Opinião | ‘A vivência racial dos alunos deve estar no centro da educação antirracista’

Educadora narra experiência de colégio de São Paulo em que estudantes possuem posição central no enfrentamento ao racismo, com autonomia de aprendizagem e transformação

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Por Iza Cortada

A desigualdade e o preconceito racial têm travado os avanços em nosso projeto de País, em todos os setores, rumo a um Brasil mais justo e civilizado. Foi a conquista da consciência política desses entraves que impôs para os currículos escolares tarefas precisas de educação antirracista, com as leis 10.639/03 e 11.645/08, que alteraram a Lei de Diretrizes e Bases da Educação Nacional, a LDB.

A maioria das escolas implementa o conceito de educação antirracista por meio de três tipos de ações educativas: ação junto aos pais e à comunidade, ação junto aos professores para atuação em sala de aula, e ação junto às coordenações e equipes de gestão escolar.

Professora Iza Cortada defende maior protagonismo dos alunos na implementação de uma educação antirracista nos colégios. Foto: ALEX SILVA/ESTADÃO

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O Colégio Equipe, escola particular da região central de São Paulo, acrescenta um quarto eixo, em torno do qual os outros três são pautados e elaborados. Esse eixo se caracteriza pela criação de um espaço de autoria para os jovens estudantes, colocado no coração da proposta, esse espaço assumiu a forma do Coletivo Equipreta.

A estratégia pedagógica do Coletivo tem como linha mestra trazer o cotidiano de vivência racial dos próprios alunos, que são problematizados em torno dos conceitos, depois, são desenvolvidas ações de conscientização e transformação, de volta ao mesmo cotidiano. Essa estratégia permite que o programa de educação antirracista esteja implementado desde a educação infantil, passando pelo fundamental I, crescendo no fundamental II, até chegar no ensino médio, cada nível com seus objetivos específicos, ajustados a faixa etária.

O Coletivo Equipreta se desenvolve como um espaço de aprendizagem por meio da problematização, pesquisa e proposição de ações. Ele é composto por alunos que escolhem participar das atividades propostas, no seu horário de contraturno escolar. Portanto, os participantes do fundamental II encontram-se em um período, e os do ensino médio, no período contrário.

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Mas o que eles fazem exatamente? No fundamental II, por exemplo, são feitas atividades visando uma conscientização das identidades raciais presentes, partindo do cotidiano dos próprios alunos, com o envolvimento deles em práticas pedagógicas e de letramento racial. Esse letramento dará ênfase à leitura e percepção dos diferentes sentidos atribuídos a direitos e lugares na convivência social em nome de identidades raciais, de maneira, quase sempre, inconsciente, por estarem normalizados nos hábitos e costumes.

Já os participantes do ensino médio desenvolvem atividades, que partem da conscientização das identidades presentes e de práticas de letramento racial, mas são orientadas para a proposição de intervenções político-pedagógicas dentro e fora dos muros da escola.

Algumas atividades realizadas ao longo do projeto foram: idealização da logomarca do coletivo, observação racial (teste do pescoço) e manifestação artística de crítica à Lei Áurea no Shopping Pátio Higienópolis, Fórum Étnico-Racial na escola, visitação de territórios pretos como a Galeria do Rock, o Vale do Anhangabaú e a exposição sobre a Pequena África/Cais do Valongo no Instituto Moreira Salles.

Os alunos da educação infantil e fundamental I têm atividades curriculares programadas, propostas pelos educadores de cada nível. Na educação infantil, o trabalho acontece principalmente por meio da literatura africana e afro-brasileira. No fundamental I, o foco será em aspectos da história dos povos africanos para além de sua escravização no Brasil, e em manifestações populares da cultura afro-brasileira.

Os dois ciclos trazem representatividade em todas as áreas do conhecimento e, por conta disso, as crianças têm como referência personalidades negras com as quais podem se identificar e admirar. Assim, povoar o imaginário das crianças com histórias de negritude que envolvam potência tem sido o principal trabalho desses ciclos.

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Enfim, a estratégia pedagógica do quarto eixo de educação antirracista do Colégio Equipe, que dá direção e pauta para os outros três eixos curriculares mencionados, apresenta-se como espaço de elaboração das subjetividades racializadas, tratando especialmente de como é ser negro em uma escola branca. Para tanto, é feita a escuta, o acolhimento e o cuidado das crianças pretas.

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O coletivo possibilita também o exercício de mediação de conflitos raciais (trazidos do cotidiano), exercita e apoia a mobilização de estudantes brancos para com a luta antirracista e planeja propostas de intervenção em aspectos selecionados do cotidiano problematizado.

A conscientização educativa de transformações urgentes nos modos de pensar e agir, associada ao desejo de protagonismo dos jovens na mobilização em torno de causas sociais, foram a motivação para idealizar e fazer existir o Coletivo Equipreta. Este vem promovendo a educação antirracista como uma iniciativa curricular centralizada nos estudantes, desenvolvendo neles autonomia de aprendizagem e de transformação. Essa ação dos alunos por eles e para eles mesmos adquire a força e o movimento de uma educação antirracista mútua, de cada um para com todos. Dos alunos frente a eles mesmos, frente à comunidade e aos professores, e também frente às equipes de gestão e coordenação escolar.

O projeto, portanto, possui objetivos e intencionalidades, dotando-se de métodos e caminhos a serem aperfeiçoados e solidificados. Como estratégia didático-pedagógica, vem se desenvolvendo pela articulação de percursos e dinâmicas que nascem no cotidiano dos próprios jovens, problematizando questões consideradas relevantes por eles e promovendo intervenções no retorno ao cotidiano deles mesmos, sob a forma de ações educativas de transformação mútua dos modos de ser e conviver.

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Essas ações educativas consolidam o compromisso de valorizar e construir uma maior e crescente equidade racial na sociedade brasileira. Buscamos reaprender como estão sendo injustas as relações sociais, para aprender como deve ser uma convivência de respeito às diferenças, sem discriminações nem preconceitos em nome de raça e cor de pele. O Equipreta acaba por se colocar enquanto um projeto centrado no enfrentamento ao racismo, a partir de processos educativos e formativos, em detrimento de uma atuação limitada aos processos punitivistas e persecutórios.

Opinião por Iza Cortada

Coordenadora pedagógica do Colégio Equipe e autora do livro 'O herói de Damião em A Descoberta da Capoeira'

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