Com suas formas circulares e repartidas, um prédio espelhado se destaca na esquina da Avenida Faria Lima com a Rua dos Pinheiros. Projetado pelo escritório de arquitetura Aflalo e Gasperini, o Edifício Sulamérica tem mais de 12 mil m² de área construída, segue conceitos verdes e se destaca em uma região que vem sendo revitalizada. A grande diferença em relação a outros imóveis do tipo, no entanto, não está em suas características visíveis. E sim no fato de que uma laje do prédio, um ativo do mundo real, foi transformada em ativo digital e está sendo vendida em 25 mil pedacinhos - ou tokens.
Quem investe em cada um desses tokens por US$ 140 (pouco mais de R$ 700) se torna dono de 0,0458 m² do espaço e tem direito a quinhão do valor do aluguel. A remuneração se dá pelo pagamento de dividendos proporcionais à quantidade de tokens que o investidor possui, cuja rentabilidade é estimada em 6% ao ano, corrigida anualmente pelo índice IGP-M. A transação é feita pela Kodo Assets, especializada em tokenização de ativos do mercado imobiliário e proprietária de R$ 18,2 milhões do edifício.
O setor imobiliário é um dos que estão mais avançados no processo de tokenização no País. Mas está longe de ser o único que se move nesta direção. Neste ano, três grandes bancos anunciaram sua entrada na tokenização: Itaú Unibanco, Banco do Brasil e Santander Brasil.
A tokenização vem ganhando espaço no mercado financeiro global. Tanto que o Boston Consulting Group (BCG) projeta que 10% do PIB mundial, ou US$ 16,1 trilhões, estarão em ativos tokenizados até 2030. Neste ano, a consultoria estima que haja, pelo menos, US$ 310 bilhões já no mundo, considerando somente tokens de ativos reais, como ações, commodities, imóveis e títulos de dívida, por exemplo.
O Brasil se destaca quanto ao interesse do mercado institucional, ou seja, os bancos e fundos. Segundo pesquisa do Banco de Nova York Mellon, 60% dos investidores institucionais brasileiros já avaliam investir ou investem em ativos tokenizados. O País só fica atrás de Cingapura e Hong Kong, que têm 75% de interesse cada.
A posição de destaque do Brasil no cenário mundial de ativos digitais e tokenização é também citada por Henrique Meirelles, ex-ministro da Fazenda e ex-presidente do Banco Central, que desde setembro faz parte do conselho consultivo global da Binance, a maior corretora de criptoativos do mundo. “A tokenização pode, sim, facilitar os investimentos no mundo todo, inclusive no Brasil, na medida em que o País prossiga nessa linha, como já faz, de agir rápido, sair na frente”, afirmou em entrevista exclusiva.
O próprio Banco Central criou um grupo de trabalho para tokenização, anunciado no último dia 12, para estudos sobre atividades de registro, custódia, negociação e liquidação de ativos financeiros em infraestrutura de registro distribuído (Distributed Ledger Technologies, em inglês - DLT), mais conhecida como blockchain. A resolução entra em vigor dia 1º de janeiro, e o GT terá duração de 180 dias, prorrogáveis. Dentre as atribuições do grupo de estudos está a avaliação do grau de segurança das soluções de tokenização e eventual proposição de ajustes regulatórios.
O processo de tokenização da economia também vai permitir que operações financeiras ocorram 24 horas. “Trata-se de um processo irreversível, e é questão de tempo até que o mundo seja tokenizado”, diz o diretor de Inovação da Federação Brasileira de Bancos (Febraban), Leandro Vilain. Ele pondera que, nesse estágio inicial, testes precisam ser feitos no Brasil. “Precisamos construir a infraestrutura, testar protocolos e a velocidade de transações. Uma série de soluções da tecnologia precisa ser testada.”
Com blockchain, qualquer ativo pode virar token
Tokenizar algo é transformar um bem qualquer em sua representação digital, registrada em uma rede blockchain, que por sua vez é a tecnologia de criptografia que sustenta as criptomoedas e outros ativos digitais. “Vai se criar uma representação digital de um ativo que potencialmente pode circular na economia global de uma forma mais eficiente que os meios tradicionais”, explica o advogado e professor do Ibmec, Isac Costa.
Para Eduardo de Paiva Gomes, coordenador da primeira enciclopédia da América Latina sobre criptoativos, tudo pode virar token. Quando a posse de um ativo é colocada dentro da blockchain, é possível que ela seja fracionada e vendida em pedaços menores, como ações. É possível dividir um recebível com custo de entrada elevado em pequenas partes, a fim de torná-lo acessível para um número maior de investidores. “Isso vai dar liquidez a ativos que, antes, poderiam levar anos para serem transacionados”, explica Paiva.
A lógica vale para qualquer ativo tokenizado, como ações de empresas, commodities, imóveis e, inclusive, o próprio livro dele, que está sendo vendido em uma coleção de 100 NFTs, com benefícios exclusivos como conteúdo adicional, cópia física autografada e podcast gravado pelos organizadores.
A tokenização também se propõe a resolver algumas problemáticas atuais do mercado, como a dificuldade para fazer operações de câmbio, que têm custo elevado e podem levar até dois dias úteis para serem finalizadas, e a interrupção das negociações durante o período não comercial.
‘Tokeneconomia’ como método de avaliação
O processo é tão aderente aos pilares da economia que surgiu o termo “tokenomics” (algo como “tokeneconomia”). É um método de avaliação de projetos que se vale de fundamentos de finanças aplicados aos ativos digitais. “Como a economia explica o funcionamento das moedas, o tokenomics é o processo que estuda e define o comportamento de um token, como o valor, a emissão e a utilidade do ativo digital”, diz o diretor global de estratégia cripto na 11:FS, Maurício Magaldi.
Avaliar a tokeneconomia de um projeto ou ativo é também uma questão de segurança do investimento. O advogado Isac Costa destaca que há riscos nessa área como insegurança jurídica, baixa liquidez no mercado secundário e má qualidade de ativos ou de gestão do serviço. “Há oportunistas que tokenizam recebíveis que não vão ser pagos, ativos que não deveriam ser comercializados para o público geral”, afirma Costa. “O que (essas pessoas) fazem?: ‘Vamos tokenizar esses ativos, porque todo mundo está enlouquecido querendo comprar tokens e as pessoas não vão olhar corretamente a qualidade desses ativos”.
Segundo ele, criminosos se aproveitavam, até então, da falta de regras no setor, o que pode começar a mudar com a aprovação do Projeto de Lei 4401/21, que regulamenta o funcionamento das corretoras de criptoativos no Brasil, e foi sancionado nesta quinta-feira. Porém, o texto não traz um capítulo específico para os tokens. “É generalista e praticamente não traz nenhuma norma concreta. Em função de um período de transição longo e de um detalhamento posterior que vai ser feito pelo Executivo federal, esse projeto vai demorar algum tempo para ter efeito prático”, diz o advogado. Costa prevê que esse período possa levar dois anos.
Ainda assim, ele acredita que a tecnologia da blockchain deve ser incorporada integralmente pelo sistema financeiro tradicional. “É possível que a infraestrutura de mercado financeiro seja transformada de forma irreversível e que esse processo que, hoje, a gente chama de tokenização, vire um lugar comum”, diz o advogado.
Há quem critique a adesão do mercado institucional ao universo cripto, nem tanto pelo risco, mas pela centralização de um ambiente que nasceu anárquico. O Bitcoin, criptomoeda mais popular, tem por princípio ser uma moeda independente de qualquer governo ou proprietário e rodar num ambiente tecnológico descentralizado. “Acho que os tokens são uma farsa; você tem de confiar no controlador central dele. Isso está sendo mostrado agora, com o caso FTX”, diz o desenvolvedor de Bitcoin Jimmy Song, referindo-se à FTX, até então a segunda maior corretora de criptomoedas do mundo, que entrou em falência recentemente. (Reportagem de Ana Ritti, Beatriz Capirazi, Gabriel Tassi, Guilherme Naldis, Maria Lígia Barros, Rebecca Crepaldi e Zeca Ferreira)
Expediente
Reportagem I Alunos da 12ª turma do Curso Estadão de Jornalismo Econômico: Adrielle Farias, Alex Braga, Ana Clara Praxedes, Ana Luiza Serrão, Ana Ritti, Beatriz Capirazi, Carolina Maingué Pires, Davi Valadares, Erick Souza, Fernanda Paixão, Gabriel Tassi, Guilherme Naldis, Jean Mendes, Jennifer Neves, Lara Castelo, Letícia Araújo, Luiz Araújo, Maria Clara Andrade, Maria Lígia Barros, Paulo Renato Nepomuceno, Pedro Pligher, Rebecca Crepaldi, Renata Leite e Zeca Ferreira Edição e coordenação I Carla Miranda e Luana Pavani
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