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1 em 4 alunos relata ‘esculacho’ na escola; nova lei que criminaliza o bullying ajuda no combate?

Pesquisa feita com apoio da Universidade de Stanford ouviu estudantes da rede pública e privada no Brasil este ano sobre agressões e humilhações praticadas por colegas; muitos faltam à aula por não se sentirem seguros

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Foto do author Renata Cafardo

Pesquisa realizada este ano com estudantes do ensino básico, de escolas públicas e particulares do País, mostra que 24% deles dizem que foram vítimas de intimidação, esculacho ou humilhação por colegas nos últimos 12 meses. E ainda 1 em cada 4 estudantes deixou de ir à aula pelo menos um dia por não se sentir seguro. Meninas e alunos pretos, pardos e amarelos têm os índices mais altos, em ambos os casos.

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O resultado faz parte de um projeto que tem coletado informações a cada 45 dias nas escolas brasileiras sobre temas que vão de alfabetização a violência, com o apoio da Universidade de Stanford, na Califórnia, o Equidade.info. Os dados sobre as agressões nas escolas foram captados por meio de entrevistas com estudantes do ensino fundamental e médio, entre dezembro de 2023 e março de 2024, em parceria com a Fundação Lemann.

Essas violências podem ser classificadas como bullying, segundo pesquisadores, quando apresentam cinco características principais:

  • são atos repetidos contra um ou mais constantes alvos (3 vezes por semana ou mais);
  • ocorre entre pares (quando é professor-aluno é assédio moral);
  • há intenção do(s) autor(es) em ferir;
  • há um alvo fácil, mais frágil;
  • há um público que prestigia as agressões (os ataques de bullying são escondidos dos adultos, mas nunca dos pares)

O bullying e o cyberbullying se tornaram crimes no Brasil com uma lei aprovada em janeiro deste ano. Para especialistas, apesar de representar um avanço por deixar explícita a gravidade da violência, há dificuldades para se colocar em prática do ponto de vista jurídico. E ainda, na opinião de educadores, a prevenção efetiva do bullying só ocorre quando a convivência e a cultura de paz entram nos currículos das escolas públicas e particulares.

“O que alimenta o bullying é a necessidade do autor ser bem visto aos olhos dos colegas na escola. E o que faz ele ser tão sofrido e cruel é a vítima ser diminuída em um grupo social ao qual ela quer pertencer”, explica a professora da Universidade Estadual Paulista (Unesp) Luciene Tognetta. Ela coordena o Grupo de Estudos e Pesquisas em Educação Moral (GEPEM), que reúne pesquisadores de universidades públicas que estudam bullying, convivência e violência escolar.

Segundo ela, as políticas públicas e as escolas precisam ter planos de convivência integrados aos currículos, ou seja, sendo parte da experiência no dia a dia das crianças e dos adolescentes. “Isso está ligado a como o professor organiza as regras, como resolve conflitos quando duas crianças brigam. Se ele castiga, manda calar a boca, isso não ajudará a prevenir o bullying”, explica.

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Para o professor da faculdade de educação de Stanford Guilherme Lichand, que coordena a pesquisa, os dados coletados mostram “desafios significativos relacionados à sensação de pertencimento e segurança dos alunos na escola”. Uma das vantagens do estudo é medir e divulgar rapidamente a situação nas escolas para que os gestores possam atuar. Um novo resultado sobre violência deve ser divulgado no segundo semestre.

A pesquisa do Equidade.info mostra ainda que as regiões Centro-Oeste e Nordeste têm os maiores índices de estudantes que relataram sofrer esculachos ou humilhações de colegas, 31% e 26% respectivamente.

O estudo não questionou os alunos sobre todos os aspectos das violências para que se possa identificar que se tratavam efetivamente de bullying ou se foram conflitos - como, por exemplo, quando ocorre uma briga ou quando há agressões dos dois lados.

Os resultados indicam também a diferença por raça: 26,2% dos alunos não brancos (pretos, pardos e amarelos) afirmaram terem sido alvo de intimidação nos últimos 12 meses, ante 22,8% dos alunos brancos. “Bullying e racismo são fenômenos diferentes, mas estão no mesmo espectro”, explica Luciene.

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Segundo ela, o racismo se refere a algo construído historicamente, por um coletivo, e ao praticá-lo se violenta a história de um povo, enquanto o bullying é relacionado a uma pessoa específica. “Mas é possível cometer bullying e racismo ao mesmo tempo.”

Em abril, a filha da atriz Samara Felippo, de 14 anos, foi vítima de racismo na Escola Vera Cruz, na zona oeste da capital. O caderno da menina foi rasgado e devolvido com uma frase racista. A mãe afirmou que não foi a primeira vez e pediu a expulsão das agressoras.

O colégio negou que houvesse reincidência. Para especialistas ouvidos pelo Estadão, as autoras deveriam permanecer na escola, entender a gravidade do que fizeram e aprender por meio de projetos antirracistas e de convivência.

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Segundo especialistas, o bullying leva a graves consequências físicas e psicológicas  Foto: Adobe stock

O que as escolas devem fazer para prevenir o bullying

Antes da pesquisa de Stanford, os dados brasileiros mais recentes sobre o assunto tinham sido coletados em 2022, durante o Pisa, pela Organização para a Cooperação e Desenvolvimento Econômico (OCDE). O resultado foi que 22% das meninas e 26% dos meninos no País disseram terem sido vítimas de bullying pelo menos algumas vezes por mês. A média dos países da OCDE registrada foi mais baixa: 20% para as meninas e 21% para os meninos.

Luciene afirma que os currículos precisam incluir a convivência pacífica, que se dá por meio de programas que permitem que os alunos exerçam seu protagonismo, discutam seus problemas em grupos, formem equipes de ajuda. “O sentimento de pertencimento à escola traz proteção ao aluno para ele não ser vítima do bullying e até para que não o pratique. Se sentir atuante, querido, faz compensar as fragilidades.”

Segundo especialistas, escolas muito rígidas e competitivas, que estimulam uma hierarquia de poder e não um ambiente cooperativo e solidário, também podem favorecer o aparecimento de bullying.

Ações para prevenção sugeridas por especialistas:

  • Equipes de ajuda: alunos escolhidos pelos próprios colegas formados para identificar problemas, acolher e cuidar dos próprios alunos. Elas são uma forma de protagonismo.
  • Organização de assembleias ou rodas de diálogo: alunos apontam dificuldades da convivência enfrentadas, refletem, discutem e pensam em soluções para seus problemas.
  • Mediação de conflitos e uso de linguagem descritiva: professores formados para não intervir com violência, gritos, castigos e, sim, com a intenção de reparação do erro e aprendizagem por meio dos problemas.
  • Preocupação compartilhada: metodologia para intervir em casos de bullying, com escuta ativa da vítima e do agressor. Depois, os envolvidos assumem um compromisso coletivo de cuidado e reparação.

Além de interferir na aprendizagem do aluno, já que muitos chegam até a faltar à escola, as violências praticadas pelos colegas nas levam a graves problemas psicológicos ou físicos. Especialistas alertam para consequências como automutilação e suicídio entre vítimas de bullying.

Em abril, o estudante Carlos Teixeira, de 13 anos, morreu uma semana após dois estudantes pularem sobre as suas costas em uma escola estadual em Praia Grande. Os pais disseram que ele era vítima de bullying; o caso está sendo investigado.

Criminalizar o bullying resolve?

A maioria dos casos de ataques a escolas que ocorreram no País também têm como pano de fundo o bullying. A nova lei federal, que criminaliza o bullying, foi entendida como uma resposta do Legislativo e do Executivo à onda de ataques nas escolas brasileiras em 2023.

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O Brasil já tinha uma lei antibullying, de 2015, que previa programas em escolas para prevenção, mas pouco foi feito para que ela fosse colocada em prática.

“A gente só criminaliza uma conduta quando entende que é grave, esse recado foi dado com a nova lei e é ótimo”, diz a promotora da Infância e Juventude em Maceió e ex-coordenadora do Fórum Nacional dos Membros do Ministério Público da Infância e Adolescência, Alexandra Beurlen. “Mas o bullying não se resolve só dizendo que ele é um crime e, sim, mudando as relações sociais”, completa.

A promotora ainda aponta diversas dificuldades para que a lei se efetive. Uma delas é o fato de ela prever como pena para bullying apenas a multa, quando outros crimes, como injúria, ameaça e agressão (que podem estar incluídos no bullying) poderem resultar em prisão.

Isso pode fazer, segundo ela, com que a Justiça sequer enquadre os casos na nova lei. Além disso, explica, como os agressores são, em geral, adolescentes, quem pagaria a multa são os pais.

Já com relação ao cyberbullying, a nova lei fala em pena de 2 a 4 anos de prisão. Uma das justificativas para a pena maior, segundo ela, é a de que as agressões presenciais podem parar se a vítima sair do ambiente onde elas acontecem, já no virtual isso não é possível. “Ela não se apaga, está na rede social, é repetida várias vezes por ser compartilhada e causa danos psicológicos gravíssimos”, explica.

Mesmo assim, a promotora diz ser difícil que haja prisão - ou internação na Fundação Casa, no caso de adolescentes - porque o código penal só permite a preventiva em crimes cuja pena é superior a 4 anos. “São várias nuances e uma lei nova que não tem jurisprudência ainda.”

Para a médica e advogada, especialista em riscos psicossociais e impacto sobre a saúde, Luciana Baruki, mais importante do que a pena para o agressor, é a vítima se sentir acolhida, validada e o ambiente mudar. “É um avanço dar nome ao crime de bullying. A punição exemplar tem o seu caráter pedagógico, inibitivo, mas quando se fala de prevenção é preciso ter uma promoção de uma cultura de respeito”, afirma.

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Sentimento de pertencimento à escola diminui o risco de crianças e adolescentes serem vítimas de bullying Foto: Rido/Adobe Stock

Formação de professores

Ainda como consequência no aumento no número de ataques a escolas, o governo federal criou em abril o Sistema Nacional de Acompanhamento e Combate à Violência nas Escolas (Snave). O objetivo é ampliar a capacidade das escolas em promover ações de prevenção e resposta à violência, com formação de profissionais promovida pelo Ministério da Educação (MEC) e criação de protocolos de atuação diante de ameaças. Os Estados e municípios precisam aderir ao Snave e, segundo o MEC, essa possibilidade deve ser aberta em junho.

“A perspectiva é a da prevenção, com um conjunto de formações, práticas restaurativas, discussão da cidadania e da necessidade da gestão democrática, grêmios estudantis, o que tem relação com o bullying”, afirma a secretária de Educação Continuada, Alfabetização de Jovens e Adultos, Diversidade e Inclusão (Secadi), do MEC, Zara Figueiredo.

Segundo ela, haverá no MEC um grupo de trabalho específico para pensar ações contra bullying e ainda um programa de formação para psicólogos que atuam em escolas que tiveram casos de violência extrema, como ataques.

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