Segundo a imprensa, o Ministério da Economia pretende adotar a fixação de teto para a dívida pública, com o objetivo de nortear a retomada da disciplina fiscal pós-covid-19. A medida, se confirmada, tende a ser confusa e pouco eficaz.
A confusão decorre da existência de vários conceitos de dívida pública, todos eles muito dependentes de critérios de apuração que nem sempre refletem a disciplina fiscal ou as decisões dos governos. Vejamos rapidamente três desses conceitos: Dívida Líquida do Setor Público Consolidado (DLSP), Dívida Bruta do Governo Geral (DBGG) e Dívida Líquida do Governo Geral (DLGG).
A DLSP é o balanceamento entre as dívidas e os créditos do setor público não financeiro e do Banco Central (BC) junto ao sistema financeiro (público e privado), setor privado não financeiro e resto do mundo. O problema dessa métrica é que sua evolução depende de parâmetros nominais, como taxa de inflação e taxa de câmbio, que muitas vezes estão fora do controle da política fiscal.
Já a DBGG abrange o total dos passivos de responsabilidade do governo federal, dos governos estaduais e dos governos municipais, ou seja, do setor público não financeiro, não incluído o BC. Seu grande problema é deixar de considerar os ativos líquidos dos governos. Por exemplo, se o Tesouro Nacional, por precaução, resolver vender ao mercado mais títulos públicos do que suas necessidades de rolagem e de financiamento de seus gastos, acumulando disponibilidade na conta única no BC, a DBGG subirá, sem que tenha havido qualquer deterioração fiscal. Mudanças da taxa de câmbio, mais do que no caso da DLSP, dado seu efeito sobre a dívida pública em moeda estrangeira, terão impacto nesse indicador.
No caso brasileiro, a confusão de critérios é ainda maior, porque o governo, diferentemente de outros países, exclui da DBGG os títulos que estão parados em carteira no BC. Por essa razão, os analistas externos costumam utilizar a definição de DBGG do Fundo Monetário Internacional (FMI), que não faz tal dedução.
Além disso, a DBGG está inflada pela emissão de títulos públicos que nada têm a ver com déficits fiscais. Montante equivalente a 26% do PIB encontra-se no BC, na forma de papéis em carteira e operações compromissadas. Tais títulos foram emitidos para fazer política monetária, comprar reservas ou como contrapartida de equalizações cambiais. Se o Congresso Nacional autorizar o BC a receber depósitos voluntários remunerados dos bancos, boa parte das operações compromissadas poderia desaparecer e a DBGG (critério governo brasileiro) despencaria. Claramente, não é uma boa métrica para a política fiscal.
Resta a DLGG, que exclui da DBGG (critério FMI) os ativos líquidos dos governos, como o caixa do Tesouro no BC e os créditos em bancos oficiais e fundos e programas. Esse é o melhor indicador, inclusive por sua alta correlação com o prêmio de risco soberano, como mostram vários estudos internacionais. Mas até a dívida líquida pode variar em decorrência das flutuações cambiais e de operações dos governos com seus bancos oficiais, como ocorreu no governo Dilma.
A Constituição já tem dois excelentes freios para evitar a irresponsabilidade fiscal. O primeiro é o teto de gastos, que poderá ser flexibilizado a partir de 2027 e que, se não for cumprido, prevê uma série de medidas restritivas ao gasto público. O segundo é a regra de ouro, que impede a emissão de títulos públicos para financiar gastos correntes, nestes incluídos os juros reais. Ambos necessitam, no devido tempo, de flexibilização e aprimoramento, mas não podem ser extintos.
Já há proteção constitucional suficiente para impedir a irresponsabilidade fiscal. O importante é aprovar reformas que viabilizem o cumprimento desses dispositivos, como a administrativa e a tributária.
O resto é tentar reinventar a roda.
* ECONOMISTA, DIRETOR-PRESIDENTE DA MCM CONSULTORES, FOI CONSULTOR DO BANCO MUNDIAL, SUBSECRETÁRIO DO TESOURO NACIONAL E CHEFE DA ASSESSORIA ECONÔMICA DO MINISTÉRIO DA FAZENDA
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