Administrar o órgão que regula e audita as bolsas de valores chinesas é um trabalho arriscado. Qualquer turbulência mais grave é capaz de pôr fim à sua carreira — ou coisa pior. Em 7 de fevereiro, após semanas de instabilidade nos mercados de ações da China, o diretor da Comissão Chinesa de Regulação de Obrigações (CCRO) foi subitamente demitido e substituído. E ele não foi a primeira autoridade a cair depois de um período de preços de ações em baixa. Seu antecessor, Liu Shiyu, foi retirado em 2019 e posteriormente investigado por corrupção. Xiao Gang, que chefiava o organismo antes disso, foi tratado como bode expiatório em razão da quebra de 2015.
Antes de ser dispensado, Yi deveria saber que estava em maus lençóis. Já neste ano, as ações das bolsas chinesas e de Hong Kong perderam mais de US$ 1 trilhão em valor de mercado. Em 5 de fevereiro, o Índice Composto de Xangai despencou ao menor valor em cinco anos. Em geral, o índice caiu em mais de um quinto desde o início de 2022. E, por pior que o desempenho das ações chinesas tenha sido ao longo da maior parte de suas três décadas de história, a queda atual parece diferente.
Isso ocorre porque as perspectivas econômicas da China estão mais sombrias hoje do que em qualquer momento da história recente. O estado desastroso do mercado imobiliário é o maior problema. Preços e vendas têm caído há mais de um ano; formuladores de políticas não conseguiram evitar a correção. Durante o colapso do mercado de 2015, os pequenos investidores tinham um slogan: “Vendam suas ações e comprem imóveis”. Ninguém mais entoa essas palavras hoje em dia. Para piorar ainda mais as coisas, os planos de resgate não estão à altura da tarefa.
Para muitos cidadãos, a sensação é de que a China jamais emergiu verdadeiramente de seus lúgubres anos de covid-zero. Uma recuperação econômica esperada para 2023 fraquejou durante a primeira metade do ano, deixando o país mergulhado em deflação. O pessimismo tem nublado os mercados desde então.
O banco Goldman Sachs pediu recentemente para uma dúzia de seus clientes locais — administradoras de ativos, seguradoras e o pessoal do capital privado — classificar o quanto sua expectativa em relação à China é negativa em uma escala de zero a 10, com zero sendo igual à sua perspectiva durante os lockdowns de 2022. Uma metade deu zero ao país; a outra, 3.
A situação deveria preocupar o líder do país, Xi Jinping, por várias razões. Uma delas é o fato de mais de 200 milhões de chineses terem ações e as autoridades arriscarem assumir a culpa. Poucas coisas enfurecem mais os guerreiros chineses nas redes sociais do que uma turbulência no mercado. Uma postagem recente sugeriu que entregas de comidas à Bolsa de Valores de Xangai estavam sendo revistadas em busca de materiais perigosos, como bombas ou veneno.
Muitos acudiram à conta de rede social da Embaixada dos Estados Unidos para se queixar. E uma torrente de postagens enfurecidas foi direcionada ao jornalista Hu Xijin, uma personalidade nacionalista dos meios de comunicação, que com frequência tenta gerar apoio para ativos chineses. Ele disse no ano passado que pularia de um prédio se perdesse dinheiro demais em ações — não pela perda em si, mas por causa do vexame. Quando o Índice Composto de Xangai baixou ao menor valor em cinco anos houve quem o aconselhasse a cumprir sua promessa.
Outra razão para Xi se preocupar é que os mercados refletem a percepção da China e de sua liderança no exterior. Até há relativamente pouco tempo, investidores globais estavam apaixonados pelas bolsas chinesas. Sua inclusão no principal índice de mercados emergentes da MSCI, em 2018, foi bem recebida por administradores de ativos e elogiada como um passo adiante em tentativas de tornar os mercados chineses de ações mais internacionais. É desnecessário dizer que essa animação desapareceu desde então. As políticas covid-zero prejudicaram a reputação da China. O apoio de Xi a Vladimir Putin apesar de sua invasão à Ucrânia causou mais estrago. Mas nada, a maioria dos investidores concorda, prejudicou Xi mais do que permitir à crise imobiliária arrastar-se por anos.
Apesar das autoridades chinesas ainda esperarem atrair investimento, os investidores estrangeiros estão fugindo. Eles têm reduzido sua presença há meses, vendendo US$ 2 bilhões em ações apenas em janeiro. A liquidação tem sido tão severa que alguns investidores estão encerrando atividades. O fundo de hedge Asia Genesis, de Cingapura, anunciou em janeiro que fecharia as portas após a inesperada queda de preços.
A maioria dos investidores tem pouca esperança de uma recuperação no futuro próximo. Um gerente de investimento de um banco estrangeiro em Xangai sugere que o mercado de ações pode se estabilizar nas próximas semanas. De fato, em 6 de fevereiro, o CSI 300, um índice de empresas, terminou o dia com valorização de mais de 3%, seu melhor desempenho em mais de um ano. Mas o baixo nível de confiança persistirá até que líderes avancem com um plano suficientemente ambicioso para consertar o mercado imobiliário. Isso pode levar anos, nota o gerente.
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O dinheiro manda
Agências reguladoras emitiram uma série de declarações a respeito da estabilização do mercado desde o fim de janeiro. Mais recentemente, em 6 de fevereiro, o Central Huijin, braço doméstico do fundo soberano da China, indicou que começaria a comprar ações para ajudar a estabilizar o mercado. Em 4 de fevereiro, a CCRO afirmou que evitaria movimentos anormais nos negócios, ao mesmo tempo que combateria vendas a descoberto “maliciosas”.
Esses anúncios inquietaram as administradoras de fundos. Investidores estrangeiros precisam usar ferramentas de proteção, como vendas a descoberto, para operar normalmente. Os rumores relativos a ações fiscalizatórias os fizeram, portanto, retirar-se dos mercados chineses caso eles não conseguissem mais proteger suas posições. Alguns também estão se retirando com medo de seus operadores poderem ser detidos e acusados de crimes financeiros.
Investidores estrangeiros e domésticos aguardam um fundo de resgate do Estado — a respeito do qual surgiram apenas sugestões, mas nada além. Em 23 de janeiro, a Bloomberg noticiou que um fundo de estabilização armado com aproximadamente 2 trilhões de yuan (US$ 280 bilhões, ou cerca de 3% da capitalização das bolsas de valores chinesas) poderia começar a comprar ações. O “time nacional”, um punhado de administradoras de fundos pertencentes ao Estado, que incluem o Central Huijin, com frequência intervém durante crises.
Em 2015, ele absorveu cerca de 6% de toda a capitalização do mercado por meio de compras de ações individuais; mais recentemente, essas firmas de investimento compraram fundos de índice para evitar alegações de uso de informações privilegiadas quando os nomes de seus alvos vazam. Apesar dos investidores terem visto sinais do time nacional em operação nas semanas recentes, até aqui eles provavelmente compraram menos de 100 bilhões de yuan em ações — muito abaixo do montante necessário para produzir uma reviravolta séria nos mercados.
O governo central poderá eventualmente intervir com um pacote de resgate maior, talvez após o feriado do ano-novo chinês, que fechará mercados por uma semana a partir de 12 de fevereiro. Mas Xi também vislumbra reformas profundas em relação à maneira que as bolsas de valores chinesas operam e ao modo que investidores avaliam as empresas que fazem negócios por lá.
Uma parte do plano é mudar os mercados da China de um foco em aumento de capital para se dedicar a ajudar os investidores a preservar sua riqueza. Essa distinção com frequência estarrece observadores estrangeiros dos mercados. Bolsas de valores devem servir empresas famintas por capital e investidores comuns? Em teoria, sim. Mas na China os mercados são diferentes, já que com frequência também servem a objetivos do Estado.
Em anos recentes, por exemplo, um dos principais focos de Xi tem sido abrir mercados de capitais para indústrias como inteligência artificial, tecnologia verde, robótica e semicondutores como parte de um esforço para competir com os EUA e dominar várias indústrias de tecnologia avançada. O governo chinês também tem favorecido empresas nesses setores listando-as dentro do país, em vez de mercados exteriores, o que ocasionou a maior onda de ofertas públicas iniciais (IPOs) e ofertas subsequentes na história da China.
De fato, a resposta foi tamanha que transformou o país no maior mercado de IPOs no mundo durante vários anos. Empresas chinesas levantaram mais capital em bolsas de valores locais entre 2020 e 2023 do que em toda a década anterior.
Isso ajudou Xi a alcançar suas metas. Mas também drenou liquidez de mercados secundários, onde o investimento em valor fica guardado. Empresas que com frequência abriram o capital com avaliações apreciadas viram o valor de suas ações cair. Agora, as agências reguladoras querem mudar para um mercado mais “orientado para o investidor”, que protege os investidores médios. Isso significa menos IPOs e mais liquidez direcionada ao mercado secundário.
A história se repete
Os mercados chineses já atravessaram um ciclo parecido. Em 2012, agências reguladoras cessaram os IPOs na esperança de que o excesso de liquidez sustentasse os preços das ações. Como consequência, nenhuma empresa abriu capital em 2013, apesar de centenas terem entrado na fila da oferta para na esperança de levantar fundos. Os IPOs foram retomados em 2014.
No ano seguinte, as bolsas de valores se lançaram num frenesi histórico que culminou numa quebra dramática. A experiência prejudicou a posição tanto dos mercados de capital chineses quanto de suas agências reguladoras. Conforme as autoridades tentam novamente tornar os mercados mais amigáveis aos investidores, os designadores de capital estarão supremamente cientes a respeito do que ocorreu anteriormente.
Outra parte do plano a longo prazo do governo chinês é elevar o valor de mercado de empresas pertencentes ao Estado (EPE). Apesar de já dominarem os mercados chineses, essas empresas são avaliadas apenas a metade do nível de empresas não estatais de tamanho similar. Isso ocorre porque as EPEs são vistas por investidores como operadoras desajeitadas, mais leais às autoridades do partido do que aos acionistas. Os formuladores de políticas devem, portanto, propor a criação de um “sistema de avaliação com características chinesas” para impulsionar os preços de suas ações.
Um sistema desse tipo teria foco em “educar” investidores a respeito dos papéis sociais mais elevados, como reduzir o desemprego durante contrações, que os empreendimentos estatais têm dever de desempenhar. Mas também envolveria reformas internas nas próprias EPEs. Gerentes fiéis ao Estado historicamente importaram-se pouco com as relações de suas empresas com os investidores e não usaram retornos sobre o patrimônio como métrica interna para avaliar desempenho. Isso mudaria.
Enquanto isso, as agências reguladoras querem que as empresas paguem dividendos regulares e conduzam recompras de ações que recompensem investidores. Se forem bem-sucedidas, as reformas farão aumentar os preços das ações nas bolsas chinesas e também impulsionariam a riqueza do Estado por meio de suas participações nessas empresas.
Teria sido mais fácil operar essas mudanças quando o mercado de ações da China era menor e a economia do país ainda crescia rapidamente. A maioria das reformas exige que os investidores aceitem a posição de domínio do Estado no mercado, seja direcionando fluxos de capital ou tornando as EPEs mais palatáveis. Os investidores têm agora décadas de experiência negociando ações chinesas.
Eles se recordam das tentativas iniciais de listar e vender ações das EPEs, assim como do desejo de orientar capitais para partes específicas da economia — e foram testemunhas dos resultados. Em última instância, os investidores chineses podem ter pouca escolha a não ser retornar às bolsas de valores de seu país. Os investidores estrangeiros, contudo, têm outras opções. / TRADUÇÃO DE AUGUSTO CALIL
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