BRASÍLIA – A reforma tributária em debate no Congresso Nacional cria dois tributos “gêmeos”: a CBS, de competência federal, e o IBS, gerido por Estados e municípios. Ambos são Impostos sobre Valor Agregado (IVAs) incidentes sobre o consumo de bens e serviços. Apesar dessa estrutura espelhada, as disputas entre os contribuintes e o Estado serão decididas por órgãos distintos – o que gera preocupação sobre decisões discrepantes.
O temor apontado por especialistas é de que, para uma mesma estrutura de imposto, haja duas sentenças diferentes, ampliando a complexidade para o contribuinte.
“A crítica é procedente. Sou o primeiro a dizer que, idealmente, no plano técnico – e o meu juízo é puramente técnico, quem decide politicamente tem as suas razões –, (a unificação das disputas tributárias) seria uma solução viável e muito boa”, afirma Manoel Procópio, diretor de Programa da Secretaria Extraordinária da Reforma Tributária (Sert) do Ministério da Fazenda.
Pelo projeto de lei complementar enviado pelo Executivo ao Congresso, Estados e municípios terão uma estrutura própria de contencioso administrativo, que ficará no âmbito do Comitê Gestor, órgão responsável pelas decisões referentes ao IBS. Já o governo federal manterá as análises nas delegacias de julgamento e no Conselho de Administração de Recursos Fiscais (Carf), como ocorre atualmente.
Unificar esses atos exigiria um alinhamento entre Receita Federal e entes federados. “Se for um contencioso único, a gente entende que não há outra forma que não seja via Comitê Gestor”, afirma Rodrigo Spada, presidente da Associação Nacional de Fiscais de Tributos Estaduais (Febrafite). “Ele é o único órgão constitucionalmente previsto para fazer o julgamento do IBS e da CBS, ao contrário do Carf”, afirma.
Na visão de Spada, os dois contenciosos estão adequados à realidade do IVA dual, que têm suas competências divididas. Por esse motivo, ele defende a manutenção desse trecho da lei. “Foi a escolha política do legislador ainda durante a elaboração da PEC (a Proposta de Emenda à Constituição, promulgada no fim de 2023).”
Mesmo avaliando que a solução não foi tecnicamente a ideal, Procópio, da Fazenda, pondera que a existência de dois órgãos julgadores já significará um avanço em relação ao cenário atual.
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“Hoje, o contencioso administrativo de Belo Horizonte não tem nada a ver com o de Sete Lagoas, que não tem relação com o de Uberaba ou o de Juiz de Fora. Isso dando o exemplo apenas de Minas Gerais, mas o mesmo vale para todo o País”, diz o diretor da Sert, que atua como auditor fiscal há 30 anos. “Pela primeira vez, Estados e municípios terão legislação e estrutura únicas de julgamento. É um avanço absurdo”, afirma.
Ele também pontua que há atenuantes para essa duplicidade de contenciosos, ou seja, de análise das disputas tributárias. “Os técnicos conceberam dois ambientes em que a gente vai mitigar ou até eliminar esse problema.” O auditor refere-se à criação de um comitê e de um fórum de harmonização, os quais terão o objetivo de uniformizar interpretações e prevenir litígios. “O consenso será vinculante para todo mundo.”
O primeiro colegiado será formado por quatro representantes da Receita Federal e quatro do Comitê Gestor do IBS. Já o segundo terá quatro membros da Procuradoria Geral da Fazenda Nacional (PGFN) e quatro procuradores estaduais e municipais.
Críticas de tributaristas e economistas
Tributaristas e economistas ouvidos pelo Estadão temem, porém, que essas instâncias de harmonização não tenham poder e articulação suficientes para evitar decisões conflitantes e a criação de insegurança jurídica.
“Essa ideia de um fórum para dirimir discrepâncias não tem o menor cabimento. Fórum a gente faz para debater academicamente, não para cuidar do comando de uma área tão sensível da arrecadação e do financiamento das políticas públicas de todo o País”, afirma o economista-chefe da Warren Investimentos e ex-secretário da Fazenda de São Paulo, Felipe Salto.
O tributarista Marcel Alcades, sócio do escritório Mattos Filho, corrobora que se trata de um ponto de atenção na regulamentação da reforma. “É algo que teremos de ficar atentos, porque só falar que será integrado não resolve a situação. Temos de tomar cuidado para o contribuinte não ter os seus direitos feridos”, afirma.
Salto e Alcades destacam que, além dos dois contenciosos, haverá três esferas de fiscalização: uma municipal, outra estadual e uma terceira federal. “E se um auto de infração, no Acre, sobre um mesmo tipo de fraude, versar de modo distinto de um auto de São Paulo ou de Pernambuco? Qual vai prevalecer?”, questiona o ex-secretário.
O deputado Mauro Benevides Filho (PDT-CE), que integra o grupo de trabalho que vai regulamentar esse trecho da reforma na Câmara, defende que o Comitê Gestor do IBS possa fazer essa harmonização de regras.
“Apesar de a legislação ser a mesma, não está claro onde se fará o entendimento comum entre os dois. Porque o auditor da Receita Federal (que regula a CBS) pode ter um entendimento e o auditor municipal e estadual (que regula o IBS) pode ter outro. Estuda-se a viabilidade de que o Conselho Gestor, em terceira instância, tenha competência para tal”, explicou.
Benevides disse que ainda levará essa ideia aos demais integrantes do grupo e também à equipe econômica e à Receita Federal. Ele pontuou que a única certeza é de que essa harmonização precisará ser feita sem envolver o Superior Tribunal de Justiça (STJ), uma vez que isso significaria sair da esfera administrativa e migrar para a judicial.
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