Dois simbolismos - que não pretendem ser de forma alguma gratuitos - marcam amanhã a posse de Néstor Kirchner como presidente da Argentina. Primeiro, será o bastão presidencial que receberá de Eduardo Duhalde, o presidente que deixa o cargo. O bastão, ao contrário dos preferidos pelos presidentes anteriores, um modelo "europeu" de ouro e madeira importada, desta vez terá um design mais "nacionalista", de prata com ornamentos da cultura argentina, além de ser feito da inflexível madeira de urandai, uma árvore local. Depois, quando for assinar o documento de posse, Kirchner tirará de dentro do paletó estilo jaquetão - que usa com espontâneo desleixo - não uma caneta de ouro ou uma pena utilizada por gerações de presidentes. Ao contrário, para indicar que seu governo terá o mesmo estilo simples que ele próprio tem em sua vida pessoal, assinará com uma prosaica esferográfica preta de plástico. O tom "nacionalista e simples" é o recado subliminar que Kirchner pretende enviar a seus compatriotas e aos estrangeiros. O recado direto ocorrerá minutos depois, em seu discurso de posse, no qual deve fazer duras críticas ao modelo neoliberal ortodoxo implementado pelo ex-presidente Carlos Menem (seu rival nas recentes eleições) nos anos 90. Kirchner defende uma maior participação do Estado no estímulo à economia e uma política social intensa. Ao contrário de Menem, Kirchner destacará que as relações internacionais terão como prioridade o aprofundamento dos laços com o Brasil. Com a chegada de Kirchner ao poder, também retira-se - pelo menos do cenário principal - uma geração de velhos caudilhos, que estiveram presentes na política argentina durante os últimos 40 anos. Todos os presidentes anteriores, como Raúl Alfonsín (1983-89), Menem (1989-1999), Fernando De la Rúa (1999-2001) e Eduardo Duhalde (2001-2002), haviam iniciado suas carreiras políticas antes do golpe militar de 1976, que foi um divisor de águas no país. Com Kirchner, chega ao poder uma geração que militou contra a ditadura e que começou a exercer cargos públicos em meados dos anos 80. Em alguns casos de seu gabinete de ministros, contará com torturados pelos militares. Cenário indefinido - Mas, depois dos simbolismos, Kirchner terá de lutar por sua legitimidade, já que foi eleito apenas com os 22,4% de votos que obteve no primeiro turno. O segundo turno, que seria disputado contra Menem no dia 18 foi cancelado por causa da desistência do ex-presidente. A expectativa era a de que Kirchner vencesse com 70% dos votos. No entanto, ele não poderá contar com essa avassaladora maioria. Além disso, Kirchner terá pela frente um cenário político indefinido, já que na maior parte das províncias argentinas as eleições para governador ocorrerão entre julho e outubro. De quebra, Kirchner passará pelo teste das urnas nas eleições parlamentares de setembro. Neste 25 de maio, Kirchner será o anfitrião de presidentes de um leque que vai da esquerda à centro-esquerda, como Luiz Inácio Lula da Silva, o chileno Ricardo Lagos, o venezuelano Hugo Chávez, o peruano Alejandro Toledo, o equatoriano Lucio Gutiérrez e o cubano Fidel Castro. A posse presidencial deste domingo rompe com várias tradições. Normalmente, no dia da posse, o presidente eleito vai até o Congresso Nacional, onde faz o juramento perante os parlamentares. Depois - acompanhado pelo histórico Corpo de Granadeiros -, avança lentamente em um carro aberto pela Avenida de Mayo até a Casa Rosada, a sede do governo, onde costuma ser esperado pelo presidente que deixa o cargo, para que este lhe entregasse os símbolos do poder: a faixa e o bastão presidenciais. Condenada ao sucesso - Hoje, Duhalde, em uma coletiva de imprensa de despedida, afirmou que quando assumiu, em janeiro de 2002, "o país estava no meio de uma tempestade, onde as ondas batiam de todos os lados". No entanto, "El Cabezón" (O Cabeção), como é conhecido, sustentou que, com trabalho duro, pôs "o país de novo nos trilhos". Duhalde disse que o maior problema que Kirchner terá pela frente não é a negociação com o FMI, mas sim "a reestruturação da dívida externa pública com os credores privados". Na hora de despedir-se da imprensa, em seu último encontro na qualidade de presidente, Duhalde afirmou que o brasileiro Hélio Jaguaribe, "o filósofo contemporâneo mais importante da América Latina", possui uma frase que define o futuro do país: "A Argentina está condenada ao sucesso."
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