
Mesmo com anos de experiência em educação de crianças e adolescentes, o psicólogo e educador Ilan Brenman diz que se viu “atordoado e perdido” após terminar de ver Adolescência, a série da Netflix que aborda um caso de assassinato de uma adolescente por um colega de escola e tem dado o que falar. “Tem coisas lá que nem passavam pela minha cabeça. Eu saí da série em muitos aspectos ignorante e fui falar com as minhas filhas, pesquisar e olhar”, disse Brenman à coluna Mulheres Reais, da Rádio Eldorado, que deve ir ao ar na próxima segunda-feira, 31.
Autor de livros infantis, ele considera a série uma oportunidade de refletir sobre a criação de crianças e adolescentes, sobre o acesso muitas vezes ilimitado dos jovens ao mundo digital - e suas comunidades que pregam o ódio - e sobre como os pais podem extrair ensinamentos da trama para repensar e mudar a rotina familiar.
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Na visão de Brenman, os pais devem monitorar de perto a atuação online dos filhos, intervindo e restringindo se necessário. “(A série) traz uma visão de como exercer a autoridade. Exercer o limite traz questões para esses pais que mexem com seu passado.” E, como forma de prevenir casos como o mostrado em Adolescência, ele reitera a necessidade urgente de manter aberto “um canal de conversa” na família. “E como se proporciona isso? Tentando, na medida do possível, ter uma refeição por dia em conjunto. Porque, se esse menino tivesse aberto esse diálogo que seja com a irmã dele, seja com o pai, com a mãe, a coisa poderia ter ido por um outro caminho”, afirma.
O exemplo também é outra forma de ensinar, reforça Brenman: “Se você quer que seu filho seja um menino respeitoso com as meninas, que tenha uma relação saudável com as meninas e com os próprios colegas, a primeira coisa que tem que se ser feita é você ser um modelo disso”. Veja abaixo os principais trechos da entrevista.

Devemos assistir à série ‘Adolescência’ com os filhos adolescentes?
Eu assistiria sim. Assim que eu terminei de assistir, falei para as minhas filhas já jovens adultas - uma de 21, outra de 18 anos: “Tem que assistir”. Elas assistiram, depois a gente conversou. Com crianças pequenas eu não assistiria, acho que não é o caso. A série começa com o assassinato de uma adolescente, então eu assistiria com adolescentes para conversar. Isso não é spoiler porque está no começo da série. Com crianças pequenas ainda não, mas eu usaria o seriado para fazer grandes reflexões sobre o tema. Confesso que saí atordoado, perdido. Fui perguntar sobre os emojis (citados pelo adolescente da série) para as minhas filhas. Eu não fazia ideia. Existe um abismo entre o nosso mundo, o adulto, com esse mundo adolescente, dos jovens na internet. Eu saí da série em muitos aspectos ignorante e fui falar com as minhas filhas, pesquisar e olhar. E com muita humildade para falar que tem coisas lá que nem passavam pela minha cabeça. Então é uma série, eu diria, fundamental nos dias de hoje para a gente - adultos, pais, professores, educadores em geral e jovens.
‘Adolescência’ aborda muito a questão da paternidade. Como você vê a figura do pai na série e na sociedade de hoje?
O pai (da série) é uma figura interessantíssima. Esse pai traz uma questão que parece óbvia, mas não é porque a gente tem que pensar sobre ela. Ele fala: “O meu pai (avô do menino acusado de homicídio) me espancava, eu apanhei muito quando era criança, então jurei que quando eu tivesse os meus filhos eu não espancaria”. Ele se questiona sobre isso, se isso foi algo permissivo, se isso não deu algum problema. É um questionamento que já ouvi várias vezes. E eu posso falar com tranquilidade que espancar, bater em criança não adianta. A questão não é o bater na criança, espancar a criança. Isso é uma coisa terrível, é um abuso, é um crime. Mas o que ele (diretor da série) traz com essa discussão, na verdade, é uma visão de como exercer a autoridade. Exercer o limite traz questões para esses pais que mexem com seu passado. Esse menino (da série) desenhava, era um menino sensível. No momento em que ele ganha aquele computador e os pais não interferem mais, deixam correr solto, (ele muda). Isso também é uma coisa que a gente faz muito e é um erro. Perdeu o controle, perdeu o limite, não teve mais essas barreiras - talvez, exatamente, pelo medo de esse pai repetir algo que ele viveu. Então é um trabalho muito intenso de autoconhecimento dos pais para entender: tirar o celular da mão do filho, que seja ele adolescente de 12, 13 anos, monitorar, supervisionar é um ato de amor, não é um ato de autoritarismo. É que nem você pegar seu filho pequeno de 12, 13 anos, fumando vape. Absurdo. Então, vamos monitorar, vamos olhar junto se ele está usando (o celular) para coisas boas. Monitorar, supervisionar, colocar filtros. E, no momento em que eles se descolarem disso, saber que fizemos um bom trabalho, demos o nosso máximo nesse sentido. A gente não pode controlar tudo. Mas dentro do que a gente pode controlar como pai, como mãe, precisamos atuar e enfrentar e aguentar os trancos que vão vir. Eles vão ficar enlouquecidos, rebeldes, mas paciência.
Stephen Graham, cocriador da série, diz que o objetivo de ‘Adolescência’ foi justamente fazer com que o público ‘olhasse para aquela família e pensasse ‘Meu Deus, isso poderia ter acontecido conosco!’. O quanto a série ‘chacoalha’ a ideia de família estruturada?
A série vai indo e talvez faça você num primeiro passo acreditar numa família disfuncional. Você fica com uma pulga atrás da orelha com esse pai, fica fantasiando: ‘Será que esse pai batia no menino, na mãe, e ele usou isso como modelo?’ Mas a série vai jogando isso ladeira abaixo e mostrando no final que é uma família em que o amor está presente. O amor está lá, da forma que eles conseguem, e é um amor genuíno. Mas, além desse amor, (é necessário) utilizar esse vínculo afetivo como uma ferramenta de conversa contínua com seus filhos e não parar quando eles fazem 12, 13 anos, que é o que acontece. E é quando eles são “capturados pelo Vale do Silício”. Isso aqui não é uma coisa neutra. Quando a gente fala de redes sociais, a gente pensa que caíram do céu. Não, aquilo lá tem acionista, tem dono, tem um porquê, tem lucro por trás. Aquilo lá não funciona à toa, tem muito dinheiro investido nas redes sociais. Sabendo disso, (precisa ter) um canal de conversa. E como se proporciona isso? Tentando, na medida do possível, ter uma refeição por dia em conjunto. Porque, se esse menino tivesse aberto esse diálogo que seja com a irmã dele, seja com o pai, com a mãe, a coisa poderia ter ido por um outro caminho. Então a gente precisa estabelecer canais de diálogo. É a única coisa que eu consigo ver, além de tirar os aparelhos, bloquear, supervisionar, controlar e fazer uso das redes sociais de uma forma mais sábia. Isso para mim talvez seja das coisas mais difíceis de fazer, mas é a que mais produz efeitos positivos.
Os meninos hoje são muito bombardeados com discursos de masculinidade tóxica, de que têm de ser “macho alfa”, não podem lidar com emoções porque ‘não são coisa de menino’. Como você vê essa questão?
Essas questões precisam ser trabalhadas com as crianças, com os jovens. É impossível você fazer isso dentro desse mundo que a gente está. Não dá. Não tem uma solução, mas talvez um dos componentes que podem ajudar é, novamente, diminuir o acesso o máximo possível. Para criança pequena, eu tiraria completamente, (permitiria somente) uso educativo de jogos que você pode monitorar. Para adolescentes é mais complexo, (precisa) fazer uma supervisão. Aí volto para a questão do diálogo e da conversa. Se você quer que seu filho seja um menino respeitoso com as meninas, que tenha uma relação saudável com as meninas e os próprios colegas, a primeira coisa que tem de se ser feita é você ser um modelo disso. Não adianta pai e mãe quererem que seu filho seja assim se você não é. Não há livro no mundo que ensinará às crianças o que é tolerância e paz se na casa delas existir guerra e conflito. É isso que a criança vai absorver.