Três vezes por semana, Herminia Ibarra caminha até a frota de veículos elétricos reluzentes estacionados numa ruazinha empoeirada ao lado de uma antiga oficina mecânica. Entre os cinco Chevy Bolts, três Tesla Ys, dois Volkswagen e-Golfs e um BMW i3, ela sempre tenta pegar o seu favorito: o Bolt vermelho cujo bluetooth já está pareado com o dispositivo dela. Dirigindo o veículo, ela vai pegar dois agricultores aposentados, que são seus passageiros regulares, e levá-los até o lugar onde fazem hemodiálise, a cerca de 32 quilômetros dali.
Herminia é uma “reitera” (algo como caroneira), um termo usado para se referir aos vizinhos que dão carona a outras pessoas da vizinhança que precisam se deslocar. A antiga oficina, que tem uma bandeira mexicana enrolada em sua escada, é o centro de operações da Green Raiteros, uma iniciativa de compartilhamento de veículos elétricos em Huron, na Califórnia, que transporta residentes de baixa renda, muitos deles idosos, para consultas médicas gratuitamente.
Herminia, ao volante do Bolt vermelho, é o que os defensores da iniciativa chamam de “justiça da mobilidade” em ação: um esforço para enfrentar a realidade de que as comunidades de baixa renda mais afetadas pela poluição dos caminhões movidos a diesel, das rodovias e de outras fontes têm menos acesso a veículos com zero emissões de carbono.
Green Raiteros
Nascido da escassez de transporte público, da preocupação com o meio ambiente e da determinação obstinada, o programa foi idealizado pelo Latino Equity Advocacy & Policy Institute, uma organização sem fins lucrativos fundada por Rey León, o prefeito de Huron.
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Iniciativas semelhantes estão em curso em outros lugares na Califórnia, em Nova York e em outras regiões, junto com uma pressão crescente em Washington, D.C., para subsidiar programas para veículos elétricos. Segundo a Lei Bipartidária de Infraestrutura, o governo federal dos Estados Unidos está disponibilizando US$ 700 milhões em verbas para os governos locais criarem infraestrutura para carregamento em áreas carentes.
O objetivo de todas essas iniciativas é dar acesso a meios de transporte menos poluentes a mais pessoas em comunidades de baixa renda. Em Huron, o resultado do programa local são 30 estações de recarga distribuídas estrategicamente pela cidade, entre outros projetos destinados a reduzir as emissões de carbono na região.
Cercada por inúmeros hectares de plantações de alho e tomate, Huron é uma cidade pequena e agrícola no “coração do Vale”, como anuncia uma placa na rua principal. Dos 6.200 habitantes de Huron, 95% são latinos e cerca de 50% são imigrantes. E apesar de estar a apenas 80 quilômetros de Fresno, a quinta maior cidade do estado, Huron é remota demais para a Uber ou a Lyft operarem.
León tem se referido à tradição do compartilhamento de veículos nas comunidades latinas como “Ubers Indígenas”. Ele é filho de um trabalhador migrante que foi para os EUA por meio do programa Bracero, que ocorreu entre 1942 a 1964 e permitia a entrada de mexicanos para trabalhar no setor agrícola do país, e fez faculdade na Universidade da Califórnia, em Berkeley. A ressonância emocional do compartilhamento de carros chegou cedo para ele: quando León era uma criança, o tio trabalhava como raitero.
“Ele era um homem alto que usava um sombrero grande e tinha um carro minúsculo – um Ford Pinto verde”, lembrou. “Ele era uma espécie de George, o curioso com seu chapéu amarelo gigante. Um cara grande com um carro pequeno.”
Quando o tio de León não estava disponível, as opções da família para se locomover ficavam limitadas. León lembra que ele e sua mãe precisavam pegar o ônibus do condado para visitar um primo gravemente ferido no hospital a cerca de 88 quilômetros de distância, uma jornada exaustiva de três horas e meia com pelo menos 16 paradas.
Para León, o tormento da sua juventude preparou o caminho para a Green Raiteros. Os veículos elétricos que costumam circular pelas colinas de cores diferentes de regiões prósperas como Malibu e o condado de Marin, agora estão acessíveis aos “mantenedores da cadeia alimentar”, como León descreve os habitantes da cidade, em sua maioria de agricultores.
A renda familiar média de Huron é de US$ 35 mil por ano, e muitas pessoas, segundo León, gastam de 30% a 40% de seus salários mensais com carros movidos a gasolina que frequentemente quebram. Os moradores respiram um ar sistematicamente classificado como um dos piores do país.
“Assim como a habitação acessível, a mobilidade e o transporte são um direito humano básico”, disse Ethan Elkind, diretor do programa climático do Centro de Direito, Energia e Meio Ambiente da Faculdade de Direito da Universidade da Califórnia, em Berkeley. Em regiões de baixa renda e ecologicamente vulneráveis como Huron, disse ele, isso muitas vezes exige fontes diversas de financiamento público para conseguir fazer a infraestrutura necessária funcionar – sobretudo as estações para recarga –, inclusive profissionais para solicitar os subsídios, antes de tudo.
León lançou a Green Raiteros em 2018 com capital de uma fundação privada e US$ 500 mil provenientes de um acordo de um processo judicial entre a NRG Energy e a California Public Utilities Commission.
Os Teslas foram cortesia de uma doação de US$ 1 milhão do California Air Resources Board, a agência reguladora da qualidade do ar do estado encarregada de desenvolver programas para combater as mudanças climáticas. (Um estatuto exige que pelo menos 35% de certos projetos de investimento relacionados com o clima beneficiem as comunidades e as famílias de baixa renda.)
O orçamento operacional anual de US$ 150 mil é em grande parte uma mistura de ajuda financeira da agência que controla a qualidade do ar, de órgãos estaduais e de organizações filantrópicas, complementadas por uma contribuição recente da General Motors.
“Sempre é uma questão de tentar ficar em dia”, disse León.
Os créditos fiscais e os descontos ao consumidor para a aquisição de veículos elétricos tendem a ser pouco úteis para quem ter um carro é um empecilho financeiro considerável.
“Ter um carro é um perpetuador da pobreza”, observou León, sentado no escritório da Green Raiteros atrás das colunas de gesso marrom desbotadas da rua principal.
Os clientes da Green Raiteros, cerca de 120 no total, inscrevem-se para caronas com antecedência ou simplesmente aparecem na antiga oficina. Muitos “ainda têm aqueles celulares dobráveis de antigamente”, disse David Mercado, despachante e motorista de longa data. “Eles podem ligar durante o dia ou à noite. Somos uma comunidade unida.”
Modelos inovadores de compartilhamento de veículos elétricos estão surgindo em outros locais, desde as comunidades rurais e não incorporadas nas proximidades de Fresno até um novo programa de compartilhamento de carros que leva veículos elétricos para conjuntos habitacionais acessíveis em oito estados.
Uma iniciativa público-privada pioneira em Los Angeles, a BlueLA, desenvolvida pela Blink Mobility, começou em 2015 com financiamento do California Air Resources Board e do Departamento de Água e Energia da cidade. Ela oferece o compartilhamento de carros com desconto para pessoas de baixa renda: US$ 1 de mensalidade e 15 centavos por minuto em taxas de aluguel.
Em Rancho San Pedro, um conjunto habitacional público cujos moradores são em sua maioria latinos e que fica na vizinhança do altamente poluído e movimentado porto de Los Angeles, os residentes fizeram campanha para um programa piloto financiado pelo estado com US$ 100 mil e lançado pela Los Angeles Cleantech Incubator, organização sem fins lucrativos, para trazer dois veículos elétricos e estações de recarga para aquela área sem transporte público a mais de 30 quilômetros do centro da cidade.
Os Nissan Leafs comunitários, alugados por US$ 5 a hora, têm sido um sucesso entre os moradores, com um horário nobre começando às 6 da manhã para deixar as crianças na escola.
“Se o carro quebrar, você não precisa consertá-lo”, disse Maria Montes, que orienta outras pessoas sobre como usar o programa de compartilhamento de veículos elétricos
Outros projetos pilotos com veículos elétricos, como o sem fins lucrativos Miocar, presente em conjuntos habitacionais a preços acessíveis por toda a região do Vale Central, dependem de investimentos públicos.
O modelo de maior alcance é o do primeiro compartilhamento de carros de propriedade municipal do país, em Mineápolis e St.Paul, uma frota de 170 veículos elétricos e 70 pontos de recarga cobrindo uma área de 90 quilômetros quadrados com uma alta concentração de pobreza. O Evie Carshare estreou no ano passado, subsidiado em US$ 7 milhões com verbas federais, US$ 4 milhões da Xcel Energy, com sede em Mineápolis, e financiamento de ambas as cidades.
Entretanto, coletivamente, esses programas sem fins lucrativos enfrentam obstáculos maiores. Como oferecem preços abaixo dos do mercado, a sustentabilidade a longo prazo e a capacidade de expansão deles podem ser incertas.
“É uma inversão do modelo predominante de compartilhamento de carros, que é uma operação com fins lucrativos em áreas urbanas prósperas com boas opções de transporte público”, disse Caroline Rodier, diretora-adjunta do Centro de Transportes e Uso de Solo Urbano da Universidade da Califórnia, em Davis, que estudou o Miocar e o compartilhamento de carros em áreas rurais.
Conseguir um seguro de automóvel também pode ser uma dificuldade, disse Creighton Randall, CEO do Mobility Development Group, especializado no lançamento de projetos como esses.
A Ithaca Carshare, no estado de Nova York, que opera há 15 anos com 30 carros e 1.500 associados, recentemente interrompeu suas atividades depois que as últimas duas seguradoras privadas para carros compartilhados deixaram o mercado nova-iorquino. Na semana passada, o estado aprovou uma legislação que possibilita a contratação de seguros em grupo por organizações sem fins lucrativos, permitindo que programas como o da Ithaca garantam planos acessíveis e continuem operando. / Tradução de Romina Cácia
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