BRASÍLIA - Diante da informalidade recorde no País, o próximo governo não vai conseguir escapar da discussão acerca da regulamentação do trabalho mediado por aplicativos, avalia o economista José Pastore, professor da FEA-USP e presidente do Conselho de Emprego e Relações de Trabalho da FecomercioSP.
“A sociedade brasileira não está mais aceitando ver essa garotada em cima de uma motocicleta, se estatelando num poste sem ninguém para responder por eles, sem ninguém ser responsável. A sociedade não aguenta mais ver isso, é desumano”, diz. O desafio, afirma Pastore, é oferecer proteção social a esses brasileiros sem minar o caráter dinâmico e heterogêneo desse tipo de trabalho.
Entre as várias alternativas possíveis, ele defende como promissor tornar esses trabalhadores contribuintes individuais do INSS, com algum tipo de contrapartida por parte das plataformas. A seguir, os principais trechos da entrevista.
Como o sr. avalia a retomada do mercado de trabalho? É sustentável?
Os dados do mercado de trabalho estão mostrando uma dinâmica bastante vigorosa. Está se recuperando tanto o emprego informal quanto o formal; embora, infelizmente, o informal esteja crescendo mais do que o formal. Mas houve uma recuperação razoável do formal: no primeiro semestre, foram mais de um milhão e meio de postos de trabalho formais que foram criados. Não esperava que viesse com essa força. Analisando os dados, a gente entende por quê: a retomada de comércio e serviços. A injeção de vários auxílios, antecipação de 13º salário, resgate de FGTS… isso também ajudou nessa recuperação. No segundo semestre, o Auxílio Brasil, auxílio-caminhoneiro e taxista vão continuar a dar impulso para comércio e serviços, o que deve ajudar o mercado de trabalho a ter um avanço positivo, tanto o formal como o informal. É capaz de a gente terminar o ano com talvez 8,5% de taxa de desemprego e gerar cerca de 2,2 milhões de trabalho formal, o que é um desempenho bastante razoável.
Mas e para o ano que vem?
O ano que vem é uma incógnita. Se esses auxílios de fato pararem ou diminuírem, você vai ter um banho de água fria no mercado de trabalho; não vai crescer tanto quanto cresceu esse ano. Outra coisa: se a inflação voltar -- porque ela está sendo bastante contida, pela redução de impostos dos combustíveis –, também vai atrapalhar o mercado de trabalho, porque, com inflação alta, investe-se menos. Investindo menos, você gera menos emprego. Então, vai ser uma preocupação. O cenário para 2023 não está tão tranquilo assim como a gente está vendo em 2022.
Como essa retomada poderia ser mais sustentável?
O Brasil, para dar uma arrancada boa em matéria de emprego, teria de crescer mais do que o previsto. Já estão falando em 2% para este ano. É melhor do que se pensava no início do ano. Mas, para a gente ter um arranque bom de emprego, a gente precisaria passar para a casa dos 3,5%, 4% de crescimento do PIB. Além disso, a gente precisaria ter a retomada de investimentos pesados em infraestrutura. O investimento em infraestrutura envolve cadeias produtivas muito longas e gera muito emprego direto, indireto e remoto. O que está muito preocupante é que o governo está sem capacidade de investimento pesado na infraestrutura. Uma usina elétrica, por exemplo: o setor privado sozinho não consegue fazer isso aí; ou uma ferrovia... A gente não está vendo perspectiva para o ano que vem da volta de investimentos pesados em infraestrutura. Eu vejo 2023 com muita preocupação. Se a inflação acelerar e os investimentos ficarem muito tímidos, eu acho que podemos ter um aumento do desemprego. Agora, se a inflação for contida e você de alguma maneira readquirir uma confiança na economia brasileira e tiver um mínimo de equilíbrio fiscal para permitir aos governos municipal, estadual e federal investir em infraestrutura – que é tão necessário, porque ela está corroída, muito gasta e com fadiga em todas as áreas –, acho que o setor privado complementa o resto e a gente pode ter uma situação de emprego favorável. Mas, estou mais pendente para o primeiro cenário do que para o segundo no ano que vem.
Diante da alta informalidade hoje no País, o sr. vem se debruçando sobre essa questão dos trabalhadores mediados por aplicativos e plataformas digitais. Como avalia o cenário que temos hoje?
Quando a gente fala em plataforma, a gente sempre tem na cabeça transporte individual e entrega, que são as coisas mais visíveis; mas há centenas de atividades, das mais diversas possíveis. Tem plataforma de cabeleireiro, de pedreiro, de pintor, de designer, até de goleiro. É uma heterogeneidade fantástica. Cada um trabalha de um jeito: um trabalha duas horas por dia, outro trabalha oito; um trabalha uma vez por semana, outro, todos os dias. Um trabalha um pouquinho de tempo e volta a fazer uma atividade mais convencional de emprego. O trabalho é descontínuo no tempo e no espaço, uma diversidade de regimes de trabalho fantástica. E o desafio é esse: como você consegue proteger essas pessoas? Porque, hoje, esses trabalhadores estão sem proteção nenhuma, praticamente. Uma ou outra plataforma tomou a iniciativa de fazer um seguro acidente ou de dar alguma coisa na área de saúde ou um vale-refeição; mas, são poucas. O grosso não tem proteção nenhuma. Eu acho que a sociedade brasileira não está mais aceitando ver essa garotada em cima de uma motocicleta, se estatelando num poste sem ninguém para responder por eles, sem ninguém responsável. A sociedade não aguenta ver isso mais, é desumano. Então, é urgente a gente buscar uma forma de começar a dar proteção para essas pessoas, e aí é que está o debate.
Quais são as alternativas?
Uma delas é tentar enquadrar essas pessoas na CLT (Consolidação das Leis do Trabalho), o que eu, pessoalmente, acho muito difícil. Como você estabelece um contrato celetista com um sujeito que trabalha de uma maneira tão irregular, se a característica básica do emprego celetista é continuidade, assiduidade, habitualidade, assalariamento, subordinação? Esse tipo de trabalho é de uma irregularidade infinita, não dá para encaixar. Muitas vezes, é muito comum a pessoa trabalhar para duas ou três plataformas diferentes, com regimes diferentes. Muitos combinam o emprego tradicional com a plataforma. Como você vai recolher os encargos sociais de quem é empregado? Como você vai recolher essas contribuições num mundo tão variado? O MEI (microempreendedor individual) é uma alternativa mais próxima, mas ainda tem problemas. A virtude do MEI é que o próprio trabalhador recolhe as suas contribuições. A gente sabe que o MEI tem uma inadimplência grande. Se ele é um MEI que trabalha sozinho, tem a proteção enquanto está contribuindo. Se ele vira inadimplente, tem um problema sério. Tenho a impressão de que ele vai ser sujeito a uma inadimplência muito maior, devido à irregularidade de trabalho.
Há alguma outra saída?
Sobra um outro tipo de proteção previdenciária, que seria ter o trabalhador como um contribuinte individual do INSS. Ele teria proteções importantes garantidas: aposentadoria por tempo de serviço, por idade, por incapacidade, salário pago durante a recuperação em caso de acidente... teria essas proteções. Também há inadimplência nesse modelo. Então, precisaríamos bolar de um jeito em que houvesse algum controle. Como não existe empregador, fica difícil dizer que a plataforma vai atuar como empregadora. Mas, de alguma maneira, vamos ter de envolver a plataforma com alguma contrapartida, por exemplo: passar uma legislação segundo a qual a plataforma só pode utilizar um trabalhador que esteja vinculado ao INSS e que esteja adimplente. Também não é simples fazer isso: gera custos, gera administração. A plataforma vai reclamar que isso vai comer uma parte da margem dela... é uma negociação difícil. Ainda poderá se dizer que seremos algozes para os trabalhadores, porque, quando não conseguirem contribuir, vão ficar simplesmente jogados no mercado de trabalho sem poder trabalhar na plataforma. A última coisa que queremos é criar problemas para os trabalhadores. Estamos buscando alguma maneira de acomodar as coisas, para eles terem o mínimo de proteção: de saúde, de aposentadoria, de licença-maternidade... são coisas importantes que as pessoas precisam ter na hora do risco.
Hoje há muitos projetos de lei tramitando no Congresso em busca de solucionar essa questão…
Nós temos quase 100 projetos de lei nesse campo. A grande maioria está para o lado da CLT, de vínculo trabalhista. Nós fizemos um anteprojeto de lei nessa linha da previdência, de tornar os trabalhadores contribuintes individuais do INSS, mas que ainda não traz esses controles por parte das plataformas. Já entregamos para o governo, é um primeiro passo que nós estamos dando.
Na ausência de uma legislação, o Judiciário vem ocupando esse espaço…
No mundo inteiro, uma grande parte da regulação está sendo feita através de jurisprudência, das sentenças dos juízes. Há quase um ano, fizemos um estudo sobre os vários tipos de sentenças no mundo tentando regular isso. De cerca de 500 sentenças judiciais, tivemos apenas uns 10% tiveram ganho de causa para os trabalhadores dentro da linha da CLT, tentando forçar uma contratação. O resto foi sempre a desconsideração da relação de emprego. A maioria dos juízes até então acha que não há relação de emprego.
O desafio de regulamentar esse tipo de trabalho aparece nos programas de governo dos principais candidatos à Presidência. O sr. acha que essa legislação pode sair no ano que vem?
Eu acho que no ano que vem essa questão vai ser enfrentada. É um problema social muito grave, muito sério. Os candidatos estão falando nisso e em 2023, ganhe quem ganhar, vai ter que ajudar a resolver esse problema. Vamos esperar que seja feita uma lei ainda no primeiro semestre do ano que vem. Eu acho que, se tiver uma boa liderança do governo, do Executivo, dá para sair no ano que vem.
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