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Não adianta só ler para a criança: professora de Harvard diz o que mais precisa ser feito

Paola Uccelli estuda alfabetização e diz que discussão da leitura é crucial para que aluno aprenda o sentido dos textos e para que a linguagem e os vocabulários passem a ser compreendidos

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Atualização:
Foto: Renata Cafardo/Estadão
Entrevista comPaola UccelliProfessora de Educação de Harvard

Em meio às polêmicas no Brasil e nos Estados Unidos sobre qual o melhor método para aprender a ler - ensinar o som das letras ou focar no contexto - a professora da Universidade de Harvard Paola Uccelli diz que é preciso fazer as duas coisas. A criança deve saber decodificar as letras, mas é essencial motivá-la a discutir as histórias que lê ou que são lidas para ela.

“Ler é pensar ativamente sobre o texto. É necessário ensinar a compreender”, disse, em entrevista ao Estadão. “Falar é natural. Aprender a ler, por outro lado, não é. Requer instrução, o cérebro não é naturalmente preparado para isso.”

Paola é linguista e professora da Faculdade de Educação de Harvard, onde estuda diferenças socioculturais e individuais no desenvolvimento da alfabetização ao longo do período escolar. Suas pesquisas mostram que muitas vezes o estudante consegue decodificar as letras, mas vai perdendo a capacidade de compreensão de texto ao longo dos anos - principalmente dos mais complexos, porque não foi instigado a discutir sobre o que lia e a usar aquele vocabulário.

Segundo ela, é preciso aprender os códigos, os sons, e praticá-los repetidamente, mas sem o diálogo sobre o que está se lendo, as crianças não aprendem. “Eles leem em voz alta, mas não compreendem nada”, afirma.

A forma de mudar isso, diz, é ter professores e pais que estimulam a discussão sobre o livro ou qualquer texto. “Quando perguntamos ‘por que o personagem estava bravo?’, ‘o que acontece na história?’ a criança entende que precisa fazer essas conexões na leitura. Pode parecer mentira, mas nem sempre a criança faz isso automaticamente.”

Além da leitura, é essencial discutir os textos com as crianças, dizem pesquisas. Foto: TIAGO QUEIROZ/ESTADÃO

Paola é peruana e conversou com o Estadão após participar de um evento em Harvard, este mês, em que se discutiu a alfabetização na América Latina e formas de se melhorar o cenário trágico de aprendizagem de leitura na região. Segundo dados do Banco Mundial, mais de 70% das crianças da América Latina e Caribe não compreendem o que leem, aos 10 anos. No Brasil, as avaliações mostram que 56% das crianças estão alfabetizadas no 2º ano do ensino fundamental.

Por que se diz que aprender a ler não é algo natural?

Aprender a falar é algo natural. Todos, a menos que tenhamos alguma dificuldade específica, aprendemos a falar. Aprender a ler, por outro lado, não é algo natural. Aprender a ler requer instrução. A leitura é invenção humana, e aprender a ler não é natural. O cérebro não é naturalmente preparado para ler; ele foi treinado para isso.

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Como assim?

A instrução e a evolução da civilização trouxeram a leitura, mas ela não é algo natural. Se as crianças não são ensinadas a ler, não aprendem sozinhas. Algumas crianças que vêm de ambientes muito letrados podem aprender espontaneamente porque estão em lugares onde os pais leem muito, onde a leitura é usada de forma funcional em todos os lugares, e por isso podem parecer aprender espontaneamente. Mas, mesmo nesses contextos, foram socializadas para a leitura. A leitura não é natural, exige ensino. Há habilidades de código, de reconhecimento de palavras, que precisam ser aprendidas e praticadas repetidamente para atingir a automaticidade.

A decodificação é importante? No Brasil e nos EUA, há polêmicas com relação aos métodos de alfabetização e à necessidade ou não de decodificar as palavras, de saber o som das letras.

O campo (da pesquisa em alfabetização) é como um pêndulo. Vamos de um lado, onde todos acham que decodificação, reconhecimento de palavras e fluência são importantes, para o outro, onde dizem que isso não importa, que o importante é motivar as crianças para a leitura e o uso da linguagem. A realidade é que precisamos de ambos. Há um grupo de habilidades de decodificação e reconhecimento de palavras, fonemas, que devem ser praticadas e aprendidas explicitamente. É necessário praticar essas habilidades para alcançar a automaticidade e a fluência. Mas, além disso, há um enorme conjunto de habilidades de compreensão de linguagem, raciocínio verbal e conhecimento do mundo, que são uma área de desenvolvimento e aprendizado muito maior do que a decodificação, mais difícil de desenvolver, ensinar e aprender. Portanto, é preciso ensinar ambas as coisas de forma integrada. Quando se ensina decodificação apenas com letras isoladas, sem contar histórias e sem motivação, também não é bom. A decodificação deve ser ensinada no contexto da discussão de histórias e da motivação para a leitura.

Mas como fazer as duas coisas?

Queremos leitores motivados, não é? Então, precisamos motivar as crianças a ler, com histórias que as entusiasmam. Há uma expressão que diz que as histórias devem ser como janelas e espelhos, onde elas possam se ver refletidas, ver sua cultura e identidade, e também que as levem a outros mundos. Portanto, a discussão de textos motivam muito as crianças, não é apenas ler. É como quando lemos um livro e gostamos de comentar com outra pessoa. É preciso perguntar: ‘O que você entendeu? O que eu entendi? Por que esse personagem ficou bravo? Por que ele estava feliz?’ Em segundo lugar, o uso do vocabulário e da linguagem dos textos se aprende quando as usamos. Quando as crianças falam sobre o que leram, estão usando esse vocabulário, as frases, as estruturas. E ao usarem essa linguagem, elas ampliam seu vocabulário e conhecimento do mundo. Em terceiro lugar, ao discutirmos um texto, os professores podem modelar como se aprende. As crianças leem um texto, mas não sabem quais as perguntas importantes que o professor quer que elas façam, não sabem que precisam perguntar ‘por que o personagem fez isso?’. Ao discutirmos, as crianças também aprendem quais perguntas são importantes e como o texto faz sentido.

Tem também um processo de emoção envolvido?

A emoção de ler ou o que sentimos ao ler. É fazer o processo de compreensão visível para a criança. Quando perguntamos ‘por que o personagem estava bravo?’, ‘o que acontece nessa história?’ a criança entende que precisa fazer essas conexões na leitura. Pode parecer mentira, mas nem sempre as crianças fazem isso automaticamente. O interessante é que, na sala de aula, apenas fazemos com que as crianças leiam em voz alta e não compreendam, não discutam, elas acham que isso é leitura. Quando as crianças discutem, percebem que ler é pensar ativamente sobre o texto. É necessário ensinar a compreender.

Por que algumas crianças brincam e são inteligentes, mas não conseguem aprender a ler?

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Não existe o português como um sistema único, ou o espanhol ou o inglês como um sistema único. O que aprendemos são formas de usar o português, não é? Quando você está com suas amigas, usa um português diferente do que usaria no ambiente profissional, não é? E quando lê um texto sobre física, é outro português. que acontece é que as crianças podem ser muito fluentes com seus amigos, contando histórias, piadas, rindo, falando sobre coisas presentes, e não terem aprendido o português dos textos, o português das ciências sociais. Todas as crianças são capazes e todas que chegam à escola, a menos que tenham um problema sério, podem aprender, mas precisam de oportunidades para aprender. Os textos apresentam diferentes formas de linguagem. Se você comparar um texto de ciências sociais com o que falamos, o que as crianças falam com seus amigos, parecem duas línguas diferentes. Por isso, discutir esses textos as expõe a uma linguagem que precisam usar para aprender.

Há uma discussão também sobre a complexidade dos textos que as crianças devem ler para aprender mais. Eles devem ser mais simples ou complexos?

Existem os textos simples, que as crianças podem ler várias vezes, às vezes o mesmo livro, para decodificação e fluência. Esse é um caminho, esses livros simples que as crianças podem ler sozinhas. O outro caminho são os livros mais complexos que podem ser lidos com o professor, com os pais ou com um adulto. Com ele, você pode discutir com seu filho ou filha. Se o texto for difícil, há coisas que eles não sabem, há vocabulário que eles não conhecem, mas você explica, discutem, então, eles expandem o vocabulário e conhecimento do mundo, o que a ajudará a entender outros textos. São dois caminhos que andam juntos.

E qual a importância dos sons das letras para aprender a ler?

Alguns sons são mais difíceis e a instrução explícita é o mais eficiente, particularmente para crianças que não vêm de ambientes letrados. Se sua filha tem dificuldades com os sons R e RR, imagine as crianças que não leem com seus pais por qualquer situação. Mas é importante não reduzir o ensino apenas à decodificação; a decodificação deve ser acompanhada de discussão de textos, diálogos, ensino de vocabulário e atividades autênticas para aprender.

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Nos Estados Unidos, mais de 30 Estados já voltaram a usar o método fônico (que foca nos sons e decodificação) de alfabetização, como vê esse movimento?

Depende do Estado, alguns estão caminhando para uma abordagem muito limitada, o que é perigoso. Sons e letras precisam ser ensinados. É algo fácil de ensinar, requer trabalho e consistência, mas é fácil. Mas não podemos ensinar apenas isso, porque então vemos casos em que, mais tarde, na 4º ou 5º anos, os alunos não compreendem o que leem. Nesses casos, são crianças que não tiveram ênfase suficiente na linguagem e no conhecimento. Temos dados de crianças bilíngues, mas também de crianças monolíngues em inglês, espanhol e português, como no Brasil. Quando chegam ao 5º ou 6º ano, carecem de vocabulário, de frases, de estruturas dos textos e de conhecimento sobre o mundo. Quando as crianças não têm a linguagem para entender os textos, não podem aprender sozinhas, precisam de alguém para intermediar e ajudar. Como quando você lê com sua filha e o livro é difícil, você a ajuda a entender.

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