Considerada uma das mais poluentes do mundo, a indústria da moda tenta encontrar caminhos para entrar na rota da descarbonização e reduzir suas emissões. Uma das iniciativas que vem sendo colocada em prática é o projeto The Jeans Redesign, criada pela Fundação Ellen MacArthur, que trabalha com empresas e educação na transição para uma economia circular.
Criado em 2019, o projeto conta com cerca de 100 organizações, como Blue Design America, C&A, Primark, Zara e Guess. Juntas, elas já “reciclaram” mais de 1,5 milhão de pares de jeans, transformadas em peças duráveis, fáceis de serem recicladas e produzidas com materiais e processos seguros.
Hoje, a indústria da moda responde por 8% das emissões de gás carbônico na atmosfera, perdendo apenas para a indústria do petróleo. O poliéster é uma das fibras mais usadas no mercado da moda e é responsável pela emissão anual de 32 milhões das 57 milhões de toneladas globais produzidas pelo setor.
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O projeto estabelece um padrão mínimo para que o setor crie e produza peças alinhadas aos princípios da economia circular. O principal objetivo é redesenhar totalmente o jeans, desde o tecido até o material dos botões e os químicos da lavagem.
Os critérios como durabilidade, reciclabilidade e utilização de materiais e processos mais seguros também são partes importantes do projeto. Essas transformações visam um futuro mais sustentável para a indústria da moda, onde a preocupação com o meio ambiente e o compromisso social se sobressaem entre outros assuntos.
Em entrevista ao Estadão, Chloe Holland, gerente de programa na iniciativa de Moda da Fundação Ellen MacArthur, explica que essas diretrizes foram desenvolvidas com orientação de 80 especialistas da indústria, academia e ONGs, para incentivar “marcas, fábricas e líderes da indústria a transformarem a maneira como os jeans são projetados e fabricados”.
“Cerca de 100 organizações de mais de 25 países, incluindo marcas, fabricantes de vestuário e tecelagens, redesenharam jeans — indo além de discussões teóricas, aprendendo na prática, testando novas soluções e superando lacunas de inovação”, diz a executiva.
Chloe Holland explica que cada participante do projeto precisa pensar no jeans de acordo com as diretrizes do projeto, seguindo “o padrão mínimo” sustentado por definições comuns e estabelecidos com a intenção de serem “revisados e atualizados regularmente para impulsionar a indústria”.
Desde 2019 até 2021 as diretrizes foram atualizadas com insights de mais de 80 especialistas da indústria e ONGs, pois assim as marcas conseguiriam chegar ao resultado esperado. Chloe conta que em julho deste ano, as marcas participantes lançaram suas peças no mercado: “Desde o início do projeto cerca de 1,5 milhão de pares de jeans foram redesenhados, transformados em peças de vestuário mais duráveis, com fontes de materiais mais transparentes, mais fáceis de reciclar e feitas com matérias e processos seguros”.
A iniciativa The Jeans Redesign tem como principal objetivo trazer produtos redesenhados para o mercado e ao longo do projeto, os participantes relataram que os investimentos foram direcionados “à obtenção e certificação de conteúdo reciclado e orgânico”.
“A turca Maritaş Denim, por exemplo, relatou ter investido em estudos de pesquisa e desenvolvimento de alternativas para tecidos elásticos que permanecem difíceis de reciclar, enquanto a paquistanesa Artistic Milliners investiu em ativos fixos para melhorar sua reciclagem mecânica e o processo de classificação de fibras”, conta a gerente de Programa da Fundação Ellen MacArthur.
Na prática
A Blue Design, empresa do Paraguai que desenha, desenvolve, fabrica e comercializa jeans, participou do The Jeans Redesign. Desde o início, sempre teve como objetivo a busca pela qualidade de classe mundial em seus processos, respeitando o meio ambiente, além da saúde e segurança de quem trabalha com eles.
Durante a participação no projeto da Fundação Ellen McArthur, a empresa atingiu a maioria das diretrizes opcionais e todas as diretrizes obrigatórias, como a inclusão de no mínimo 98% de fibras à base de celulose, em peso, na composição têxtil total e um mínimo de 5% de conteúdo reciclado em média (por peso) na composição têxtil total de cada peça de roupa.
“Os jeans que fazíamos antes do programa já estavam livres de permanganato de potássio, alvejante, entre outras coisas. Sabíamos que a lavagem convencional não era o caminho a seguir e com a introdução do The Jeans Redesign, inovamos em detalhes removíveis, fios biodegradáveis, tecidos com certificados orgânicos e introdução de 5% de reciclagem na composição têxtil”, diz Jorge Bunchicoff, CEO da Blue Design America.
Durante o processo do projeto da Fundação Ellen McArthur, a Blue Design foi atendendo os requisitos obrigatórios e os opcionais, e em alguns até ultrapassou a margem esperada.
Ao Estadão, Bunchicoff conta que um dos feitos mais notáveis do processo foi “adquirir informações sobre estratégias para reduzir o consumo de água e o uso de produtos químicos”. Já em termos comerciais, o principal desafio foi produzir uma coleção verdadeiramente sustentável: “O custo é um pouco elevado e nem todas as marcas têm como arcar com ele”.
A aceitação do jeans redesenhado pelos clientes
Chloe Holland conta que a taxa média de venda dos produtos circulares foi de 78% nas marcas, o que, segundo especialistas, é maior do que a linha de base do setor: “Isso demonstra o poder de moldar o desejo de uma economia circular para a moda. Os fabricantes também relataram uma alta demanda por seus jeans redesenhados, com uma taxa de venda até 35% maior do que os jeans não circulares do catálogo”.
“Representa uma oportunidade significativa para aqueles que desejam aumentar suas ambições e tornar o design circular sua forma principal de fazer negócios”, conclui.
No Brasil, a C&A lançou, em 2020, a coleção Ciclos, uma linha de shorts, calças, saias e jaquetas jeans, certificada mundialmente pelo Cradle to Cradle - um selo de sustentabilidade. Isso significa ter condutas justas com trabalhadores e meio ambiente. “As peças não podem ter poliéster, trocamos por algodão; as etiquetas são feitas em silk, com tinta sustentável; o zíper, não tem banho de níquel; e as peças não tem tachinhas em volta dos bolsos”, afirma Cyntia Kasay, gerente de ESG da C&A.
Ela conta que atualmente a rede tem urnas em 200 lojas para recolher peças usadas. Isso vale para jeans e outros tecidos. Todo o material recolhido é enviado para um centro de distribuição para fazer a triagem. Peças boas, em condições e uso, são doadas para o Instituto C&A. Já aquelas roupas não aproveitáveis vão para reciclagem e se transformam em telhas, tapetes e cobertores sociais.
Já o jeans é recolhido e reciclado. As peças são desmontadas, passam por um processo de retirada das fibras e viram novas peças da coleção Ciclos. Em 2022, 10 mil peças de jeans deram vida a 16 mil novas peças. “Temos como princípio oferecer produtos sustentáveis pelo mesmo preço dos demais, apesar de ser um desafio”, diz a executiva.
Além da reciclagem
Hoje em dia a economia linear segue o processo de extrair, produzir e desperdiçar, e gira em torno de retirar materiais do solo para fazer algo que será usado por um curto período de tempo e depois jogar fora. Chloe Holland acredita que para “criar uma indústria da moda próspera e positiva para a natureza, é necessário uma transformação radical na forma como os produtos são projetados, fabricados e usados. Precisamos de uma economia circular”.
E a economia circular vai além da reciclagem, que já é muito importante, mas também é preciso eliminar resíduos e poluição, circular os produtos e materiais e regenerar a natureza. Ou seja, não é apenas redesenhar o produto, mas também os processos.
“É preciso transformar o sistema da moda de forma fundamental e isso é um desafio, mas também é uma oportunidade empolgante. O progresso em direção a uma economia circular exige colaboração, uma abordagem interativa de design e desenvolvimento, e o reconhecimento de que será, de fato, uma jornada. Afinal, a moda é uma indústria complexa e a transformação não acontecerá do dia para a noite”, fala.
A pesquisa do The Jeans Redesign mostra que os modelos de negócios circulares para a moda permitem que as empresas obtenham receita sem fazer novas roupas. Isso inclui revenda, aluguel, reparos e reformas das peças. “Um potencial de crescimento de 23% até 2030, representando uma oportunidade de US$ 700 bilhões, além do potencial para fornecer as reduções de emissões necessárias para colocar a indústria da moda no caminho dos 1,5˚C (conforme o Acordo de Paris)”, explica Chloe Holland. /COLABOROU RENÉE PEREIRA
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