só há disponível o endereço e um telefone para contato.

Pelo modelo do leilão, a usina tem direito a receber uma receita fixa, paga mesmo quando desligada, e a uma parcela variável e adicional quando é chamada a suprir a demanda de energia no País.

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A Justiça garantiu à UTE Daia o pagamento da receita fixa. De acordo com dados obtidos pela reportagem, a receita mensal da usina em 2022 é de R$ 1,3 milhão – o que é suficiente para bancar o desconto de mais de 70 mil famílias beneficiadas pelo programa Tarifa Social. Os números são mais expressivos ao considerar os últimos anos. Apenas no ano passado, o montante chegou a R$ 14,9 milhões. De janeiro de 2013 a setembro de 2021, a usina recebeu R$ 109,3 milhões – sendo que só entregou energia em cerca de metade desse período.

Os questionamentos judiciais envolvendo a UTE Daia se arrastam na Justiça desde 2012, quando a empresa apresentou pedido de recuperação judicial. O argumento era o de que a usina já havia gerado energia por mais horas do que deveria durante a vigência dos contratos e do que estava previsto no leilão, o que teria levado a um desequilíbrio econômico e financeiro por custos adicionais para manutenção do empreendimento. A tese considera o Índice Custo Benefício, previsto em estudos da Empresa de Pesquisa Energética (EPE) para nortear as expectativas de geração de uma usina em leilões.

No caso da termelétrica, o índice foi de 331.712 megawatts-hora (MWh) e 8.846 horas. De fato, a usina apresentou uma geração maior de 2008 a 2015, de 477.152 MWh, o que corresponde a 17.780 horas de operação, mas foi devidamente remunerada pelos serviços. O entendimento no setor elétrico, no entanto, é o de que os cálculos são feitos apenas como simulações para classificar os empreendimentos no leilão, de forma que não existe nenhuma previsão nos contratos sobre o que poderia ser considerado um “limite” de geração de uma usina.

Essa análise, porém, nunca foi feita pelo Judiciário. Desde então, em uma verdadeira guerra judicial, a empresa se ampara em uma série de liminares concedidas nos últimos anos para continuar a obter receitas e afastar a obrigação de pagar as penalizações pela falta de atendimento às distribuidoras. De 2014 a 2021, as multas não pagas somam R$ 82,8 milhões, segundo dados obtidos pela reportagem, por não apresentar geração ou contratos de compra de energia que pudessem fazer frente aos compromissos assumidos.

Procurado pela reportagem, o sócio-administrador da usina, José Alves Neto, afirmou que os problemas começaram em 2008, logo no início do novo contrato, devido a um erro da Aneel na fórmula do cálculo da receita que a empresa receberia para custear o combustível.

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Segundo ele, a usina gerou energia por anos apesar de os recursos não serem suficientes para bancar a operação, o que levou a uma série de dívidas com instituições bancárias e, junto com outros fatores, resultou no pedido de recuperação judicial em 2012, quando os credores executaram as dívidas. Mesmo a recontabilização não foi suficiente para cobrir os prejuízos.

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“A usina não entrou em operação [nos últimos anos] pois é prejuízo. O valor do meu CVU [Custo Variável Unitário] não cobre nem o óleo diesel. Entrei com ação contra o sistema para que não operasse se dentro desse cálculo o CVU resultasse em prejuízo. Estou sob liminar, não recebo receita variável, recebo receita fixa, como todos quando estão em stand-by”, afirmou.

“Enquanto a usina estiver em recuperação judicial e o preço for deficitário, ela não precisa operar. Tenho uma ação judicial que cobre isso, não estou fazendo aleatoriamente. Se estivesse, já teria desligado. Gostaria de estar operando e ganhando dinheiro, como todo empresário, mas não vou entrar para aumentar meu problema em milhões de reais porque o governo mudou a concorrência, alterou as regras no meio do caminho, cometeu erros e não assume.”

O questionamento sobre a atualização dos valores dos contratos também foi questionada judicialmente. Em ação contra a Cemig Distribuição e a Aneel, os advogados do empreendimento alegam que existe uma controvérsia na definição do índice de atualização monetária a ser aplicado ao custo do combustível de térmicas acionadas a óleo diesel após maio de 2006.

De acordo com a empresa, o contrato estabelece que a atualização deveria ser calculada conforme a metodologia prevista na norma jurídica prevista em portaria do Ministério de Minas e Energia de 2005. A regra, porém, foi revogada em 2006, mas, de acordo com a UTE Daia, a norma antiga ainda seria aplicada, o que é questionado. O argumento é que o critério de reajuste deveria ter sido substituído pela inflação oficial, o IPCA.

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Procurada pela reportagem, a Aneel informou que os índices vigentes no contrato são os previstos na portaria de 2005, “porque a Portaria nº 112/2006 não retroagiu seus efeitos aos leilões anteriores à publicação”. Questionado sobre eventuais erros na norma, a agência reguladora informou que a elaboração e publicação das portarias foram de responsabilidade do Ministério de Minas e Energia (MME). Por sua vez, a pasta informou que, no seu papel de monitoramento do sistema elétrico brasileiro, vem acompanhando a questão junto à Aneel. Mas, por se tratar de processo judicial, não possui informações adicionais sobre o assunto.

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