Provoca grande polêmica a tramitação do novo marco regulatório do setor de Transporte Rodoviário Interestadual de Passageiros (conhecido pela sigla TRIP). A visão predominante entre os especialistas é de que, ao criar impeditivos para o ingresso de novas empresas, os parâmetros estabelecidos estão longe de beneficiar os mais de 100 milhões de brasileiros que usam ônibus para viajar.
Analistas têm enfatizado, desde a apresentação da proposta pela Agência Nacional de Transportes Terrestres (ANTT), no fim de julho, os efeitos nocivos que a aprovação desse texto traria à ideia de livre-concorrência. Isso acontece porque, em vez de abrir mercado e permitir a participação de novos players com a qualificação exigida pelos critérios de regulação, o novo marco reforçaria os privilégios das empresas que já atuam há décadas no setor — um mercado extremamente fechado e concentrado, em que mais de 70% das linhas são operadas por apenas uma empresa ou grupo econômico.
O tema pautou o debate “Desafios para a abertura do setor rodoviário de passageiros — O futuro do transporte em xeque”, promovido pelo Estadão Blue Studio com o patrocínio da Buser e o apoio da Associação Brasileira de Mobilidade e Tecnologia (Amobitec). O objetivo foi aprofundar as discussões para entender as razões das resistências para que um setor utilizado por mais da metade da população brasileira passe por um processo real de abertura, trazendo mais concorrência, tal como pede a lei e como foi legitimado pelo Supremo Tribunal Federal (STF) neste ano.
Felipe Freire, especialista em regulação técnica da ANTT, que participou do debate como estudioso da temática há mais de dez anos, foi enfático ao criticar a proposta apresentada. “Se o projeto fosse um trabalho de graduação submetido a uma banca composta por um jurista, um economista e um engenheiro, seria recusado pelos três”, comparou.
Freire disse que o engenheiro recusaria por causa das afrontas à lógica de eficiência do sistema de transporte (incluindo uma série de cálculos errados), ao passo que o economista ficaria perplexo com a ideia de eficiência econômica apresentada e o jurista discordaria da visão de que o princípio de livre-concorrência não é completamente aplicável ao setor. “Em resumo, trata-se de abuso do poder regulatório”, completou o especialista.
Resistindo à inovação
A deputada federal Adriana Ventura (Novo/SP) classificou a proposta da ANTT como “aberração” e descreveu um forte movimento dos parlamentares, de diferentes partidos, em prol dos ajustes necessários ao projeto. “É normal que haja resistência quando surgem novas tecnologias. Quem explorava o serviço de lampiões resistiu à chegada da energia elétrica, quem vendia selas de cavalo não gostou quando os automóveis se popularizaram, e por aí vai. O que não pode acontecer é uma agência reguladora agir de acordo com os interesses de poucos operadores que querem manter os próprios privilégios”, analisou a deputada.
André Porto, diretor-executivo da Amobitec, lembrou que a ANTT tem papel institucional de defender a utilização da tecnologia como estratégia para aprimorar os serviços de mobilidade. “A tecnologia traz eficiência e é uma grande aliada, inclusive no que diz respeito à fiscalização”, observou. Ele citou uma série de novas ferramentas tecnológicas que permitem uma fiscalização detalhada, a exemplo dos recursos de telemetria, que permitem conferir o cumprimento dos horários, a ocorrência de situações como excesso de velocidade e frenagens bruscas e, até mesmo, a checagem automática de sinais de cansaço no motorista. “O que não há como fiscalizar é o transporte clandestino, que acaba sendo impulsionado num cenário de mercado fechado e muita demanda”, comparou o executivo da Amobitec.
Inclusão de mercados não atendidos
Vários argumentos da ANTT que, supostamente, justificariam mais restrição foram combatidos durante o painel. O principal deles foi a ideia de que a abertura a novos competidores incentivaria as empresas a focar exclusivamente nas melhores linhas — aquelas que envolvem os grandes centros urbanos —, deixando de lado mercados não tão atrativos.
Freire explicou que, ao contrário do que defende a agência, 80% das novas autorizações de linhas concedidas no período entre 2019 e 2021, durante o qual entrou em vigor um decreto presidencial com essa diretriz — posteriormente barrado na Justiça —, foram de trechos rodoviários não atendidos. “A cada 100 mercados que foram outorgados à iniciativa privada, 80 eram referentes a mercados não atendidos. Só em 20% houve incremento concorrencial onde já tinha empresa atuando”, afirmou o especialista. “O que se verifica no mundo real é que as empresas constroem um mix operacional que confere lógica à atuação no setor”, avaliou.
Outra falácia, muitas vezes repetida até então, era a de que a maior concorrência levaria à precarização dos serviços. Freire também atacou: “De cada dez pedidos apresentados nesse período de abertura, nove foram rejeitados por descumprimento das exigências e dos requisitos mínimos, evidência de que não é qualquer empresa que consegue se habilitar”. Mesmo com o alto número de rejeições dos pedidos, 15 mil novas linhas foram outorgadas, beneficiando milhões de brasileiros, que viram os preços das viagens cair em até 40%.
Impacto ao meio ambiente
A proposta da ANTT para o marco regulatório do setor de transporte rodoviário interestadual de passageiros traria, além do prejuízo ao usuário — que já é refém de poucas opções de transporte e de preços altos de passagens —, impactos negativos ao meio ambiente. Segundo cálculos do especialista em regulação Felipe Freire, manter o mercado fechado às novas empresas pode gerar prejuízo na ordem de R$ 700 milhões ao ano, em razão dos parâmetros ultrapassados na hora de calcular a base tarifária necessária para atender à demanda. “A agência está usando como referência de eficiência um ônibus de chassi 2004. É o que está na minuta que foi submetida à audiência pública. Como são quase 20 anos de diferença aos veículos atuais, se jogarmos um incremento de eficiência de 20% sobre isso, teríamos, em um ano, uma economia de 120 milhões de litros de óleo diesel. Evitaríamos jogar na atmosfera cerca de 120 milhões de litros [de diesel]. Em valores monetários, seria algo em torno de R$ 700 milhões ao ano”, afirmou Freire, da ANTT.
O aumento da concorrência, inclusive, ajuda a diminuir a idade média dos ônibus, contribuindo para a meta de gerar menos emissões de CO2 e outros gases poluentes. De acordo com Freire, durante o período de abertura, entre 2019 e 2021, as empresas foram incentivadas a usar veículos mais novos. “Tudo isso gera mais eficiência econômica e mais benefícios aos usuários e ao meio ambiente”, concluiu o especialista.
A sociedade se organiza
A ANTT vem sendo duramente criticada por especialistas, diferentes alas do Congresso e também pela opinião pública desde que apresentou a proposta da nova resolução para o setor de transporte rodoviário de passageiros, no final de julho. Uma das ações que vem gerando mobilização da sociedade é um abaixo-assinado hospedado em busaolivre.com que alerta para o risco de aumento no valor das passagens caso o novo marco regulatório seja aprovado como está.
A campanha é coordenada pelo movimento Busão Livre, pela Amobitec (Associação Brasileira de Mobilidade e Tecnologia), que representa Buser, Flixbus, e pela Abrafrec (Associação Brasileira dos Fretadores Colaborativos).
Veja a íntegra do debate:
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