A universalização do saneamento básico no País até 2033, como prevê o novo marco legal aprovado pelo Congresso em 2020, poderá não se concretizar mesmo com a realização dos investimentos necessários para expansão das redes de água e esgoto, estimados entre R$ 509 bilhões e R$ 893 bilhões por empresas de consultoria e entidades ligadas ao setor.
Segundo um estudo produzido pelo Instituto Trata Brasil, uma organização que busca a universalização dos serviços na área, em parceria com a Ex Ante Consultoria Econômica, a Asfamas (Associação Brasileira dos Fabricantes de Materiais para Saneamento) e o CEBDS (Conselho Empresarial Brasileiro para o Desenvolvimento Sustentável), os próprios usuários terão de realizar investimentos bilionários na construção, instalação e troca da infraestrutura residencial de água e esgoto, para poder se conectar às redes que deverão chegar às suas portas.
Para que a meta do novo marco seja cumprida, as famílias terão de fazer um desembolso de nada menos que R$ 242,5 bilhões (a preços de 2023) nos próximos dez anos ou R$ 24,3 bilhões ao ano, conforme os cálculos do estudo, o que deverá representar entre 27% e 48% do total de investimentos que as concessionárias dos serviços deverão realizar no mesmo período para ampliar o acesso às redes.
Isso significa que os investimentos a serem realizados anualmente em equipamentos e em mão de obra para instalação e reforma da infraestrutura de saneamento nas moradias terão de quase dobrar em relação ao gasto efetuado em 2018, de R$ 13 bilhões (a preços de 2023), utilizado como base de comparação no estudo.
“Quando a gente fala na dignidade que vem com o acesso pleno ao saneamento, tem de olhar para dentro de casa também. Não adianta nada a concessionária chegar com a tubulação de água e de coleta e tratamento de esgoto na frente da casa do cidadão se ele não fizer a ligação às redes”, afirma Luana Pretto, presidente executiva do Trata Brasil. “Se isso não acontecer e a população continuar despejando esgoto bruto na natureza, a gente não vai ter a melhoria almejada nos indicadores de saúde e de meio ambiente.”
O problema, de acordo com o levantamento, é que quase 90% das famílias que hoje não dispõem de serviços de saneamento e precisarão instalar ou adequar os equipamentos domésticos para se conectar às redes externas pertencem às faixas de renda mais baixas da população, com ganho de até R$ 5.724 por mês por domicílio. E, para viabilizar a universalização, elas terão de arcar com 75% dos investimentos que deverão ser feitos nas residências em todo o País.
Além de o custo das obras e dos equipamentos ser alto, na faixa de R$ 1,5 mil a R$ 2 mil por moradia, sem contar a eventual instalação de caixa d’água e a construção de banheiros, segundo Luana, muitas famílias têm outras prioridades de gastos, deixando em segundo ou terceiro plano a adequação da infraestrutura e a ligação às redes externas de água e esgoto. Hoje, conforme o estudo, cerca de 16% da população na faixa de menor renda já poderiam estar ligados às redes disponíveis, mas não dispõem de canalização na moradia para fazer a conexão.
A questão se torna ainda mais complicada quando se leva em conta a distribuição geográfica dos investimentos necessários para a conexão dos domicílios. De acordo com o estudo, quase 50% do total terão de ser feitos nas regiões Norte, em especial no Pará, e no Nordeste, principalmente no Maranhão, justamente as mais carentes do País. A região Sul também demandará uma fatia considerável dos investimentos, estimada em 23,5% do total, em particular no Rio Grande do Sul.
“Com esse ‘boom’ de acesso ao saneamento que a gente vai ter nos próximos anos, isso precisa ser pensado de forma conjunta, mesmo sendo uma responsabilidade do cidadão e não da concessionária, porque senão nós vamos continuar a lançar esgoto a céu aberto e não vamos despoluir os rios”, diz Luana.
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Neste contexto, segundo o estudo, a saída para a viabilizar a realização dos investimentos pelas famílias está na criação de políticas públicas que incluam a concessão de crédito e de subsídios, especialmente para a população mais pobre. Luana admite, porém, que, no atual cenário de restrições fiscais do País, a solução mais viável deverá ser mesmo a oferta de linhas de crédito de longo prazo, que permitam a redução do valor das parcelas. “Claro que o subsídio é sempre bem-vindo, principalmente quando a gente fala de extrema pobreza. Mas ter linhas de crédito, para que o cidadão não sinta o peso da parcela na sua renda mensal, já vai facilitar muito as coisas”, afirma.
Expansão industrial
Além da criação de políticas públicas para viabilizar os investimentos que a própria população terá de fazer, o estudo do Trata Brasil aborda ainda uma questão considerada fundamental para viabilizar a universalização do saneamento – a expansão da produção industrial para atender ao aumento da demanda pelos equipamentos necessários à adequação dos domicílios.
Pelo levantamento, os gastos anuais com materiais têm um crescimento potencial de 5,6% ao ano até 2040, exigindo novos investimentos em plantas industriais e centrais de distribuição por parte dos fabricantes do setor. “Políticas de governo como o Programa Nova Indústria Brasil do MDIC (Ministério do Desenvolvimento, Indústria, Comércio e Serviços), que facilita o crédito para o investimento em nova capacidade instalada, terá papel fundamental no momento em que houver o aumento da demanda ou a percepção de que esse aumento virá em pouco tempo”, diz o estudo.
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