Milton Friedman tem uma grande importância na vida pessoal e política do provável próximo presidente da Argentina. As ideias de Javier Milei, que o levaram à vitória na eleição argentina, são bastante influenciadas pelo economista defensor do livre mercado mais famoso do século 20.
Friedman influenciou tanto as opiniões de Milei sobre a dimensão ideal do Estado (minúscula), como o seu papel na economia (inexistente). A admiração de Milei é tão profunda, que ele deu a um de seus quatro cães o nome do economista. O ex-professor de economia disse à Economist em uma entrevista recente que Milton e seus outros cães, todos com nomes que homenageiam economistas, formam “o melhor comitê estratégico do mundo”.
Entre as propostas de Milei, influenciadas por Friedman, a de maior alcance é a dolarização da economia. Isso implicaria na substituição do peso argentino pelo dólar e no fim do Banco Central da Argentina, o qual Milei chama de “a pior coisa do universo”. Ele exagera, mas apenas um pouco.
A economia da Argentina está em farrapos. A inflação anual alcançou 142% em outubro. O Banco Central do país esgotou suas reservas em dólares. O valor do peso em relação à moeda americana foi reduzido pela metade desde o início do ano. Resumindo: chegou a hora do pensamento radical. Infelizmente, a dolarização tem mais chances de ser uma maldição do que uma solução para os problemas da Argentina.
Quando um país atrela sua economia à moeda de outro, desiste de criar sua própria política monetária. As taxas de juros seriam determinadas pelo Federal Reserve, tornando-as mais previsíveis e praticamente impossíveis de se fraudar. Para um país com um histórico tão duvidoso como o da Argentina, isso amenizaria diversas dores de cabeça. A maioria dos argentinos usa dólares mesmo. Tornar esta situação oficial permitiria às pessoas evitar o incômodo de converter a moeda americana em pesos e vice-versa.
As taxas de câmbio do dólar, a moeda mais negociada do mundo, não seriam abaladas por nada que acontecesse na Argentina, uma economia razoavelmente pequena, o que significa que os valores da moeda não oscilariam mais. É uma fórmula que, pelo menos durante um tempo, manteve as coisas relativamente estáveis no Equador após a dolarização do país em 2000.
Na realidade, a maioria dos governos toma empréstimos porque existe uma pressão enorme para fazer isso. Os credores precisam de pagamentos. As burocracias precisam ser reestruturadas. Os partidos da oposição pressionam o governo em exercício a gastar. E, a maior pressão de todas: os eleitores esperam certos serviços do Estado. A ausência das impressoras não é suficiente para prevalecer sobre essas questões.
Quando um desastre ocorre, as coisas ficam assustadoras numa economia dolarizada. Não há um banco central para atuar como credor e última esperança, seja para o governo ou para o sistema bancário. Defaults, portanto, tornam-se muito mais prováveis. Os bancos que poderiam ter sido salvos com liquidez de emergência quebram, e o governo não tem dólares para cobrir os depósitos, deixando milhões sem um tostão.
Além disso, a maior parte dos empréstimos poderia estar sujeita à lei americana até lá, deixando o governo em desvantagem em quaisquer negociações de reestruturação.
O principal atrativo, no entanto, é que a Argentina seria impedida de imprimir dinheiro. Friedman era um crítico dos bancos centrais, convencido de que a maioria era fraca demais para manter a inflação sob controle, pois isso significaria aguentar firme a pressão dos políticos para facilitar o pagamento das contas ou para deixar a economia aquecida na época das eleições.
Como Milei frisa sem pestanejar, o Banco Central da Argentina tem sido um dos mais irresponsáveis. A dolarização deixaria as impressoras decididamente fora de alcance. Para os defensores da ideia, isso indicaria que seria apenas uma questão de tempo até que a influência do Estado diminuísse e a longa batalha contra a inflação chegasse ao fim.
Leia mais
No entanto, este argumento tem um problema: ele exige uma visão exageradamente cor-de-rosa dos governos. Pressupõe que os políticos - conscientes de que já não podem recorrer ao banco central numa crise - reduzirão automaticamente seus empréstimos até um nível seguro. Isso seria verdade se a única razão pela qual os governos estivessem tomando empréstimos em excesso fosse a certeza de que o banco central iria socorrê-los.
Aliás, o Equador está encarando agora muitas das desvantagens da dolarização. Quando a política foi implementada, estabilizou os preços imediatamente. Mas também não conseguiu impedir os déficits fiscais do governo. Desde então, os formuladores de políticas têm apelado para formas cada vez mais criativas de financiar a dívida, levando o país a um acordo com o FMI em 2019.
A proposta de Milei
Um futuro no qual a Argentina se depara com um desastre é mais previsível do que aquele em que os formuladores de políticas vão até o fim com as decisões necessárias para ter sucesso com a dolarização. O déficit fiscal tem sido um problema há quase um século. O país foi socorrido 22 vezes pelo FMI nos últimos 65 anos, deixando o fundo tão exausto que desistiu de exigir que o país alcançasse um nível de equilíbrio.
Uma série de governos de esquerda criou um amplo Estado de bem-estar social e uma imensa burocracia. Milei promete cortes equivalentes a 15% do PIB, para um setor público responsável por 38% do PIB, mas tem dificuldades em definir de onde eles virão.
Há muitos outros problemas. Uma questão importante é a forma como o governo de Milei iria conseguir os US$ 40 bilhões que sua equipe acredita serem necessários para dolarizar a economia. Atualmente, a Argentina não consegue nem mesmo pagar o FMI, para quem deve US$ 44 bilhões. Depois de ficar sem dólares, o banco central do país agora está torrando o yuan que pegou emprestado da China. Milei sugeriu a venda de empresas estatais e de dívida pública num fundo offshore para levantar o capital necessário. É difícil imaginar que haverá muitos interessados.
O novo presidente, que assume o poder em dezembro, começará numa situação terrível. Esqueçam a ideia de encontrar dinheiro para permitir a dolarização. Um número crescente de economistas considera que o país está mais uma vez insolvente, o que significa que será quase impossível pagar as dívidas atuais. Os preços dos títulos do país refletem o fato de os mercados financeiros estarem apostando em outra reestruturação da dívida. Para poder começar do zero, a Argentina talvez precise entrar em moratória, não se dolarizar.
Os comentários são exclusivos para assinantes do Estadão.